Por Marcos Jakoby (*)
Quaquá escreveu um texto, publicado na Carta Capital e disponível ao final, onde afirma que o “governo Lula viveria um momento decisivo” e de que “a reconstrução do País exige mais do que resistência: demanda estratégia, articulação e um projeto de longo prazo” e isso foi possível nos primeiros governos Lula em razão de uma “peça-chave”, José Dirceu, que teria sido responsável por uma “engenharia política ao articular uma maioria parlamentar que garantiu governabilidade, mesmo sob ataques das elites conservadoras”. Ainda acrescenta que a “base que o então ministro-chefe construiu foi essencial para vitórias consecutivas da esquerda”.
Vamos então recapitular rapidamente a atuação de José Dirceu.
Sua atuação, sem sombra de dúvidas, foi “peça-chave” para a alteração da linha política do Partido. Foi a partir da sua presidência em 1995 que o PT foi gradualmente abandonando um programa e uma estratégia que tinha como núcleo a realização de reformas estruturais, articuladas com a construção do socialismo, e o acúmulo de forças, que combinava luta institucional, mobilização social, hegemonia cultural e ideológica e a construção partidária. O exercício de um possível governo fazia parte de uma luta maior, para tornar a classe trabalhadora a classe dirigente em nosso país.
José Dirceu e o chamado “campo majoritário” abandonaram a perspectiva das reformas estruturais. A luta pelo socialismo foi relegada para um horizonte bem distante e uma etapa histórica distinta. O programa passaria a ser antineoliberal, a luta centralmente institucional, as alianças passariam a incluir setores da classe dominante e o objetivo não era mais fazer da classe trabalhadora a classe dirigente em nosso país, mas sim conquistar sucessivos governos, com melhorias graduais, até que um dia estaria colocada a possibilidade de lutar pelas reformas estruturais e pelo socialismo.
Foi com essa linha, em termos gerais, que conquistamos o governo nas eleições de 2002. Dirceu foi um dos principais coordenadores da campanha. Durante a transição institucional de governo (outubro a dezembro daquele ano), assumiu por delegação do então presidente eleito Lula, o cargo de coordenador político da equipe de transição, com a tarefa de coordenar as articulações com partidos políticos a fim de formar uma base de sustentação para o novo governo.
Em novembro de 2002, foi indicado para assumir como Ministro-Chefe da Casa Civil. Tido como um dos ministros mais fortes do governo, no dia 16 de junho de 2005, pediu demissão do cargo de ministro. Sua demissão ocorreu em meio à crise política do chamado “mensalão”, que tinha justamente a ver com a “engenharia política” para formar “maioria” no Congresso. A crise só não se agravou mais em não redundou num processo de impeachment do presidente Lula porque a direita optou pela tática de “deixar o governo sangrar” e buscar vencer as eleições de 2006.
Entretanto, foi entre 2005 e 2006 que o governo recuperou a iniciativa, com mudanças na política econômica, e chegou em condições políticas de vencer as eleições presidenciais.Com o afastamento de Dirceu no primeiro escalão, seu lugar foi ocupado por Dilma Rousseff. O segundo governo Lula seria possivelmente o melhor momento de nossos governos.
Até então, a política-econômica comandada por Palocci, e sustentada por José Dirceu, era de buscar um ajuste fiscal na perspectiva de alcançar superávit-fiscais para pagamento dos juros da dívida. Algo a ver com os dias atuais. A guinada a um “ensaio desenvolvimentista”, que viria a seguir, foi uma resposta à crise e comandada por Dilma, tanto é que ela viria a ser o nome para suceder Lula em 2010.
Contudo, essa guinada não rompeu com os limites da “estratégia” construída por Dirceu e maioria do partido. Não conseguiu construir as condições políticas para resistir ao golpe em 2015-16. Por várias razões. Entre elas, porque mesmo nos melhores momentos, nem mesmo tentou-se realizar reformas estruturais que democratizassem o sistema político-eleitoral, o Judiciário, as Forças Armadas, o oligopólio da mídia, entre outros aparatos de poder sob controle da classe dominante.
Na “engenharia” da governabilidade também não se apostava a valer na mobilização social, como parte da sustentação das mudanças e do seu aprofundamento. Pelo contrário, a aposta era na conciliação de classes, nas concessões e na busca em construir uma maioria no congresso a qualquer custo. Maioria que se converteu rapidamente em minoria quando o golpe se desenhou, demonstrando falhas graves desse tipo de “engenharia”. A bem da verdade, engenharia que funciona se o vento sopra a favor e se as mudanças não atingem os pilares da dominação e da exploração da grande burguesia.
Agora, com o vento novamente soprando contra, esse tipo de “engenharia” não será novamente suficiente. Porém, mesmo que o “cenário seja outro”, curiosamente o autor do texto, Quaquá, quer recuperar e ampliar a obra com a mesma engenharia. Prova disso são suas esperanças no “centrão”, como neste trecho: “Com a estabilidade cívica do Senado e a escolha de Hugo Motta para presidir a Câmara, com seu estilo ponderado, temos a oportunidade de construir uma relação ainda mais produtiva com o parlamento.”
Ou quando cita um “projeto claro para os próximos 20 ou 30 anos” e na “reindustrialização”, mas não faz uma referência na necessidade de enfrentar os interesses do agronegócio e do capital financeiro. Não explica como enfrentar o golpismo ou nem mesmo menciona a importância da organização e da luta popular. Nem mesmo menciona os limites da atual política econômica de Haddad, de ajuste fiscal, que tem sido um dos principais obstáculos para o governo no momento e para um ciclo de crescimento e de desenvolvimento de “longo prazo” e não fique “reféns de ciclos curtos e instáveis, à mercê de descontinuidades”. Aliás, José Dirceu também tem respaldado essa política do arcabouço fiscal e do déficit zero.
Em resumo, o importante seriam “bons engenheiros”, capacidade de “articular” com o “parlamento” e um “plano de metas” capaz de transformar o Brasil em uma “potência” do sul.
Certamente a esquerda e o PT precisam formular muito mais em termos estratégicos, visando a “reindustrialização”, o “desenvolvimento” e a “integração regional”. Mas nessa formulação há que se considerar reformas que garantam um “desenvolvimentismo” de novo tipo, capaz de reduzir estruturalmente as desigualdades sociais e a redistribuição da renda e riqueza. E há que se considerar a reação da classe dominante, com ou sem reformas, o que coloca em questão como ampliar o poder da classe trabalhadora e reduzir o da burguesia. Questões que passam à margem do engenheiro, digo, autor do texto.
Vivemos realmente um “momento decisivo”, por isso, esperamos que o PED possa contribuir para irmos além.
(*) Marcos Jakoby é professor e militante petista
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SEGUE O TEXTO COMENTADO
Zé Dirceu faz falta a Lula 3, que precisa virar Lula 4 – Washington Quaquá (Carta Capital)
O governo Lula enfrenta um momento decisivo. A reconstrução do País exige mais do que resistência: demanda estratégia, articulação e um projeto de longo prazo. Essa situação nos leva a refletir sobre o primeiro governo Lula (2003-06), quando José Dirceu foi peça-chave na engenharia política ao articular uma maioria parlamentar que garantiu governabilidade, mesmo sob ataques das elites conservadoras. A base que o então ministro-chefe da Casa Civil construiu foi essencial para vitórias consecutivas da esquerda e para que o País seguisse crescendo na primeira década do século.
Dirceu formatou um modelo de alianças amplas que permitiu ao governo superar barreiras históricas e começar a mudar de fato a vida do povo brasileiro. Hoje, sua experiência faz falta, pois o governo precisa retomar o controle da narrativa política e consolidar uma base sólida para garantir avanços e mudanças cruciais.
O cenário é outro. O peso inédito da extrema-direita no Congresso e nas urnas amplificou o desafio da governabilidade. O estrago produzido pela Lava Jato não foi apenas político, mas econômico. Empresas estratégicas foram destruídas, a política foi criminalizada e o Brasil perdeu espaço na disputa global por desenvolvimento. O pior produto daquele denuncismo inconsequente, no entanto, viria anos depois, com a ascensão de extremistas que fizeram de tudo para sufocar nossa democracia, embalados por uma elite que renunciou aos últimos pudores para aderir ao golpismo.
A quarta vitória do presidente Lula nos resgatou do obscurantismo. O Brasil será um eterno devedor do patriotismo e da dedicação deste grande líder à causa democrática. O atual governo ainda conseguiu aprovar medidas para recolocar o Brasil nos trilhos, especialmente a reforma tributária. Com a estabilidade cívica do Senado e a escolha de Hugo Motta para presidir a Câmara, com seu estilo ponderado, temos a oportunidade de construir uma relação ainda mais produtiva com o parlamento. Mas é preciso agir para não perder o bonde.
O desafio vai muito além do governo Lula, do PT ou das forças progressistas. Sem um projeto claro para os próximos 20 ou 30 anos que convença o País de que é para valer e que valerá a pena, o Brasil corre o risco de nadar e morrer na praia. Outras nações, mesmo diante de grandes desafios internos, já estão pisando no futuro, enquanto o Brasil fica preso a crises políticas intermináveis, sem avançar em inovação, reindustrialização e desenvolvimento sustentável.
A esquerda e o PT precisam discutir menos comportamento e falso moralismo policialesco, entendendo que o papel das polícias não é fazer proselitismo contra políticos, mas enfrentar a bandidagem e o crime organizado sem pena e de forma implacável. Precisamos mesmo é de pisar no acelerador do desenvolvimento, explorar o petróleo da margem equatorial, avançar na industrialização do agronegócio e da agricultura familiar em larga escala, reformar as universidades para que colem de vez no desenvolvimento e na inovação da indústria. Enfim, sair das pautas laterais e entrar nos problemas centrais do País.
A história mostra que, quando a esquerda governa com estratégia e articulação eficiente, o Brasil avança. Não podemos continuar reféns de ciclos curtos e instáveis, à mercê de descontinuidades. O País precisa de um plano claro para fortalecer a economia, recuperar a capacidade de planejamento e garantir avanços sociais duradouros. Goste-se ou não, José Dirceu sempre foi um formulador desse pensamento dentro da esquerda. Sua visão sobre soberania nacional, desenvolvimento e integração latino-americana continua ecoando nos debates internos do governo. O embate entre uma política desenvolvimentista séria e a histeria das pressões do mercado reflete essa disputa.
Lula já é uma figura histórica, mas o Lula 3 precisa virar Lula 4 e deixar como legado um plano de metas que mobilize as forças econômicas, sociais e culturais por décadas em torno de um projeto de desenvolvimento nacional com início, meio e fim: o Brasil potência do Sul, sonhado por gerações.