Estratégia: rascunho 2

Por Valter Pomar (*)

Este texto é o segundo de uma série dedicada a debater qual deve ser a estratégia do Partido dos Trabalhadores.

Em discurso realizado na ONU, dia 24 de setembro de 2024, Lula afirmou que “2023 ostenta o triste recorde do maior número de conflitos desde a Segunda Guerra Mundial”. Os dois principais conflitos têm como epicentro a Ucrânia e a Palestina, respectivamente.

No dia 24 de fevereiro de 2022, teve início a “operação militar especial” contra a Ucrânia. Quase três anos depois, prosseguem os combates que envolvem de um lado tropas da Federação Russa e, de outro lado, tropas da Ucrânia com amplo apoio da OTAN, em particular dos Estados Unidos.

No dia 7 de outubro de 2023, combatentes do Hamas atacaram Israel, que ocupa ilegalmente território palestino desde 1948. Pretextando o direito a defender-se, Israel vem desde então promovendo terrorismo de Estado, não apenas contra a população de Gaza, de onde partiram os ataques do Hamas, mas também contra a Cisjordânia, o Líbano, a Síria e o Irã. Igual a Ucrânia, Israel conta com o apoio dos Estados Unidos.

No quesito conflitos militares, 2024 deve terminar pior do que 2023. Isso está vinculado a dois fenômenos distintos, mas interligados. Por um lado, a indústria militar e as guerras são componentes cada vez mais importantes da dinâmica capitalista moderna, especialmente nos momentos de crise. Por outro lado, a ameaça de guerra e/ou a guerra propriamente dita constituem parte essencial do esforço que os Estados Unidos fazem para tentar reverter o declínio de sua hegemonia.

A situação atual poderia evoluir para algo semelhante às duas guerras mundiais ocorridas no século passado, com o agravante de que agora armas nucleares possam vir a ser utilizadas? Ou o que teremos pela frente seria um processo mais ou menos longo de conflitos de pequena e média intensidade, regulares e irregulares, capazes de provocar grande letalidade e todo tipo de horror, mas sem chegar ao ponto de uma guerra total como a Primeira e a Segunda?

Há muitas e diferentes respostas para estas duas perguntas. A rigor, não há como ter certeza sobre o que pode vir a ocorrer, entre outros motivos porque até mesmo as justificadas medidas protetivas adotadas por quem é contra as guerras, servem de pretexto para uma escalada por parte de quem é a favor da guerra.

Mas não é certo que tudo seja incerto.

Por exemplo: em última análise, na base da militarização está a dinâmica capitalista, ou seja, a subordinação de toda a vida social ao objetivo de valorizar o Capital; as decorrências sociais e políticas das crises periódicas; o papel da indústria armamentista na acumulação em geral e nos momentos de crise em particular; a ação do imperialismo; as disputas interimperialistas e intercapitalistas. A afinidade entre capitalismo e guerra mundial é tão profunda que podemos concluir o seguinte: enquanto o capitalismo não for superado, a guerra seguirá nos assombrando.

Outro exemplo de que nem tudo é incerto: ao menos neste momento da história, a derrota do capitalismo passa por enfrentar os Estados Unidos. Os EUA são, ao mesmo tempo, epicentro do capitalismo mundial e da militarização. Seja por seu papel na desordem capitalista mundial, seja pelo estoque acumulado de armas e histórico de violência, seja pela importância que a indústria militar tem na sua dinâmica econômica, seja por usarem das armas como ferramentas para tentar interromper e reverter seu declínio como potência hegemônica, a conclusão é a seguinte: a eliminação ou pelo menos a redução dos conflitos militares passa pelos Estados Unidos.

Nesse sentido, há três possibilidades fundamentais:

i/uma pax americana, resultante da derrota da China, da Rússia e dos demais inimigos estadunidenses. Mas esse cenário seria uma paz precedida por enormes cemitérios e, muito provavelmente, acompanhada de insurgências variadas mundo afora;

ii/outra possibilidade seria uma mudança na conduta dos Estados Unidos, seja por uma vitória da esquerda estadunidense, seja por uma derrota militar do imperialismo gringo, seja por uma correlação de forças mundial que obrigasse os Estados Unidos a adotar uma postura mais comedida. A primeira hipótese ainda não se vislumbra, a segunda pressuporia a já citada pax dos cemitérios, a terceira é de difícil execução.

Sobre esta terceira possibilidade, a dificuldade reside basicamente em dois pontos:

i/os Estados Unidos não aguardam parados que se construa, ao redor deles e para nos proteger deles, um “cordão sanitário”. Pelo contrário, tomam medidas para impedir que a situação chegue ao famoso “ponto de não retorno”, a partir do qual a camisa de força se tornaria hipoteticamente insuperável;

ii/os Estados Unidos enfrentam imensas dificuldades para reverter o seu declínio nos terrenos econômico e tecnológico. Por isso, precisam criar conflitos militares, precisam deslocar os conflitos para o terreno das armas, onde ainda contam com vantagem relativa.

Os dois pontos citados anteriormente explicam por que os EUA atacam sempre, tornando de difícil execução a criação de um “cordão sanitário” que os obrigue a maior comedimento. Ao contrário de uma atitude passiva ou reativa, os Estados Unidos adotam, há tempos, a “teoria do dominó” e o “ataque preventivo”. E não se importam muito com a natureza política e social dos seus oponentes. O que lhes importa é saber se são oponentes. Motivo pelo qual sempre foi ilusão achar que seríamos tratados de forma qualitativamente diversa caso nos limitássemos a implementar um programa respeitoso ao capitalismo mais ou menos neoliberal e/ou aos marcos da democracia eleitoral modelo USA.

A natureza do nosso programa e as características de nossa democracia são variáveis importantes no que diz respeito a ganhar maioria entre nosso povo. Mas a variável principal que decide a atitude dos Estados Unidos a nosso respeito é a postura que adotamos frente ao lugar dos EUA no mundo. Na prática, um socialista revolucionário e um socialdemocrata sincero serão tratados da mesma forma caso enfrentem as regras unilaterais USA e caso questionem o papel do dólar.

A esquerda brasileira não tem uma atitude única frente aos Estados Unidos e a seus aliados. Dentre o leque de posições existentes, destacamos três:

i/aquela que não reconhece a existência do “imperialismo” ou, pelo menos, não opera com esta categoria no momento de construir e aplicar sua respectiva política externa (de governo) e internacional (de partido ou movimento). Os que pensam assim não constroem uma política para lidar com o imperialismo enquanto política de Estado; no máximo, adotam políticas para lidar com atitudes imperialistas adotadas por determinados governos. Mormente, reduzem o imperialismo ao militarismo; quando, na verdade, este último é uma decorrência daquele primeiro.

A conduta acima descrita é muito forte no ministério do governo Lula 3, inclusive entre os representantes da esquerda. É isto que explica, ao menos em parte, as expectativas (frustradas) que muitos manifestaram em torno da “revolução” que, supostamente, seria feita pelo governo Biden; as ilusões em torno da política interna e externa do Partido Democrata dos EUA; a tolerância com que são tratados os escandalosos vínculos de nossas forças armadas e de segurança com o Pentágono e com Israel; e a aposta que setores do Itamaraty seguem fazendo no relacionamento com a Europa, por exemplo no neocolonial acordo de livre comércio UE-Mercosul.

Evidentemente, tanto o imperialismo quanto as guerras do século XXI possuem diferenças frente ao que existiu no passado. E não há dúvida de que se pode e se deve explorar as divergências existentes entre os imperialismos e no interior de cada nação imperialista. Mas colocar em dúvida a existência e a relevância do imperialismo é negacionismo. E não estruturar nossa política internacional em torno do combate ao imperialismo nos torna desguarnecidos frente aos seus inevitáveis ataques. Vide, aliás, o que ocorreu no governo Dilma 2.

ii/a segunda posição é aquela que não reconhece o imperialismo estadunidense como nosso inimigo principal, atribuindo à Rússia e à China uma conduta que também deveria ser combatida com ênfase se não igual, pelo menos similar.

Esta segunda posição – tratar todos os integrantes do Conselho de Segurança da ONU como “farinha do mesmo saco”, por serem igualmente capitalistas e/ou imperialistas – é muito forte em alguns partidos de ultraesquerda, mas também dentro do PSOL e do PT.

Evidente que nossa política internacional não pode nem deve ser “seguidista” de ninguém. Não apenas por razões de princípio, mas também porque o inimigo de nosso inimigo nem sempre é, tampouco precisa necessariamente ser nosso amigo, além de poder vir a ser o inimigo de amanhã.

Evidente, também, que há e seguirá havendo muito debate acerca da natureza do Estado e da sociedade chinesa, bem como acerca de como caracterizar sua projeção externa. Ainda a esse respeito, vale lembrar que nos anos 1960 e 1970, o Partido Comunista da China chegou a classificar a URSS como “social-imperialista”. Contudo, sem prejuízo deste debate de fundo, a questão é relativamente simples: do nosso ponto de vista – brasileiro e latino-americano – não faz sentido algum tratar de forma similar a Rússia, a China e os EUA.

Perguntamos: quantos golpes, quantas invasões, quantas ações de ingerência a República Popular da Chin e a Federação Russa (antes dela, a URSS) praticaram na América Latina e Caribe?

No caso da China, é preciso levar em conta a objeção segundo a qual a expansão econômica dos chineses seria, em si mesma, imperialista. Para facilitar o debate, admitamos que fosse assim, ainda que neste caso tivéssemos que falar de um “imperialismo com características chinesas”, que entre outras diferenças não seria acompanhado – ao menos na América Latina – da ingerência política e militar típicas do imperialismo estadunidense.

Mesmo aceita a hipótese acima, ainda assim ficaria evidente que China e EUA não são casos similares, entre outros pelos seguintes motivos: a/no plano político e militar, é para nós muito mais fácil lidar com a China do que com os EUA; b/no plano econômico, existe a possibilidade – inexistente no caso dos EUA – de propor aos chineses e com eles tentar construir outro padrão de relacionamento entre nossos países, no sentido de contribuir para a reindustrialização do Brasil; c/ademais e principalmente, China e Rússia se enfrentam, em maior ou menor medida, com os EUA. Na ausência deste enfrentamento, a pressão sobre nós e sobre a América Latina seria muito maior. Do ponto de vista estritamente pragmático, China e Rússia podem ser nossos aliados contra os EUA. Logo, se decidíssemos praticar alianças diretas ou indiretas com os EUA, tendo como alvo China e Rússia, essa decisão seria útil apenas para os Estados Unidos, não para nós.

iii/uma terceira posição é aquela que propõe organizar a política internacional da esquerda em torno da luta contra a extrema-direita (ou neofascismo, ou simplesmente fascismo). Esta terceira posição é influente inclusive entre os que são anticapitalistas, entre os que reconhecem a existência e o papel deletério do imperialismo, entre os que enfrentam os EUA, mas consideram que haveria um inimigo principal a ser combatido: o fascismo/neofascismo/extrema-direita.

Para debater esta terceira posição, é preciso começar lembrando de algo óbvio: em grande parte, senão na totalidade dos países capitalistas, convivem dentro da classe dominante diferentes posições. Dentre elas, a extrema-direita, que continuou existindo mesmo depois da derrota do nazifascismo em 1945. Continou existindo, é bom lembrar, porque foi tolerada, protegida e utilizada em nome de combater o comunismo, especialmente a União Soviética.

Pois bem: o desaparecimento da URSS, em 1991, gerou, em muitos setores da esquerda, a expectativa de que teríamos mais paz e mais liberdades democráticas. Os expectantes imaginavam que a corrida armamentista seria detida e os imensos gastos militares seriam reconvertidos em investimentos produtivos e sociais. E a derrota final (ou, pelo menos, o tremendo enfraquecimento) do socialismo como alternativa sistêmica ao capitalismo tornaria possível uma tremenda ampliação da democracia, não apenas na URSS e no Leste Europeu, mas também em muitos países capitalistas. Afinal, não estando mais em risco o capitalismo, se tornariam desnecessários os golpes, as fraudes e as distorções que maculavam os chamados regimes democráticos. Como resultado disso, aumentariam as chances de a esquerda chegar ao governo pela via eleitoral. No caso da América Latina e Caribe, onde existia uma interdição de princípio contra a chegada da esquerda aos governos nacionais, os golpes virariam coisa do passado e tudo dependeria de a esquerda ganhar para si o apoio das massas.

As expectativas eram mais ou menos essas. Mas não foi propriamente isso o que aconteceu. A coincidência entre crise do socialismo soviético, ampliação das liberdades democráticas formais e ascensão do neoliberalismo gerou efeitos colaterais que resultaram num cenário muito mais complexo do que o imaginado por muita gente de esquerda.

Acontece que o neoliberalismo implica em ampliar a exploração da classe trabalhadora pelos capitalistas e, também, ampliar a exploração da periferia do mundo pelas metrópoles capitalistas. Em decorrência, o que ocorreria seria uma escalada de conflitos, menos paz e menos democracia, sem falar das agressões ao meio ambiente.

Claro que o processo não foi linear, nem homogêneo. Mas como apontou Lula no discurso na ONU, depois de décadas de neoliberalismo, cresceu em todo o mundo a presença da guerra e da extrema-direita.

A ascensão da extrema-direita não deveria ser motivo de surpresa. Algo parecido ocorreu nas décadas de 1920 e 1930. O fato é que, em inúmeros países, o acumulado econômico e social de quatro décadas de neoliberalismo tornou muito mais difícil hegemonizar a classe trabalhadora através de fórmulas tipo “trabalhe e melhorarás de vida”, fórmulas que tinham por detrás a crença de que o capitalismo permitia a ascensão social. Os bisavós e avós das atuais gerações acreditavam que sua prole tinha grandes chances de melhorar de vida. Já a atual geração tem a certeza de que sua prole tem grande chance de ter um futuro pior do que o passado. Até porque as pessoas, quando conseguem trabalho, trabalham cada vez mais e não conseguem melhorar de forma correspondente.

Se a classe dominante não fizesse nada a respeito, esta percepção poderia servir de combustível para o crescimento da esquerda. Mas, como sabemos, a classe dominante quase nunca deixa de fazer o que precisa ser feito em benefício dela mesma. Mesmo depois da URSS desaparecer, os Estados capitalistas vêm reforçando seu aparato militar externo e de segurança interna. Mesmo depois do desmanche do socialismo soviético e da adoção de políticas de mercado na China, os oligopólios de comunicação e cultura mantiveram e ampliaram sua campanha ideológica anticomunista, inclusive tratando como farinha do mesmo saco os socialismos revolucionários remanescentes e as políticas de bem-estar social de tipo socialdemocrata. Em inúmeros países, verificou-se o fortalecimento dos mecanismos de controle sobre os processos eleitorais, via oligopólio da comunicação, marketing despolitizante, regras restritivas e grana, muita grana. Investiram pesado na destruição e desmoralização de partidos, movimentos e organizações que tivessem vínculos com a emancipação da classe trabalhadora. Estimularam organizações de tipo empresarial e religioso. E onde nada disso foi suficiente para impedir vitórias eleitorais da esquerda, retomaram fórmulas mais ou menos vintage para controlar, sabotar, cooptar e quando necessário derrubar eventuais governos de orientação popular. No final das contas, a ampliação das liberdades democráticas se limitou ao plano dos procedimentos formais: depois de 1991, mais pessoas passaram a participam de processos eleitorais ao estilo estadounidense.

Frente a tudo isso, houve diferentes reações na esquerda. Uma destas posturas foi a de mudar de lado. Outra foi rebaixar o programa. Uma terceira foi a integração no sistema político eleitoral americanizado. Mas houve também quem resistiu a isto, das mais variadas formas.

Mas quando se olha a situação do ponto de vista da classe trabalhadora, das grandes massas do povo, o que se percebe é que cresceu muito a descrença quanto aos processos eleitorais, enquanto mecanismos idôneos para melhorar a vida dos setores populares.

Claro que sempre houve setores populares absenteístas, assim como sempre houve setores populares cooptados pela classe dominante. Em cada país, apenas uma parte da classe trabalhadora tem consciência de classe. Entretanto, a hegemonia neoliberal também fez crescer a descrença com o sistema político eleitoral.

Mesmo em países como o Brasil, em que candidaturas de esquerda venceram 5 das 9 eleições presidenciais realizadas desde 1989, é óbvio que há uma crescente insatisfação com o sistema político, uma crescente degradação das liberdades democráticas, com campanhas cada vez mais custosas, com o empresariado privado seguindo na compra de mandatos, com o oligopólio da comunicação manipulando consciências, com o crime organizado interferindo, com o crescimento da violência política, com a judicialização da política e a partidarização da justiça, com a interpretação criativa da legislação eleitoral etc. Sem falar no cerco institucional e dos poderes fáticos que dificultam a vida de um governo de esquerda que queira cumprir seu programa.

Frente a tudo isto, simplesmente não dá para levar a sério quem teoriza acerca da superioridade abstrata da democracia realmente existente no mundo capitalista. Assim como não dá para aceitar a hipocrisia ou cegueira dos que exigem “normalidade exemplar” de processos eleitorais realizados sob sanções econômicas e cerco militar.

A degradação do sistema político e eleitoral típico da “democracia burguesa” não ocorre apenas na periferia do mundo capitalista. Vide o que está ocorrendo nos Estados Unidos, na disputa sem quartel entre trompistas e democratas. Não se trata de um problema deste ou daquele país, deste ou daquele líder, deste ou daquele partido. O problema é mais de fundo e já foi demonstrado nos anos 1920: em períodos normais, a democracia eleitoral burguesa talvez seja mesmo o melhor método para os capitalistas exercerem sua hegemonia; mas, em momentos de crise, parte crescente dos políticos profissionais a serviço da classe capitalista apela para a manipulação e relativização escancaradas de muitos resultados eleitorais. Vide a formação do recente governo francês.

É nesse contexto – de crise daquilo que alguns chamam de democracia liberal – que crescem as forças políticas de tipo fascista. Foi assim na década de 1920, está sendo assim um século depois.

À classe dominante, o neofascismo oferece mão dura e muita fé para manter a paz social, num ambiente de crescentes contrastes entre ricos e pobres. Aos setores médios, o neofascismo oferece menos lei e mais ordem contra os pobres. Aos setores mais lascados do proletariado, o neofascismo oferece um coquetel explosivo que inclui coachs, bets, crime, teologia da prosperidade e empreendedorismo popular. Tudo devidamente embalado como crítica de direita ao sistema. E tendo como som de fundo algo ao estilo Dança das Valquírias: o culto à violência e à morte.

Devido a esta natureza multifacetada, é ilusão achar que se pode combater e derrotar o neofascismo apenas fazendo apelos à paz e à democracia. Assim como também é ilusão acreditar que ele possar ser superado apenas pela oferta ampliada de empregos e políticas sociais. Vide o que vem ocorrendo no Brasil desde o final de 2022 até hoje. Os indicadores melhoram, mas a popularidade do governo Lula e a votação na esquerda não correspondem. Derrotar o neofascismo exige recompor o tecido econômico e social, mas no contexto de uma revolução política e cultural. Pois o neofascismo é um sintoma de um processo muito mais profundo.

Isto posto, é fato que a extrema-direita é mais ameaçadora para a esquerda, do que a direita gourmet. É mais ameaçadora, entre outros motivos, pelo círculo vicioso decorrente da existência dela: i/a extrema-direita disputa contra nós a influência sobre amplos setores populares; ii/a extrema-direita, quando vitoriosa, reduz ainda mais as liberdades democráticas do povo; iii/em nome de derrotar a extrema-direita, parcelas amplas da esquerda e da direita tradicional fazem concessões à direita; iv/e ao ficar cada vez mais parecida com a política tradicional, a esquerda perde ainda mais influência sobre amplas camadas do povo.

No plano da política externa, entretanto, a coisa é mais confusa. Tanto nos EUA quanto na Europa, o enfrentamento com a China e o apoio a Israel contra a Palestina unifica a maior parte da classe dominante. Já no caso da Ucrânia, há mais divergências. Na Alemanha, por exemplo, o partido neonazista diverge do apoio sem limites que vem sendo dado à Ucrânia contra a Rússia. Trump faz o mesmo.

A confusão também comparece no plano econômico. Na América Latina, as principais estrelas do neofascismo – Milei e Bolsonaro, por exemplo – são neoliberais, ultraliberais, libertarianos. Já na Europa e nos EUA, a extrema-direita tende a ser nacionalista e protecionista. Aliás, há crescentes sinais, em todo o espectro político vinculado à classe dominante dos grandes países imperialistas, de que o Estado como agente econômico direto está sendo reabilitado.

Moral da história: está correto tratar o neofascismo como inimigo principal; mas é indispensável enfrentar a principal causa do fortalecimento do neofascismo, a saber, as políticas econômicas neoliberais e a consequente degradação das liberdades democráticas. Por isso, o antifascismo consequente é também anti-imperialista, vincula democracia com soberania, democracia com bem-estar, democracia com desenvolvimento.

Por isso, erram os que – a pretexto de derrotar o neofascismo – adotam a “defesa da democracia” desvinculada do anti-imperialismo como critério fundamental nas alianças internacionais.

Aliás, é muito comum vermos defensores deste ponto adotando como “modelo” o sistema político existente nos EUA ou nalgum país da Europa. Ao fazerem isso cometem pelo menos três erros. O primeiro é aceitar modelos. O segundo é ocultar ou minimizar os imensos problemas existentes nos EUA e na Europa, inclusive no terreno das liberdades democráticas. E o terceiro e principal erro é não perceber que a tal “democracia eleitoral” está fazendo água por todas as partes.

Um sinal disto é que, no presente ano de 2024, a cúspide de conflitos militares coincide com uma “supermaratona eleitoral”: “da África à Ásia, das Américas à Europa (…) mais de 40 eleições nacionais ou transnacionais pelo mundo, em países que concentram mais de 40% da população mundial”. [A fonte da afirmação acima está aqui: 2024: o superano de eleições pelo mundo – Opera Mundi (uol.com.br)]

As eleições citadas são variadas e com resultados também variados. Muitas delas estão sendo diretamente afetadas pelas guerras, como é o caso das eleições nos Estados Unidos e nas europeias, onde “Palestina” e “Ucrânia” motivaram não apenas fortes debates, mas também explicam o comportamento de fatias importantes do eleitorado. Importante dizer que, nos casos citados, o comportamento de parte importante do eleitorado é forjado num ambiente em que operam mais ou menos livremente grandes empresas privadas de comunicação pró-Israel e pró-Ucrânia; ao mesmo tempo em que muitas vezes são censuradas e banidas posições em contrário ou meramente equilibradas. Aliás, em vários países autoproclamados democráticos, acontece de ser criminalizado quem se manifesta contra o sionismo.  Sem esquecer que na “democrática” Ucrânia o mandato de Zelenski expirou em 20 de maio de 2024; e o democrático Israel é conduzido por um cidadão que provavelmente estaria preso, não fosse a guerra.

A maneira como parte da mídia pró-Estados Unidos trata as ações de Israel contra a Palestina contribui para naturalizar não apenas a guerra, mas também o genocídio. Por um lado, isso legitima o desvio de crescentes recursos públicos em favor das empresas que produzem armamentos: como lembrou Lula na ONU, os “gastos militares globais cresceram pelo nono ano consecutivo e atingiram 2,4 trilhões de dólares”. Por outro lado, isso alimenta um ambiente político-cultural fascista, contribuindo para o crescimento da extrema-direita e da violência política nos processos eleitorais.

Resumo da ópera, pelo menos para nós aqui no Brasil e na América Latina e Caribe, é que precisamos saber de que lado cada movimento, partido e governo está, na batalha principal, que é contra o imperialismo. E precisamos pensar em termos de força real, não apenas institucional. Porque, no final das contas, será esta força real que vai decidir a parada, e não apenas a força institucional medida nos termos da democracia liberal.

Assim sendo, uma estratégia para estes tempos de guerra precisa prever:

-a construção das condições necessárias à defesa de nossa soberania nacional, incluindo aí forças armadas que não estejam subordinadas aos EUA, como é o caso (hoje) do alto comando das nossas;

-a construção de alianças fortes com as forças políticas antiimperialistas que atuam no nosso entorno imediato (América Latina e Caribe), motivo pelo qual o Foro de São Paulo deve continuar sendo uma prioridade na nossa política internacional e a integração regional deve ser reconstruída como viga mestra de nossa política externa;

-a construção de relações com as forças políticas antiimperialistas que atuam no chamado Sul Global (África, Ásia), com prioridade para China e Rússia;

-a solidariedade com todas as forças que lutam contra os Estados Unidos e seus aliados, a começar pelo povo palestino.

Evidentemente, há contradições entre nossos potenciais aliados anti-imperialistas. Assim como há, dentre esses aliados, forças que coincidem mais ou menos conosco no que toca à defesa do socialismo e das liberdades democráticas. Mas o tratamento dessas “contradições no seio do povo” não pode nos levar, nunca, a fazer alianças com aqueles que empurram o mundo para a catástrofe.

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT

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