Nós e a guerra fria, segundo Marcelo Zero

Por Valter Pomar (*)

Marcelo Zero escreveu e Brasil 247 publicou, no dia 17 de agosto, um artigo cujo título é uma pergunta.

O artigo pode ser lido aqui: https://www.brasil247.com/blog/o-brasil-deve-se-alinhar-a-um-dos-polos-da-nova-guerra-fria

Zero começa seu artigo com a seguinte afirmação: “O caso da Venezuela vem provocando críticas internas à política externa do Brasil. No plano mundial, está tudo indo bem. O Brasil vem recuperando celeremente o protagonismo regional e internacional perdido com Bolsonaro. Nosso papel de mediador é muito elogiado por diversos países e até mesmo pela oposição venezuelana.No plano interno, não obstante, às velhas críticas da direita se somam, agora, críticas de alguns setores da esquerda. Esses setores consideram que o Brasil deveria ser mais assertivo na luta contra o “imperialismo”, o que implicaria escolher alinhar-se ao “polo oposto”, na luta pelo poder mundial.

De onde eu observo, acho simplesmente incrível dizer que “no plano mundial está tudo indo bem”. Claro que a oposição venezuelana e seus aliados preferem ver o Brasil pedindo “atas”. Mas daí a achar que “está tudo indo bem” é confundir inimigo meio satisfeito com amigo do peito.

Deixemos a Venezuela de lado e vamos focar na questão proposta por Zero: o Brasil deve se alinhar a um dos polos da nova guerra fria?

Começo lembrando o seguinte: o que está em curso não é um remake da chamada guerra fria entre EUA e URSS. Por exemplo: o tipo de “ameaça” que a China representa para os Estados Unidos é muito diferente da “ameaça” soviética.

Mas há semelhanças. Uma delas Zero lembra: nos dois casos, ontem e hoje, os EUA não admitem terceiras vias.

Quero falar de outra semelhança: nem antes, nem agora, é possível tratar os dois pólos como simétricos.

Especialmente para nós, latino-americanos e caribenhos, os EUA são um velho e conhecido inimigo. Já a China, a depender de como a tratemos, pode ser uma contradição negativa ou positiva.

Se prevalecer a atitude da classe dominante brasileira, a China continuará sendo nossa grande parceira comercial: comprando nossos primários e nos vendendo manufaturados. Ou seja: contribuindo na prática, mesmo que não seja esta a intenção, para perpetuar a desindustrialização do Brasil. Mas se nossa atitude for outra, a China pode contribuir e muito para a industrialização nacional. O maior obstáculo para uma mudança nos termos da relação, é bom dizer, está aqui dentro do Brasil.

Portanto, concordo com Zero que seria um “erro estratégico” adotar uma atitude “binária, simplista e obsoleta”. Mas afirmo que também seria um erro buscar um “meio-termo” equidistante entre China e EUA. Até porque há situações em que é mais prudente descer do muro.

Concordo com Zero, também, no seguinte: o que vem em primeiro lugar são os interesses nacionais, que no nosso caso significam os interesses da maioria do povo brasileiro (os interesses nacionais do ponto de vista da classe dominante são outros). E, exatamente por conta dos nossos interesses nacionais, um de nossos objetivos estratégicos consiste em derrotar os EUA e construir a integração regional.

Existisse ou não a China, esse objetivo estratégico nacional-popular continuaria existindo. Pretender derrotar o imperialismo gringo não é praticar alinhamento binário com a China. Buscar derrotar o imperialismo gringo é alinhar com nossos interesses estratégicos nacionais.

O Itamaraty, óbvio, não concorda com isso. E Zero, se entendi direito, tampouco concorda.

Segundo ele, não deveríamos “investir em uma política externa confrontacionista com os EUA, a União Europeia etc. Com esses países, as oportunidades de cooperação são mais estreitas e sujeitas a maiores assimetrias e, muitas vezes, a imposições políticas inaceitáveis. Mas estão longe de serem inexistentes“.

Vale dizer que sou contra o “confrontacionismo”, assim como sou contra as guerras. Mas os confrontos existem, assim como as guerras. Não é por não gostarmos da realidade, que ela desaparece.

Vide o caso do acordo Mercosul-União Europeia. Trata-se de um acordo neocolonial, como disse várias vezes Celso Amorim. Sendo assim, por qual motivo não recomeçamos as negociações do zero? Por qual motivo insistimos?? Para não parecer “confrontacionistas”? Ou porque, no fundo, existe um setor da diplomacia brasileira que, a pretexto do não alinhamento, está na prática tentando recauchutar velhos alinhamentos??

Repito: não sou adepto do confrontacionismo. Quem busca confronto é o lado de lá. Não sou adepto de romper relações com ninguém. Muito menos defendo que saiamos por aí exigindo que os Estados Unidos adotem um sistema eleitoral decente.

Apenas estou afirmando que, a luz dos nossos interesses nacionais, devemos trabalhar para derrotar o imperialismo. E, em nome dos mesmos interesses nacionais, afirmo que não devemos trabalhar para derrotar a China. Portanto, afirmo que não devemos tratar de igual maneira os pólos em disputa, até porque eles são diferentes e visam objetivos diferentes.

Nada de meio-termo, nada de equidistância, nada de muro, nada de tucanismo na política externa.

Zero lembra e está correto, que “as grandes disputas mundiais criam espaços para o Brasil ocupar”. Verdade. Lembremos, por exemplo, da Segunda Guerra. O Brasil ocupou espaço, especialmente quando tomou partido na guerra. Foi derrotada a posição que defendia equidistância entre os pólos. Depois da Guerra, mudaram os alinhamentos internos e externos; toda a direita passou a defender o alinhamento  com os EUA. Já a esquerda propunha outra política externa.

Portanto, a cada situação, diferentes interpretações acerca do que seja o interesse nacional conduzem a diferentes políticas.

No momento atual, concordando mais uma vez com Zero, a industrialização é a pedra de toque de nossa política externa. A esse respeito, recomendo ler o artigo que escrevi na coletânea indicada aqui: https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/brasil-sob-escombros-152490

Nessa perspectiva, é correto dizer que “não podemos rejeitar, a priori, por motivos geopolíticos, nenhuma oportunidade de cooperação”. Entretanto, no mundo real as “oportunidades de cooperação” não são simétricas, até porque alguns (EUA, Europa) querem impor restrições e privilégios exorbitantes. O que nos obriga a aprofundar parcerias estratégicas com a China, enfrentar as pressões dos EUA/Europa e reafirmar como objetivo estratégico derrotar o imperialismo. Qualquer imperialismo.

Não perceber isso seria fazer do nacionalismo uma escolha “vazia e retórica ingênua”.

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT

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