Por Valter Pomar (*)
Recomendo fortemente a leitura do artigo “Hora de convergir”, assinado por Fernando Henrique Cardoso e publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo no dia 1 de março de 2020.
Neste artigo, FHC afirma que “falar de impeachment (…) seria, no mínimo, arriscado”. Ou seja: ele não questiona se a hipótese é ou não “cabível”; FHC está preocupado é com as consequências.
E quais seriam?
Segundo FHC: “desgasta os Poderes e deixa mágoas de difícil superação. Mais ainda: por trás da votação no Congresso e das alegações jurídicas, no impeachment existe sempre um movimento popular, que não se vê no momento. Melhor nem cogitar, prematuramente, de tal movimento.”
De que “movimento popular” FHC está falando?
Da direita? Da esquerda? De ambos? Nenhum dos anteriores??
Segundo FHC, do que precisamos é de “tranquilidade”, para enfrentar “dois enormes desafios”: a ameaça do coronavírus (claro, pois com a dengue, o sarampo e assemelhados estamos lidando bem) e o “arrastado crescimento da economia”.
Ainda segundo FHC, “um país que está inseguro – insegurança agravada pelo temor de uma eventual pandemia – e tem desemprego tão alto” precisa urgentemente de “sensatez e de coordenação”.
E por quais motivos o país estaria “inseguro”? FHC dá a entender que o motivo é o próprio presidente Bolsonaro, alguém que ele descreve como desastrado no falar, quando não no agir, que acirra em vez de desanuviar, que produz “turbulência a partir de um impulso de confronto incompatível com o bom funcionamento das instituições e potencialmente perturbador da ordem democrática”?
Mas se for esta a causa da insegurança, de onde viria a “sensatez” e a “coordenação”??
FHC diz que “felizmente, os chefes dos outros Poderes, especialmente o da Câmara, percebem a situação e não lançam mais lenha na fogueira”. Mas se é assim, então a fogueira continua queimando.
Portanto, temos uma situação problemática, que – segundo FHC – leva os militares a assumirem cada vez mais protagonismo no governo Bolsonaro.
Motivo de preocupação?
Não, segundo FHC. Afinal, “não é para ‘dar um golpe’ que os militares aceitam participar” do governo Bolsonaro. Os militares “sentem sinceramente que cumprem uma missão, diante da dificuldade ou incapacidade do governo de recrutar maior número de bons quadros em outros setores da sociedade”.
Ou seja: a presença de militares no governo Bolsonaro seria um fator de… “sensatez” e de “coordenação”.
Mas isto não seria um risco para a democracia? FHC diz que o risco, “para a democracia e para as próprias Forças Armadas como instituição permanente”, é que se “borre a fronteira entre os quartéis e a política”.
Mas isto já não teria ocorrido várias vezes, desde 2016? Por exemplo, quando vários comandantes pressionaram o Supremo, para que não concedesse em 2018 o habeas corpus a que Lula tinha direito, como se comprovou em novembro de 2019?? Ou quando setores importantes da ativa e da reserva se engajaram na campanha de Bolsonaro e em seu governo, inclusive fazendo declarações das mais provocadoras contra a democracia??
Os fatos são tão evidentes, que cabe pensar por quais motivo FHC insiste nesta “narrativa”, que além de tudo silencia sobre a relação de causa-e-efeito entre o “arrastado crescimento da economia” e a política econômica de Guedes&Bolsonaro.
A única explicação que encontro é que FHC considera que vivemos uma situação tão perigosa, que as Forças Armadas (ou pelo menos parte delas) seriam uma espécie de última linha de proteção da democracia contra “tentações populistas de índole autoritária”.
Esta impressão fica ainda mais forte ao lermos, na parte final do artigo de FHC, um amontoado de chavões que servem de paspatur para a seguinte frase: “Precisamos… de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco e acima de qualquer mandatário está a Constituição.”
Tirante o cinismo de culpar “o povo” e a hipocrisia acerca da “escolha”, a impressão é que FHC está passando um recibo público de apoio àqueles que acreditam que o Palácio do Planalto está precisando de uma operação de GLO.
Se isto for verdade, o artigo de FHC poderia ser resumido assim: Bolsonaro é um fio desencapado, mas seu impeachment produziria inconsequências imprevisíveis, logo a única solução é ampliar a tutela militar.
Vindo de FHC, não surpreende este tipo de raciocínio.
Só a entrada em cena do povo pode impedir que a política brasileira continue prisioneira deste tipo de falsas alternativas, todas cúmplices de um programa ultraliberal, de medidas que restringem as liberdades democráticas, que destroem os direitos sociais e inviabilizam qualquer coisa que possa ser chamada de desenvolvimento.
A íntegra do artigo do “príncipe dos sociólogos” pode ser lida aqui:
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,hora-de-convergir,70003215332
(*) Valter Pomar é professor da UFABC e integrante do Diretório Nacional do PT