Uma Bíblia velha e um sentimento de revolta

Por  Fausto Antonio (*)

Epigrafia da tripla intertextualidade  e  de homenagem  ao  dia de Santa Luzia, a protetora dos olhos e da visão, que é lebrado em 13 de dezembro.

O título da crônica, “Uma Bíblia velha e um sentimento de revolta”, foi extraído do desfecho do conto “O Espelho”, de Machado de Assis, originalmente publicado na obra Papéis Avulsos (1882). No corpo da crônica, a intertextualidade conecta um fragmento de samba , cujo refrão diz: “mas tenho o corpo cansado das poeiras do caminho”,  a referências bíblicas e ao universo ficcional do “Bruxo do Cosme Velho”.

Levou as mãos ao rosto e limpou o suor que escorria.

— Está quente? — indagou o servente, que era da mesma igreja.

— Menino, calor está, mas senti foram os calos na pele do rosto.

Eu, que assistia ao diálogo, percebi que, pelo esforço das pelejas, ele tinha as mãos calejadas  e  “o corpo  cansado das poeiras do caminho”.   Seus olhos, com a visão nublada, eram reconhecidamente vermelhos. Olhava para o alto e, de vez em quando, pingava um colírio lubrificante. Era o peso da idade, dizia a esposa, que cuidava da casa e espremia os olhos para passar a linha pela agulha e tecer costuras. Iam à igreja regularmente e recebiam aquele conforto espiritual de quem tem fé e acredita piamente no céu e no inferno.

Enquanto a tarde ia e os tijolos se multiplicavam à sua frente, ele recuou no tempo.

— Comecei cedo, Felisberto.

O servente parou e emendou:

— Tenho quinze anos.

— Pois é… será que teremos nosso lugar no céu?

— Aqui na terra? — reagiu Felisberto. — Segundo a Palavra, é noutro canto o lugar do repouso eterno, o paraíso. O senhor cansou da lida?

— Não, o trabalho faz bem. Mas depois de gastar o sol e muitas luas, olha o pouco que tenho — estendeu as mãos vazias.

Largou a colher de pedreiro e sentou na sombra que a parede defronte permitia.

— Não é a lida diária, Feliz, mas o que não vem, além do suor e dos calos sentidos na própria pele. Ora, ora, menino, não há aposentadoria que chegue; e quando chega, é farelo ou areia fina ao vento. Não sobra nada. Hoje, no almoço, quando orava, olhei para você e me vi num espelho invertido. A sua pele preta, os seus dentes ainda inteiros e o corpo de luta, por enquanto, envolto pela força da juventude e das orações. Você não viu, Feliz, mas chorei pelos cantos dos olhos. A emoção, com certeza, você interpretou como se fosse da leitura e da força da Palavra. Não, agora entrei no “templo de dentro” e abandonei a leitura corrida do texto bíblico. Não levarei para casa aquela Bíblia que me acompanha há muitos e muitos anos. Ela ficará aqui. Chegarei em casa desarmado e pronto para ouvir e falar sem rumo fechado.

— Mas a Bíblia… — balbuciou Felisberto.

— Vou ouvir o que diz Anamaria, minha esposa, que costura e dorme pensando nos vestidos e panos que nunca teve e nem terá aqui. No céu, os panos serão apenas a lembrança da falta de tantas coisas.

Felisberto insistiu:

— Mas a Palavra de Deus não é tudo? Ele não é onipotente, onipresente e onisciente?

— Não viu, certamente, você e a mim. Aos setenta anos, Ele nos deixou para depois ou para nunca.

— E o livro?

— Não levo e não abro mais.

Ao chegar em casa, Feliz, vou ouvir sem críticas a belíssima oração que Anamaria fez, dedicada à Santa Luzia. Fiz isso enquanto folheava a Bíblia em zigue-zague, para não reconhecer, muitas vezes, o que sou e de onde venho. Anamaria, quando quase perdi a visão, recitava de coração:

A perfeição do Deus único  Santa Luzia enxergou e vivenciou. E dela  a perfeição, a partir do meu merecimento e autocura,  o meu corpo espiritual em Santa Luzia  e Deus nela e em mim, o meu olho curou.

À  imagem  e  à semelhança de Santa Luzia, a de Deus, o meu olho, que  é  do meu Deus interior, na perfeição do Deus único, perfeito se tornou e curado estou.

E ela insistia: “Meu amado esposo, repita e ficará curado”.

Mesmo com o efeito na minha visão, que nunca foi, nunca repeti, Feliz. Nuvens brancas impediam a liberdade e queriam que o céu ficasse além do céu, e muito além de tudo.

Agora, Feliz, farei o caminho inverso, ou à semelhança de Anamaria. Assim, a voz do pastor — que tem as mãos finas e a palavra que retira do livro de Deus a verdade absoluta, o pensamento único que serve para quem lucra, explora  e manda — será como folhas secas ao vento, nada mais.

Amanhã, Feliz, direi que sobrou na memória apenas uma Bíblia velha e um sentimento de revolta.

(*) Fausto Antonio é professor Associado da Unilab, BA, escritor, poeta  e  dramaturgo.

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