Dirceu, meu amigo e a turma do “tudo ou nada”

Por Valter Pomar (*)

Uma das coisas mais bizarras das cortes é a arte da interpretação. Isso era assim nas cortes da realeza, mas continua sendo assim nas cortes mais ou menos republicanas, em que ministros, assessores, jornalistas e outros menos cotados se dedicam a interpretar as palavras do chefe (e, às vezes, dos familiares do chefe).

O bulício dos áulicos incomoda aqueles que acreditam – caso deste que vos escreve – que as vezes um charuto é apenas e tão somente um charuto. Mas, às vezes, aparece um intérprete que nos faz pensar. É o caso de um amigo que, hoje, ficou preso num elevador e, na falta de coisa melhor para fazer, especulou o que vem a seguir.

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… numa reunião com reitores, o presidente Lula fez uma crítica à turma do “tudo ou nada”.

Naquele momento, muita gente entendeu a crítica era dirigida ao movimento grevista dos docentes e técnicos de universidades e institutos federais.

Acontece que o presidente é uma pessoa bem-informada e certamente sabe que as reivindicações do movimento grevista são modestas.

Portanto, o presidente estava equivocado. O que, obviamente, é um total absurdo.

A verdade, entretanto, está lá fora (do elevador) e seria a seguinte: o presidente, como todo sabemos, é um mestre dos recados. E o recado, no caso, estaria sendo dado não para os grevistas, mas para a direita.

Acontece que o presidente previu, acertadamente, que a direita brasileira (tanto aquela que finge ser civilizada, quanto a outra) desencadearia uma ofensiva em toda linha.

Detalhes desta ofensiva estão descritos aqui: https://revistaforum.com.br/opiniao/2024/6/12/maior-crise-do-governo-ate-agora-lula-numa-encruzilhada-por-mauro-lopes-160384.html

Nesta ofensiva, há de tudo: o setor financeiro e o agronegócio atacando Haddad; o presidente da CNA defendendo “dar um basta nesse governo”; o oligopólio da comunicação transformando a maior parte do dinheiro da publicidade governamental, em ataques contra o governo; a turma do Lira inaugurando nova sessão de pautas bomba; o presidente do Banco Central fazendo campanha presidencial.

Faz parte desta ofensiva, também, a ministra Simone Tebet. Esta, mostrando a quem serve e para o que serve, foi à público ditar os termos da capitulação: se o governo quiser sobreviver, teria que fazer profundos cortes no orçamento, negociar os pisos constitucionais da saúde e da educação, assim como desistir da vinculação dos reajustes entre salário-mínimo e aposentadorias.

Na lista dos termos da capitulação, tem ainda o apoio ao candidato de Lira à presidência da Câmara de Deputados e a entrega, ao Centrão, de algumas vagas de ministro.

Por tudo isto e por muito mais, ficaria claro, explícito, óbvio, que quando o presidente Lula criticou a turma do “tudo ou nada”, a crítica não era dirigida aos modestos pleitos dos grevistas, mas sim era um ataque de Lula contra a gula infinita das elites, que querem tudo para elas e nada para o povaréu….

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A especulação estava nesse ponto quando a porta do elevador se abriu e meu amigo não chegou ao que de fato interessa: o que o presidente Lula fará a respeito? O que o PT e a esquerda como um todo farão a respeito?

Inspirado nesta especulação e saindo à busca do “que fazer”, deparamos com um texto do ex-ministro José Dirceu, considerado por alguns “o grande comandante” e, por outros, “um dos grandes responsáveis”.

O texto, intitulado “Impasses e saídas para o momento político”, pode ser lido aqui: Impasses e saídas para o momento político – Ultima Hora Online

A maior parte do texto de Dirceu gira em torno de uma tese: não basta “arrumar a casa” do governo, é preciso “retomar a aliança com a frente de partidos que elegeu”, apresentando “um programa de desenvolvimento do país objetivo e factível, capaz de mobilizar em torno dele os diferentes setores da sociedade: empresariado, trabalhadores, academia e classes médias”.

Que o governo precisa “arrumar a casa” e que a solução está no “desenvolvimento”, creio que, a essa altura, ninguém duvida.

Mas será que basta “retomar a aliança”? Esta aliança, vamos lembrar, deu em 2022 nesta correlação de forças que está aí. Portanto, é necessário explicar como é que, em 2024, “retomar a aliança” alteraria para melhor a correlação de forças que está dada. E precisaria explicar, também, por qual motivo os que estão abandonando a aliança, achariam melhor voltar para ela.

Lembramos que, para que um programa de desenvolvimento seja “objetivo e factível”, é preciso um imenso investimento público e privado, internacional e nacional. Quem paga a conta, escolhe a música. Como o governo vai pagar a conta, se a política monetária e a política fiscal são, ambas, restritivas? E como alterar estas políticas, na atual correlação de forças?

Segundo entendi, a resposta de Dirceu é a de que faltaria ao governo “foco e interlocutores”, inclusive uma “efetiva articulação de agentes do governo com a indústria brasileira e parte do agronegócio”, um “comando político subordinado diretamente ao presidente”, comando este que “faça a interlocução com o empresariado, os trabalhadores, a sociedade civil e os demais segmentos sociais”, colocando em campo “todos os partidos e segmentos sociais que apoiaram sua candidatura no segundo turno”, “da esquerda à direita liberal”.

Para quem acredita nos dons da parola, este tipo de conversa cai como uma luva. Mas há vários sinais de que a direita não estaria dando muita bola para isso.

Evidentemente, tem coisa interessante e correta no texto de Dirceu, mas a solução por ele proposta lembra a tentativa de colocar a pasta dental de volta no tubo.

Afinal, a aliança de 2022 tinha como objetivo central derrotar Bolsonaro. Dentro daquela aliança, conviviam dois programas diferentes, um da esquerda e outro social-liberal.

Hoje, a esquerda está sendo atacada, a partir de dentro e a partir de fora do governo. Devido ao enfraquecimento da esquerda, as várias direitas não têm nenhum motivo para aceitar um acordo em torno do programa de 2022.

Portanto, mesmo que nosso programa máximo fosse aquele de 2022, para voltar àqueles termos seria necessário, primeiro, dar um freio de arrumação.

E este freio de arrumação não depende principalmente de melhorar a “interlocução” com o lado de lá. Depende de demonstrar a força do lado de cá. Isso exige ação combinada do governo e do PT, junto com toda a esquerda; exige outra postura nas instituições, a começar pelo Congresso nacional; exige uma verdadeira política de comunicação de massas; e exige mobilização de rua.

Em resumo: exige uma linha política diferente da que prevaleceu até agora.

Vamos lembrar que no carnaval deste ano o cavernícola parecia estar nas cordas, derrotado, prestes a ser preso. O que ele fez? Entre outras coisas, convocou aquele ato de massas na Avenida Paulista, em fevereiro, e outros menores país afora. Isso não resolveu todos os problemas dele e da extrema direita. Mas mostrar os dentes e rosnar alto deu seus frutos. Funcionou como freio de arrumação.

Por analogia, enquanto o governo e a esquerda não mostrarem seus dentes, vamos continuar na defensiva. E quando se está na defensiva, “interlocução” só serve para uma coisa: definir os termos da capitulação. Se entendi direito as notícias que me chegam, é o que Haddad já estaria negociando. Se for isso mesmo, assistiremos à mais uma vitória da verdadeira turma do “tudo ou nada”.

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT

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