Por Manuel Domingos Neto (*)
Lula considerou Múcio Monteiro o mais hábil dos ministros da Defesa. Referia-se ao cumprimento do papel que lhe atribuíra, de apaziguar a caserna excitada.
Político de direita, apoiador da Ditadura, defensor de golpistas acampados em torno de quartéis, jejuno em assuntos da pasta, Múcio empenhou-se em demonstrar aos comandantes a boa vontade do Presidente para com as fileiras.
Não assumiu de fato a posição que lhe competia, de formulador e condutor de política pública: agiu como porta-voz das corporações.
Essa semana Múcio desautorizou a política externa de Lula posto que prejudicaria a Defesa. Reagiu à decisão presidencial de suspender provisoriamente a compra de material de artilharia da empresa Elbit Systems, sediada em Israel. Insinuou, apelativamente, que essa posição discriminaria o “povo judeu”.
Desde quando a Defesa pode prevalecer sobre a política externa? Força militar existe para amparar decisões da chefia de Estado.
Para ser eficaz, a Defesa Nacional precisaria conjugar-se às variadas funções públicas.
Em abrangência e complexidade, talvez a Defesa rivalize apenas com a Política Cultural, que responde em boa dose pelo amor-próprio de uma ampla e diversificada coletividade.
Defesa não deve ser conduzida por comandantes guiados por viés corporativo.
Múcio considera que a diplomacia deve subordinar-se ao quartel. Assim, afronta o Chefe de Estado, que define a política externa.
O Ministro exprimiu a chateação de oficiais dedicados, durante anos, a preparar a licitação que resultou na escolha do obuseiro Atmos 155/52, montado sobre um veículo tcheco e apto para usar munição produzida por países da Otan.
A empresa brasileira Ares Aeroespacial e Defesa foi definida como montadora das peças e responsável pela manutenção técnica.
Ao preparar a compra do obuseiro, o Exército não levou em conta a possibilidade de o Brasil desvencilhar-se do esquema militar comandado por Washington.
Desde a Segunda Guerra, a Defesa brasileira nunca foi objetivamente pensada para atuar fora do arco da Otan.
Os comandos sempre arguiram fantasiosa isenção ideológica. Imaginam-se portadores de racionalidade técnica refratária às paixões, tidas como abomináveis.
Incorporaram o discurso conservador, usando o termo “ideologia” para carimbar proposições estabelecidas na Constituição e na legislação internacional endossada pelo Estado brasileiro.
Negociar armas com beligerantes é sempre decisão estratégica ideologicamente calcada. Postura sem cabimento seria reforçar a indústria de guerra de Israel e enviar socorro humanitário para suas vítimas.
O Estado israelita é acusado de crime hediondo. Temendo processos na Corte Internacional, a Alemanha, recentemente, suspendeu vendas de material de guerra para Israel. Negociar armas com Telavive é contribuir para aumentar a poça de sangue.
A bem da verdade, os obuseiros objeto de licitação recebem componentes de diversos países. Não são armas puramente israelitas.
No Ocidente, a indústria de armamento é fortemente internacionalizada. O avião de carga Embraer C-390 Millennium, orgulho nacional, usa componentes de diversos países, inclusive de Israel.
A decisão sobre compras de material de guerra é essencialmente política. Jamais pode ser resumida ao exame dito técnico. Implica definição de aliados estratégicos.
Ninguém negocia armas com potenciais inimigos. A compra suprime a capacidade de decisão do cliente e poderia seria inútil em decorrência dos problemas de manutenção.
Repito o que escrevi muitas vezes: comprador de armas estrangeiras vende a alma ao diabo. Foi Maquiavel o primeiro a mostrar a fragilidade do Príncipe equipado com armas alheias.
A manifestação de Múcio bateu de frente com a orientação de Lula, que condena a chacina de palestinos em Gaza e as bestialidades do governo israelense no Líbano.
Telavive classificou Lula como “persona non grata”. Se Lula abonasse a compra dos obuseiros incorreria, no mínimo, em falta de zelo com a dignidade brasileira. Absurda, portanto, a manifestação de Múcio.
Diante do desalinhamento explícito do Ministro, alguns acham que o Presidente deveria demiti-lo. Seria forte recado às corporações e para ser consequente, caberia revisão da Defesa Nacional, algo distante de suas intenções.
Com justa razão, muitos se indignaram com as palavras de Múcio, que bateu também nas prescrições constitucionais relativas à proteção dos povos originários.
Observando com cuidado as declarações do Ministro, ficou escancarada a dissonância da Defesa com a orientação governamental.
A gravidade desse desacordo se amplia em virtude do clima de guerra reinante na cena internacional. Revela o despreparo do Estado para defender a sociedade brasileira.
(*) Manuel Domingos Neto é professor da Universidade Federal do Ceará