Por Gilsileide Piauilino
Apesar das estatísticas atuais evidenciarem que o principal delito cometido pelas/os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa é roubo (44,41%), depois tráfico de drogas (24,24%) e que os atos infracionais análogos a crimes contra a pessoa e que requerem uso de violência somam no total somente 16,34% (segundo o levantamento anual do SINASE 2014), há uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de nº 33/2012 que prevê a redução da maioridade penal sob a principal justificativa de aumento da participação de adolescentes e jovens em crimes considerados graves e hediondos. Atualmente a referida PEC se encontra em pauta na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal pronta para ser votada agora em 1º de novembro.
A dificuldade de entender que a inimputabilidade dessas/es adolescentes não significa uma impunidade contribui para os argumentos em defesa da redução da maioridade penal, somado ao discurso do aumento da participação em crimes graves, as/os colocando como jovens perigosas/os, violentas/os e homicidas, quando as estatísticas mostram o contrário. O que ocorre é o desconhecimento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, do Estatuto da Criança e do Adolescente e dos tratados e acordos internacionais ratificados pelo Brasil, nos quais há a responsabilização dos atos infracionais cometidos pelas/os adolescente e pelas/os jovens, no entanto, considera-se sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, o que traz medidas que distanciam do cárcere.
“Suspeito cor padrão”: a cor negra e o encarceramento
Fala muito usual entre os policiais no cotidiano das suas abordagens, a cor negra – por muitos, instituições, indivíduos, sociedade em geral – é associada ao banditismo, onde a criminalização das favelas que se opera em bases classistas e racistas, trazendo dentro desse universo o estereótipo da delinquência atrelado à imagem do negro, que por sua vez se torna um fator fundamental na atuação da polícia. Essa representação social dos elementos raça e classe social são justapostos historicamente nas famílias de classes baixas, sobretudo na assistência à criança e ao adolescente.
De maioria negra (55,77%), ainda segundo o levantamento anual SINASE 2014, o perfil das/os adolescentes em medida socioeducativa de internação repete o mesmo perfil da massa carcerária no Brasil, jovens negras/os e sem acesso aos direitos básicos. Assim como mostram os dados do levantamento do SINASE 2013, em relação à defasagem e evasão escolar, a maioria das/os adolescentes entre 16 e 17 anos tinha sua escolaridade somente até o ensino fundamental (86%), ou seja, já estavam em defasagem escolar antes mesmo ao cometimento do ato infracional. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN – junho 2014), 56% da população prisional são compostas por jovens entre 18 e 29 anos, a porcentagem de pessoas negras no sistema prisional é de 67% e oito em cada dez pessoas presas estudaram, no máximo, até o ensino fundamental (53%).
Percebe-se um problema estrutural em nossa sociedade, que está anterior ao ato infracional, dentre eles a destituição de direitos básicos à população negra das camadas populares, igualmente contribuinte dos impostos que subsidiam os serviços básicos, bem como uma tendência classista e racista que encarcera pobres e negras/os por tempo indeterminado. Segundo a pesquisa do Infopen (2014), 41% das pessoas privadas de liberdade estão ainda sem julgamento, a mesma proporção de pessoas em regime fechado. A redução da maioridade penal representa o não diálogo com a realidade desses dados expostos, o retrocesso de toda uma articulação nacional e internacional sobre o entendimento dos desdobramentos do ato infracional na infância e na adolescência.
O que está em jogo?
Com a possível aprovação desta PEC nº 33/2012 (pró-redução) retornaremos à realidade da década de 1964, onde em meados da ditadura foi criada a FEBEM calcada na Doutrina da Situação Irregular onde se encarcerava em massa adolescentes e jovens, predominando o modelo correcional-repressivo, modelo este já superado nos marcos legais de nossa sociedade, porém ainda presente no discurso conservador que ampara a discussão para aprovação da PEC. O ano da PEC que colocou em pauta a discussão sobre a redução da maioridade penal (PEC nº171/1993) é somente três anos após a criação do ECA, espaço temporal insuficiente até mesmo para produzir indicadores sobre os crimes e sobre o processo socioeducativo. Neste sentido, percebe-se que a questão de fundo é baseada no conservadorismo e no entendimento de que há uma classe eminentemente e naturalmente “perigosa”, “em perigo de o ser”.
A criminalização da juventude negra periférica está estruturada principalmente nesse discurso de que há classes sociais perigosas, na qual a ética capitalista separa os pobres dignos, aqueles trabalhadores que dignamente sustentam sua família, dos pobres indignos, que sem trabalho e renda (segundo essa ética, porque não se esforçaram o suficiente) recorrem aos benefícios do Estado, sob o estigma do favor e não de que é um direito social, e ao mundo do crime para sobreviverem.
No sentido de avançar no debate e análise de soluções, com a aprovação da PEC nº33/2012 estaremos indo na contramão ao caminhar da história brasileira, estaremos ignorando 27 anos de esforços para a mudança cultural e política de nossa sociedade em relação aos adolescentes em conflito com a lei, debatidos nacionalmente e internacionalmente e materializados legalmente no ECA e posteriormente em toda normativa legal que trata da criança e da/o adolescente.
A situação atual do Brasil, em crise financeira e crise política, favorece a aprovação da PEC pró-redução no Senado, pelo discurso conservador presente no Congresso Nacional, que se apropria do momento de crise para convencer a população de que temos que resolver a qualquer custo os problemas do país, frear a “onda” de violência, em um discurso de “segurança nacional” para que assim ele possa avançar e sair da crise, discurso este similar à ditadura militar e sem diálogo com a sociedade civil e as entidades.
A mobilização e resistência, tanto da sociedade civil, quanto das entidades representativas dos direitos das crianças e das/os adolescentes, crucial no momento de elaboração do ECA em 1993, se fazem necessárias para ampliar o debate sobre os retrocessos e suas implicações se aprovada a redução da maioridade penal para 16 anos.
A redução da maioridade penal representa o não diálogo com a realidade de todos os dados aqui expostos, o retrocesso de toda uma articulação nacional e internacional sobre o entendimento dos desdobramentos do ato infracional na infância e na adolescência.
Faz-se necessário o enfrentamento da realidade inócua e falida do sistema penal, enquanto segurança pública e reinserção dessas/es jovens, debatendo as causas e não somente as consequências da criminalidade infantojuvenil e desmitificar o cárcere enquanto solução do problema da violência no país.
Gilsileide Piauilino é Bacharela em Serviço Social pela Universidade de Brasília e militante do PT-DF