Por Marcel Frison (*)
Pelo que pude observar nas redes sociais, em manifestações de dirigentes partidários e em conversas com militantes do PT, existe um significativo otimismo em relação às eleições municipais deste ano. Ou seja, há uma compreensão disseminada no conjunto do partido que colheremos muitas vitórias aumentando nossos governos municipais e espaços nas câmaras de vereadores.
Passei minha vida de militante ouvindo o famoso aforismo atribuído a Gramsci, que é necessário ter “pessimismo na razão e otimismo na vontade”. Outros dizem que Gramsci se baseou em afirmações de Romain Rolland, escritor francês.
Seja como for, a máxima é potente e mexe com nossas reflexões. No geral, era utilizada para mediar e aplacar os ímpetos esquerdistas, deterministas, ufanistas e economicistas tão comuns na esquerda.
Vou evocá-la no sentido contrário.
Talvez, o nosso problema é que estamos impregnados de “otimismo na razão e pessimismo na vontade” num desarranjo fatal para um partido (mesmo esquecendo-se das disposições socialistas, que caíram em desuso) que pretende mudar o Brasil e constituir uma sociedade democrática.
A passagem de um ano do ato terrorista e golpista realizado pelo movimento bolsonarista do dia 08 de janeiro de 2023 em Brasília foi lembrada não por um evento popular e massivo em defesa da democracia, mas, como alguém definiu apropriadamente, com um “convescote” de dirigentes e representantes dos três poderes entre outros convidados de renome.
Lula e o seu governo deram preferência a este formato, imagino, para sustentar o campo político-institucional que primeiro se formou (no terreno da política) para garantir a vitória para a presidência (incluindo, de maneira indireta, parcelas importantes da mídia tradicional) e depois resistiu ao golpe no terreno institucional.
A polarização que vivenciamos em 2022 durante a campanha eleitoral, foi entre o bolsonarismo e um campo difuso, capitaneado pela esquerda e por Lula, em defesa da República (de maneira genérica). Ou seja, a esquerda, grosso modo, defendendo o “status quo” e a extrema-direita querendo colocar fogo nas instituições de Estado.
Não preciso lembrar de que, historicamente, quem buscou revolucionar a sociedade e transformar profundamente o Estado (inclusive tentando colocar “fogo” nas suas instituições objetivas e subjetivas) foi sempre a esquerda, na medida em que, representavam ( e representam) instrumentos da dominação burguesa.
Conforme o que foi divulgado pelo sítio Brasil 247, enquanto eu escrevia este texto, Lula deu a seguinte declaração: “A esquerda criticava o sistema, mas passou a fazer parte do sistema. Mas hoje quem critica o sistema é a extrema-direita, como Milei e Bolsonaro”. Fico feliz que a análise é compartilhada pela nossa principal liderança política.
Bem, este é, na minha opinião, o lugar que ocupamos na chamada correlação de forças: um local de anteparo, de proteção dos paradigmas da democracia burguesa e, enquanto governo, na promoção de um desenvolvimento, no máximo, nacionalista.
O “pessimismo na razão” diria que isto é o possível a alcançar diante das circunstâncias, mas que a situação é muito ruim e distante daquilo que gostaríamos, e o “otimismo na vontade” nos impulsionaria a não se conformar com a realidade e buscar romper com as amarras.
No entanto, parece-me, que a compreensão predominante sobre esta situação é de que, às luzes de um “otimismo” na razão, nossa fronteira estratégica é defender a Constituição de 1988 (que foi mutilada de maneira atroz nas últimas décadas e que, mesmo quando estava inteira, no seu nascedouro, votamos contra por que era insuficiente). E que podemos contar sempre com a vigilância do “Xandão” e tudo vai dar certo.
No “convescote” promovido pelos chefes dos três poderes foi emocionante os efusivos discursos em defesa da democracia, porém me foi impossível relembrar de que eram, praticamente, os mesmos que tempos atrás sustentaram o golpe contra a Dilma e a prisão do Lula, com praticamente as mesmas teses em defesa da democracia.
Foi interessante também, ouvir de próceres do governo Lula, logo após a tentativa de golpe que o mesmo não aconteceu por que a maioria dos comandantes das forças armadas eram “legalistas” ou adotaram uma postura neste sentido.
Desculpem-me, a tese me parece extremamente frágil, primeiro, por que se fossem legalistas tinham obedecido suas próprias normas internas e retirado todos os civis que se aglomeraram em volta de seus quartéis. Ou simplesmente, teriam cumprido o dever e evitado os acontecimentos do dia 08 de janeiro, já que, com certeza, tinham pleno conhecimento do que aconteceria.
Prefiro acompanhar o raciocínio de Milly Lacombe, colunista do UOL, em seu artigo “Teria sido um golpe miliciano com apoio liberal” publicado em 11/02/24, em que a jornalista identifica com maestria a natureza dos protagonistas do golpe e que sugere uma condição marginal destes em meio ao “establishment” militar, ou seja, a turma do capitão (talvez, por ser apenas um capitão) que detém o protagonismo ideológico, mas não possui a liderança política capaz de se legitimar como dirigentes de um processo de tomada do poder pela força e as suas consequências.
Isto não quer dizer que os militares abdicaram, em nome da legalidade, de tomar o poder, mas que talvez, não consideraram o melhor momento ou que as lideranças não eram confiáveis. Afinal o capitão foi afastado do serviço, se não me engano, por seus desarranjos cognitivos.
E fico pensando se não são as mesmas motivações, no conceito de Faoro (1958), do“estamento burocrático” restante (formado pelos detentores dos mais altos cargos do Estado Brasileiro) quando se alinham à tão sublime defesa da democracia.
Aliás, desconfio (e me perdoem o anacronismo) que se a horda selvagem que invadiu as sedes dos três poderes apenas ocupassem os espaços, sem quebradeiras e ataques às obras de arte e peças históricas; também, se o bolsonarismo tivesse a mediação tática de não atacar o Supremo, ou pelo menos, não o fazer de maneira violenta, do tipo, defender o “enforcamento do Xandão em praça pública” (segundo denunciou o próprio Ministro em entrevista à Rede Globo), o desfecho seria completamente diferente.
O fato é que a “intentona” golpista, qualificada desta forma, se não me engano, pelo Valter Pomar, está longe de ter sido superada e pode ser reeditada a qualquer momento se as condições políticas estiverem favoráveis. Como por exemplo, uma vitória significativa do bolsonarismo, em conjunto com outras forças conservadoras, nas eleições municipais de 2024.
Ou se as manifestações bolsonaristas nas ruas se tornarem cada vez mais fortes.
Ou ainda, se as gradativas vitórias da extrema-direita no Congresso Nacional e/ou na sociedade se tornarem mais frequentes.
Entretanto, segundo as narrativas do “otimismo na razão”, as ações do governo Lula acabarão convencendo a população a aderir a uma onda vermelha de recuperação e ampliação dos nossos espaços de governo e parlamentares por todo o território nacional.
Deriva desta compreensão da realidade, desta esperança quase religiosa que contamina a maior parte das direções dos partidos de esquerda, em especial do PT, de muitos movimentos sociais e do Governo Lula, de que tudo se resolve a partir da ação governamental, e nos conduzem a um “pessimismo na vontade”.
Contraditoriamente (salvo considere que o lugar da esquerda seja ser parte do sistema) Lula recomenda que não se produza atos de protesto em relação ao Golpe de 1964, assim como ordenou que seus comandados (imagino, se dirigindo às forças armadas) não fizessem apologia do mesmo.
Esqueçamos, portanto, do golpe de 1964 e de tudo que este fato histórico representa na disputa ideológica atual, em nome do apaziguamento do país e sustentação do governo.
O espírito apaziguador, a doutrina “republicanista” e a lógica governista, que faz do governo um fim em si mesmo, lançam sinais para a base social e militante que o caminho principal, dentro do âmbito partidário é preparar o PT para disputar as eleições a partir dos limites da esfera político-partidária, dedicação plena na defesa do nosso governo (ou nossos governos) e de efeitos de marketing e publicidade; e na sociedade o alinhamento dos movimentos sociais às políticas públicas disponíveis.
As pessoas que estão lendo devem estar pensando, mas isto não é o lógico a fazer? Não foi sempre assim?
Não, não foi sempre assim, quando perseguíamos uma estratégia de ruptura com o sistema, os resultados eleitorais eram produto da luta social e da disputa de hegemonia e, por consequência, os movimentos sociais moldavam as políticas públicas, as mesmas nasciam dos enfrentamentos e emergiam como conquistas conscientes do povo.
O resultado é que faz décadas que não se produz nada de novo programaticamente, cada vez mais os movimentos e as organizações sociais são dependentes do Estado e os nossos governos mais conservadores. Puro pessimismo na vontade ou domesticação, como preferirem.
Depois ficamos indignados quando vemos bandeiras bolsonaristas nas janelas de moradias produzidas pelo Minha Casa, Minha Vida. E nos desesperamos com o avanço da extrema-direita.
(*) Marcel Frison é dirigente do PT de São Leopoldo (RS) e secretário de Cultura e Relações Internacionais do município