Comunista é xingamento esvaziado de conteúdo, a não ser ofensa. Segundo os Atos dos Apóstolos, o cristianismo primitivo nasceu sob ética econômica que abolia a propriedade, mas isso é ignorado.
A palavra comunismo está em tribunais, em palanques, em púlpitos, na imprensa, nos bares e na nossa imaginação. Em uns, causa estremeções de repúdio; em outros, calafrios de satisfação. Adquiriu poderes excepcionais, aterrorizando os que se alinham politicamente à direita no espectro político, hoje recheado de evangélicos de convicção ou de conveniência.
Esse vocábulo está despojado de seu conteúdo político-econômico, com imprecisão quanto à compreensão do seu significado, que passou a ter dimensão trágica, acompanhada de excessos desproporcionais e irracionais.
Conservadores moderados e extremistas associam comunista a tudo que é mau (na opinião deles): os inimigos, perseguidos com violência. O termo marca opositores de forma negativa, como se pensar diferente fosse doença incurável, um defeito moral ou religioso.
Comunista na opinião de Silas Malafaia, por exemplo, é a senadora Eliziane Gama, relatora da CPMI dos atos de 8 de janeiro 2023. Ocorre que a senadora é da mesma tradição religiosa do pastor, o que o não impediu de insinuar que ela deve ser expulsa de sua igreja e que os maranhenses não devem mais nela votar[1].
Tudo pelo fato de ela apresentar um relatório contrário às estridentes opiniões dele. Malafaia não hesita em defecar impropérios desconexos, em possessão de absoluto descontrole. Aliás, em outro vídeo, tinha já criticado Lula pelo fato de o Presidente ter confessado simpatia ao comunismo, sendo socialista confesso; o pastor, em tom apocalíptico, disse que era melhor ser fascista e nazista a ser comunista. Esse falso pastor já se vendeu a Mamon, há muito.
No Brasil, abolicionistas foram considerados comunistas, talvez pelo fato de defenderem a liberdade e por rejeitarem a propriedade de seres humanos! Também o positivista Benjamin Constant foi acusado de comunista, em 1871, por reivindicar educação para deficientes visuais![2]. A elite brasileira escolheu um inimigo e a ele atribuiu os males do mundo. A simples pronúncia do termo provoca descontrole recheado de virulência.
Afinal, o que é comunismo? Em termos simples, é “doutrina política e económica que preconiza a propriedade coletiva dos meios de produção e a abolição das classes sociais”[3], concepção que resulta das formulações científicas de Marx sobre a ascensão e o triunfo do capitalismo industrial, que se sustenta na alienação pelo trabalho e no conflito entre os detentores dos meios de produção e os trabalhadores.
Contudo, como princípio de organização social, ideais comunistas não foram criados por Marx; já eram praticados por indígenas da Américas, por comunidades africanas e por outros grupos culturais, muito antes de Marx, por inspiração em princípios de comunhão fraterna.
Talvez tenha sido formulado pela primeira vez na tradição ocidental em A República, de Platão (séc. IV a. C.), para quem o Estado ideal não deveria admitir a propriedade privada nem a família, a fim de que interesses consanguíneos afetassem o bem público.
Para o cristianismo, conforme atestam os Evangelhos, os pobres são bem-aventurados e herdeiros do reino de Deus (Lucas 6.20); os ricos para merecê-lo precisam vender seus bens e dar o resultado aos pobres (Marcos 10.21). Jesus condena a riqueza (Mateus 6.19-21), em conformidade com o que o apóstolo Paulo ensina em 1Timóteo 6.10: “Porque o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e atormentaram a si mesmos com muitas dores”. Está lá: o amor ao dinheiro provoca desvio da fé.
Há outros trechos bíblicos esquecidos pelos anticomunistas, como este de Atos dos Apóstolos 2.44: “Todos os que criam estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo entre todos, à medida que alguém tinha necessidade”.
Esse elevado estágio espiritual coincide com a renúncia à propriedade privada, o que mais assusta anticomunistas. Não seria isso uma contradição? É curioso notar que o imaginário cristão de redenção, como superação ideal das carências humanas (figurada na ideia de céu), se firma na abolição da propriedade privada, em harmonia comunal e perene.
Essa foi a inspiração utópica de reformadores cristãos, muito antes de Marx, propostas por ordens monásticas diversas, pelos albigenses (séc. XII-XIII), pelos valdenses (séc. XII), por Joaquim de Fiore (séc. XII) e por Thomas Münzer (séc. XVI), dentre tantos outros exemplos.
A partir de meados do século passado, a Teologia da Libertação renova aspirações de justiça e de igualdade, inspirada nos profetas clássicos, no êxodo bíblico e em Jesus para denunciar e combater o pecado estrutural do capitalismo, promotor de perversa violência, como o trabalho análogo à escravidão e o trabalho infantil. E, pasmem: quem a isso se opõe é comunista!
A Teologia da Prosperidade inverte prioridades; ela lê a Bíblia de forma seletiva e propõe o acúmulo de riquezas, o que reforça a ordem capitalista, em absoluto desacordo com os ensinos de Jesus. Esse movimento se combina com a emersão ostensiva de setores da ultradireita política, evangélica e anticomunista; assimila discursos de ódio; prega valores racistas; persegue minorias e comunistas, como visto na pregação do senhor Malafaia.
Morreram as utopias. O ideal de comunhão universal já não inspira, com a morte da ética econômica cristã primitiva; virtude virou defeito. Mamon venceu Cristo.
Dizer que Deus é comunista é, a rigor, um anacronismo; é entender outro tempo com categorias mentais do nosso, pois comunismo, enquanto concepção econômica, política e ideológica, é produto do capitalismo industrial moderno.
Contudo, se for considerado o princípio filosófico e religioso e a motivação à construção de igualdade e justiça sem a hierarquização brutal promovida pelo acúmulo de bens materiais, pode-se dizer que a comunidade cristã primitiva se parece com o que preconizam movimentos sociais, políticos e econômicos que se alinham ao comunismo. Assim, se o cristianismo primitivo, como querem os cristãos, foi implantado por Deus, então Deus é comunista.
Enxertado por ideias extremistas de verniz nazifascista, o capitalismo é a antiutopia, a morte da solidariedade e da esperança. É o sistema que melhor se ajusta às misérias humanas. O Deus comunista evadiu-se deste mundo, oferecido como sacrifício a Mamon. Espera-se que agentes de carne e osso, comprometidos com a igualdade e com a justiça, restituam o brilho apagado das primeiras gerações cristãs, tão necessário à redenção da humanidade perdida.
(*) Paulo Sérgio de Proença é professor da Unilab-BA
[1] https://www.youtube.com/watch?v=jlD5sxR10yQ.
[2]https://revistaforum.com.br/opiniao/2020/5/13/os-abolicionistas-eram-chamados-de-comunistas-74940.html
[3] https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/comunismo.
Respostas de 4
Carlos Nunes: muito obrigado pela indicação bibliográfica. Vou ler.
Deus é comunista antes mesmo de enviar Cristo. Talvez a primeira experiência comunista da história foi o estado hebreu do êxodo até Samuel.
Recomendo a leitura de A República Comunista Cristã dos Guaranis, de C. Lugon. Forte abraço, amigo Paulo!
Parabéns!