Por Fausto Antonio (*)
Epigrafia da velhice e das partidas
Na velhice, concorde com a evolução, corpo e espírito estão juntos e encruzilhados. A velhice, a despeito de muitos ignorarem, é uma escala temporal que concretiza a unidade atemporal do céu e do inferno.
Frequentei por anos o seminário, no período, década de 1970, o prédio ficava numa travessa da Avenida da Saudade, em Campinas. Na rua da Abolição, um quarteirão abaixo, havia a Igreja de São Benedito e em frente o Sanatório Santa Isabel de tantas dores, tristezas e abandonos. A Igreja de São Benedito recebia os cuidados caprichosos do Sr. Sampaio, militante negro das antigas.
As memórias do passado ergueram, no dia 18 de agosto de 2024, um arco de abraços , de despedidas e de saudades imensas. Estou com a velhice no espírito, no corpo; alguns diriam, com certeza, nos ombros e no íntimo. Constato, diante da Igreja de São Benedito, que ela está fechada; o Sr. Sampaio partiu há muito, e o Sanatório Santa Isabel deu lugar a um condomínio. As janelas do condomínio, voltadas em oposição ao cemitério da Saudade, estão escancaradas e voltadas para o estádio da Ponte Preta.
Alguém poderia indagar o porquê dessa escolha visual. Diria, de chofre, que os meus olhos estão , desde sempre, desnudando as marcas negras da cidade. Meus olhos sabem que a negrura traz paz e conforto. Aqui, leitoras e leitores, são encerradas, com a chave aberta da saudade, as memórias e as delícias escaladas pelo tempo e pelo espaço que , na unidade , são igualmente parte da velhice. Certamente, a coautoria dessa narrativa gostaria de saber, como perspcas e ativa mediação, o que houve no seminário? Pois não, os seminaristas viram padres ou viram o seminário do avesso. Os dois casos clássicos não se enquadram na crônica ou no conto contido aqui.
Como não sei, exatamente, se farei um conto ou uma crônica definida pela exiguidade; a ambiguidade faz parte da velhice e do gênero. Vou, assim, diretamente aos fatos capitais; caso a opção seja orientada, no futuro, para a produção de um conto, no que toca à extensão, volto e acrescento linhas , afetos , um epifânio conflito, pelo menos, e outros personagens. Dito o não feito; cresce o bem feito. Saí do seminário como entrei. Era um ateu silencioso.
Sem discursos, foi fácil a entrada e mais ainda a saída do seminário para padres. Ateus profundos, sinuosos, amam a humanidade; vivenciam e enxergam Deus e as Deusas nos homens e nas mulheres. Às vezes, na tessitura do circuito de enganos, são confundidos com religiosos ordinários. Para o bem dos incrédulos, a confusão logo se desfaz pelos atos e não pelo serviço fiel aos ritos. Jejuar, não comer carne e ficar de joelhos, copiosas aparências, podem iludir somente os olhos. Quem ama a humanidade pode subtrair dali a divindade e somá-la às profundidades e às alturas infinitas. Nas somas e nas subtrações, a formação religiosa e as deformações ficaram no passado.
As memórias do seminário ficaram no mundo exterior àquele espaço. O uso do cachimbo, por tal razão, não formou e menos ainda deformou a boca. As deformações, nem nos sonhos, entram para roubar do que há o que não há. Os roubos não ocorrem quando a velhice tem, como lacre da jornada temporal, o amor pela humanidade e nele e com ele o amor pela contraparte. A utopia é outro motor, bálsamo e sinal de vitalidade para continuar vivo; sem ela há apenas e às duras penas o corpo. O que segue é carne e fogo; a utopia se fazendo em carne e espírito. Pois bem, na noite passada, no entre sonho, um anjo branco, de olhos azuis, disse- me que não teria amor na vida atual.
Logo que ele saiu de cena, um anjo negro, de olhos arredondados, disse-me o contrário. “O anjo do mal”, conforme aprendera no seminário, falou, com voz pausada, você terá o amor da boca que come o céu e o inferno. O anjo branco partiu como veio; o anjo negro, defronte de mim, se transformou em fogo. A epígrafe inicial do narrado, antes do diálogo com o anjo negro, talvez fosse orientada para a redação de um episódio, consoante a idade do personagem-narrador, de balanço da existência, no limite, para tratar da velhice, da partida e do amor impossível.
O anjo negro, ao apontar em mim o que eu era, me revelou o espelho invertido. Olhei-me, então, no que eu era e abandonei as fantasias. Por equivalência, nos textos literários e na vida, as fantasias não suportam os ventos e os sopros. A despeito das equivalências, as aparências enganam, no entanto, no espelho invertido, estamos prontos para comer a carne e o espírito. Perfeito, como sou também fogo;intui, caso não coma a carne e o espírito, certamente, não comerei nada. Assim e em círculos abertos, olhei detidamente a minha esposa que flutuava no sono. O anjo da negrura ruflou , em mim, as asas, Deixei,então, deslizar as mãos pelas carapinhas da amada.
O sono era profundo; pensei em acordá-la, a gosto, sem pressa. Valendo-me do que éramos,carne e espírito; segui em silêncio e sinuosamente para deslindar os riscos. A amada, entre altos e baixos, viu o sol, no entre acordar e sonhar, na boca que come o céu e o inferno.
(*) Fausto Antonio é escritor, poeta, dramaturgo e professor da Unilab -Bahia.
Uma resposta
Sempre aprecio seus textos, reflexões, contos ou apenas desabafos. Na velhice, estou a caminho de, ou estou dentro não sei. O que sei, que um estágio da vida, que contém toda uma história da existência de uma encarnação, é que essa fase proporciona a liberdade. Na .Inha época, a velha, era a caduca, caduca a, caduca a para divertir -se com os remendos das histórias e fantasias. Agora as idosas atuais, trabalham, viajam , frequentam academias, teatros e se colocam como donas e autoras de sua própria vida. Assim caminhamos como humanidade anônima que procura sem cessar alguma verdade, alguma coerência no sentido de sua caminhada , de sua estadia em um planeta ou um caos? Talvez um planeta caótico que abriga uma natureza diversa, transversa inversa a lógica humana.