Rosário e o pacote

Por Valter Pomar (*)

 

Recomendo ler o texto de Miguel do Rosário, intitulado “O caos no debate econômico e a falta de trens no Brasil”.

O texto está aqui: https://www.ocafezinho.com/2024/12/04/o-caos-no-debate-economico-e-a-falta-de-trens-no-brasil/

Segundo Rosário, seria “saudável que tantos intelectuais e influencers queiram dar mostras de coragem e independência política, através de um posicionamento duro contra o que consideram erros do governo. Mas acho simplesmente inútil gastar energia com algumas coisas. Em minha humilde opinião, toda essa coragem e independência deveriam ser direcionadas para críticas a falta de investimento em infra-estrutura, especialmente na área de mobilidade urbana. (…) o problema brasileiro mais estratégico, e que mais corresponde à crítica de que falta ao governo um projeto nacional, é a falta de transporte sobre trilhos!”

Embora não concorde com o detalhe, concordo com o espírito: o principal problema do governo Lula está na seara do desenvolvimento.

Palavrinha, convém lembrar, que brilhou pela ausência no pronunciamento feito pelo ministro Haddad no dia 27 de novembro.

Temos algum crescimento, temos redução do desemprego, temos inúmeras outras coisas.

Mas seguimos absolutamente distantes de ter uma política de desenvolvimento que mereça este nome.

Se depender do que vem sendo feito, continuaremos sendo uma subpotência primário-exportadora e paraíso da especulação financeira.

O que Rosário não percebe é a relação direta que existe entre, por um lado, a ausência de desenvolvimento e, por outro lado, o chamado “arcabouço fiscal”.

O “arcabouço fiscal”, como o próprio Rosário reconhece, resulta de um “acordo” estabelecido “com os agentes econômicos (que financiam a dívida, dominam a opinião pública e exercem forte controle político sobre o congresso nacional), de praticar uma política fiscal responsável e sustentável”.

O resultado prático deste “acordo” é o seguinte: a dinâmica econômica do país continua governada pelo grande capital.

E como as duas frações dominantes do grande capital são a financeira e a primário-exportadora, no que depender deste “acordo” o país seguirá sem desenvolvimento e sem bem-estar social.

Alguém pode perguntar: como alguém de esquerda pode firmar um acordo deste tipo?

Na minha opinião, a resposta é: firmaram este “acordo” por acreditar que, em contrapartida, o lado de lá iria reduzir os juros, as grandes empresas privadas iriam ampliar os investimentos, os empregos gerados seriam de qualidade crescente e, no final das contas, ainda que devagar, iríamos ao longe.

Tudo isto com uma ajudinha dos Democratas USA.

Não foi bem isto o que aconteceu. Os juros não caíram, o setor privado é bem mais avaro do que se imaginava que seria, os empregos cresceram mas com remuneração muito baixa e exploração muito alta.

Mesmo assim, como sabemos, o PIB cresceu e o desemprego caiu. Isto é motivo de comemoração para nós, mas é motivo de preocupação para a turma da especulação. E aí vem a sequência inflação, alta do dólar e alta dos juros, tudo posto na conta do suposto desequilíbrio fiscal.

Tem desequilíbrio fiscal? Não, não tem.

Acontece que no tal “acordo” (leia-se, Novo Marco Fiscal ou, mais simplesmente, Arcabouço) foram estabelecidas metas demasiado ambiciosas. E, embora não tenha desequilíbrio fiscal, o governo  – para cumprir o tal “acordo” – é levado a fazer cortes.

Para a turma da especulação, estes cortes não seriam os verdadeiros cortes. Em parte por acreditar nisso, em parte simplesmente para ganhar dinheiro, a turma da Faria Lima mete a boca no trombone e aposta contra o Brasil, via câmbio e juros. Para eles, o “cara” seria Milei.

Já para uma parte da esquerda, os cortes são cortes. E recaem em grande medida sobre os setores populares. O que, além de ser injusto em si mesmo, não resolve nenhum problema, mas cria vários: não agrada a turma da especulação (vide pesquisa), não afeta os juros (que são a principal causa isolada de problemas fiscais), nem atinge como se deve e pode atingir os muito ricos.

E Rosário?

Por um lado, Rosário desanca Milei e os que acreditam nele. No geral, nisso concordo com Rosário, tirante por exemplo o fato dele tratar o presidente argentino como “cachorro morto” (no sentido político da palavra, óbvio): infelizmente, não é assim.

Por outro lado, Rosário elogia a “política econômica responsável” do governo brasileiro, que segundo Rosário não levaria adiante “nenhum corte violento e cruel nas despesas com educação, saúde e assistência social”. Rosário reitera que o “esforço fiscal do governo não implicou em nenhum corte de despesas sociais”.

Nesta questão discordo totalmente de Rosário.

Aliás, ele precisa escolher: ou não teve “nenhum corte”; ou não teve “nenhum corte violento e cruel”.

Brincadeiras a parte, vamos ao nó da questão. Segundo Rosário, haveria um “caos cognitivo no debate. A direita acusa o governo de populismo econômico, enquanto uma parte da esquerda tenta pintar Haddad como um drácula neoliberal”.

Como a esquerda é muito ampla, não sei exatamente de quem Rosário está falando; talvez seja do PSTU.

Mas se queremos afastar o caos cognitivo, é preciso começar reconhecendo a realidade como ela é.

Primeiro: o Brasil não tem e nunca teve algo que possa ser chamado de “Estado de bem-estar social”. Nosso salário mínimo, por exemplo, não dá conta de adquirir aquilo que a lei determina. Simplesmente não é verdade que o BPC e a Bolsa família “vão muito bem, obrigado”. Nosso problema segue sendo ampliar os investimentos sociais.

Neste sentido, é contraditório – para quem é de esquerda – comemorar a avanço de 4% no PIB do terceiro trimestre e, ao mesmo tempo, determinar que o salário mínimo não poderá crescer 4%. Assim como é contraditório comemorar a queda do desemprego e, ao mesmo tempo, reduzir a taxa de crescimento do salário-mínimo, que é parâmetro de remuneração para boa parte dos novos empregos gerados.

Segundo: a melhoria dos indicadores econômicos e sociais, ocorrida desde 2003, tem várias causas. O Novo Marco Fiscal é uma delas? Ou é, assim como a taxa de juros, um freio de mão puxado? Podemos e devemos debater isto. Mas, ao menos no debate travado no PT, não me lembro de ninguém dizendo que “o novo arcabouço levaria a uma catástrofe social, com redução drástica das despesas”.

O que foi dito é que o arcabouço funcionaria como uma trava e nos levaria a fazer cortes, exatamente porque algumas “despesas” cresceriam e ultrapassariam os limites previstos no Novo Marco Fiscal. E foi exatamente isto o que aconteceu.

Rosário, curiosamente, diz que “não houve corte social nenhum. Ao contrário, despesas com educação e saúde, que estavam acorrentadas ao teto de gastos, foram emancipadas pelo novo marco fiscal e aumentaram dramaticamente”.

Tirante o “dramaticamente” – quem dera fosse verdade! –  o fato é que as despesas cresceram quando se tirou o Velho Teto, mas esbarraram nos limites autoimpostos pelo Novo Marco. Aconteceu exatamente o que vários disseram que iria ocorrer.

Se houve alguma “negação”, foi de quem – na época em que esse debate foi feito, em 2023 – garantiu que isso não ocorreria, pois supostamente as receitas cresceriam mais rápido.

Aproveito para registrar que Rosário utiliza alguns termos (“caos cognitivo”, “negação”, “neurastênico”) que me lembram certos debates travados em 2018, na época em que Rosário tinha uma ideia mais positiva acerca do Ciro Gomes.

Vejamos o que diz Rosário: “Quem acompanhar distraidamente o debate neurastênico em certas bolhas da esquerda, pode acreditar que o governo fez cortes drásticos em programas como BPC, quando se deu exatamente o contrário. As despesas do governo com BPC, no acumulado dos últimos 12 meses até outubro, totalizaram R$ 111 bilhões, um aumento impressionante de 17% sobre igual período de 2023. E a evolução mensal das despesas com BPC vem crescendo muito este ano”.

De fato, quem acompanhar distraidamente qualquer debate, tende a não entender nada. No caso do BPC, por exemplo, o que está em discussão não é o que ocorreu, mas sim o que pode vir a ocorrer se a proposta do governo for aprovada.

Acontece que Rosário acha que “do ponto-de-vista estritamente fiscal, isso não é necessariamente bom, sobretudo se os filtros para a concessão do benefício não estiverem oferecendo a higidez necessária, ou seja, caso esteja havendo desvio desse recurso para pessoas que não precisam dele”.

A linguagem utilizada por Rosário é curiosa: “não necessariamente”, “se não estiverem”, “caso esteja havendo”. Cá entre nós: como se sentir confortável em cortar benefícios de quem ganha tão pouco, com base em tantos senões condicionais??

Terceiro: Rosário fala da magnitude do orçamento federal, para concluir que o corte “não deve produzir nenhum efeito dramático nos serviços públicos”, “se devidamente diluído em diversos órgãos e despesas, com foco em corte de privilégios”.

Do ponto de vista dos mercados (e de Rosário), pode ser pouco. Do ponto de vista dos que serão atingidos, que não serão os privilegiados, pode ser relevante. Mas e do ponto de vista político? Quais os efeitos do fato do governo e de parte da esquerda estarem sendo pautados pelo tema do ajuste, não pelo tema do desenvolvimento?

A esse respeito, Rosário afirma que “não me parece razoável, nem estratégico, que uma parte da esquerda transmita à opinião pública a impressão de que a questão fiscal não deva ser tratada com absoluta seriedade e rigor. Ademais a quem interessa vender a fantasia de que o governo Lula poderia estourar os gastos públicos sem nenhuma consequência em termos de ataque especulativo contra o valor da nossa moeda, contra os títulos da dívida, e sem que isso se transformasse numa crise política paralisante e destrutiva no congresso?”

Novamente, não sei quem da esquerda fala em tese contra “seriedade e rigor”. Mas sei que o ataque especulativo já está ocorrendo, sem que os gastos públicos tenham estourado. Portanto, se o objetivo de ter “seriedade e rigor” é acalmar os mercados, só há duas alternativas: ou o ajuste fiscal permanente, na linha do que Haddad deu a entender nos últimos dias; ou mudar as regras do jogo, por exemplo lançando uma campanha pública por um imposto sobre grandes fortunas, mudando as metas de inflação e alterando os temos do arcabouço fiscal.

Se entendi direito, Rosário acha que isso seria lutar “contra moinhos de vento”. Se for verdade, seus trilhos também serão vento.

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT


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O caos no debate econômico e a falta de trens no Brasil

O debate nacional sobre a nossa economia política vem produzindo uma atmosfera de caos cognitivo que, definitivamente, não é saudável.

De um lado, temos a mídia comercial e seus colunistas de economia acusando o governo Lula de praticar um populismo irresponsável. Este setor da sociedade recebeu a proposta de ajuste fiscal do governo com absoluto desprezo, por considerá-la mera perfumaria.

Nos últimos dias, pipocaram editoriais elogiosos ao governo Milei, por ter obtido superávit fiscal recentemente, mesmo que ao custo de derrubar a economia, elevar a pobreza e cortar drasticamente despesas sociais. O Banco Mundial estima que o PIB argentino deve desabar 3,5% em 2024. Bom lembrar que os indicadores macroeconômicos mais objetivos são aqueles que associam os números ao PIB. Não é racional, portanto, entender que uma política econômica está indo bem se o PIB está em queda livre. Poderíamos acrescentar que não é também humano pensar assim, porque isso equivaleria a comemorarmos uma perda de peso após a amputação de nossas pernas.

A comparação das políticas econômicas de Brasil e Argentina, a propósito, atingiu um aspecto incrivelmente demencial, ainda mais depois que os dados fiscais do governo brasileiro, de outubro, registraram um forte superávit de R$ 40,8 bilhões.

Ou seja, o governo brasileiro está praticando uma política econômica responsável. O fato, porém, de não levar adiante nenhum corte violento e cruel nas despesas com educação, saúde e assistência social, parece despertar um ódio bestial nos colunistas neoliberais, talvez por não poderem satisfazer seu instinto sádico de assistir ao sofrimento da camada mais vulnerável da população.

O governo brasileiro, reitere-se, obteve um sólido superávit em outubro, e com isso, o déficit primário no acumulado de 12 meses registrou uma forte queda, de maneira que o ministro da Fazenda está cumprindo o acordo que estabeleceu com os agentes econômicos (que financiam a dívida, dominam a opinião pública e exercem forte controle político sobre o congresso nacional), de praticar uma política fiscal responsável e sustentável.

Entretanto, reitere-se, o esforço fiscal do governo não implicou em nenhum corte de despesas sociais. Mais importante: a economia está crescendo de maneira vigorosa. Os dados do PIB divulgados ontem pelo IBGE mostram um avanço de 4% no terceiro trimestre, sobre igual período de 2023, sendo que, desta vez, não é sequer o agronegócio que está contribuindo, e sim a indústria de transformação, o consumo das famílias e o investimento produtivo. O desemprego caiu para 6%, um dos menores níveis da nossa história.

A preferência da mídia por Milei não apenas é puramente ideológica, como também não parece sequer fundamentada em dados objetivos. Nem deveríamos chamar de ideológica. É uma preferência antes mística, como se a mídia estivesse ouvindo conselhos de um cachorro morto.

Por outro lado, temos uma boa parte da esquerda lutando contra moinhos de vento, presa a uma briga contra o arcaboSegue o texto comentado

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uço fiscal como se houvesse a mais remota possibilidade para derrubá-lo no congresso. Pior, ela parece em negação. Muitos preconizaram que o novo arcabouço levaria a uma catástrofe social, com redução drástica das despesas. Alguns até hoje estão presos nessa crítica, como se os dados não importassem. O fato, porém, é que não houve corte social nenhum. Ao contrário, despesas com educação e saúde, que estavam acorrentadas ao teto de gastos, foram emancipadas pelo novo marco fiscal e aumentaram dramaticamente.

Há alguns ruídos curiosos. Quem acompanhar distraidamente o debate neurastênico em certas bolhas da esquerda, pode acreditar que o governo fez cortes drásticos em programas como BPC, quando se deu exatamente o contrário. As despesas do governo com BPC, no acumulado dos últimos 12 meses até outubro, totalizaram R$ 111 bilhões, um aumento impressionante de 17% sobre igual período de 2023. E a evolução mensal das despesas com BPC vem crescendo muito este ano. Do ponto-de-vista estritamente fiscal, isso não é necessariamente bom, sobretudo se os filtros para a concessão do benefício não estiverem oferecendo a higidez necessária, ou seja, caso esteja havendo desvio desse recurso para pessoas que não precisam dele.

Concretamente, a política econômica de Fernando Haddad não é de austeridade. Tanto é que vem sendo atacado pelos setores mais liberais da opinião pública, incluindo aí uma forte onda de ataque especulativo vindo do mercado. A acusação da Faria Lima é a oposta: de que o governo Lula teria optado pelo “populismo econômico”.

Daí a minha observação sobre o caos cognitivo no debate. A direita acusa o governo de populismo econômico, enquanto uma parte da esquerda tenta pintar Haddad como um drácula neoliberal.

Acho importante também que as pessoas tenham uma noção melhor sobre a magnitude do orçamento federal.

Nos últimos 12 meses, até outubro, o governo obteve uma receita líquida de R$ 2,12 trilhões, ou seja, de 2 trilhões e 120 bilhões de reais. As despesas, no mesmo período, corresponderam a R$ 2,47 trilhões. O cálculo do resultado primário é feito substraindo as despesas da receita líquida, chegando aos já mencionados R$ 225 bilhões de déficit.

Um corte de R$ 70 bilhões em dois anos, conforme proposto por Haddad, ou R$ 35 bilhões por ano (menos de 1,5% das despesas federais em 2024), se devidamente diluído em diversos órgãos e despesas, com foco em corte de privilégios, não deve produzir nenhum efeito dramático nos serviços públicos.

Não me parece razoável, nem estratégico, que uma parte da esquerda transmita à opinião pública a impressão de que a questão fiscal não deva ser tratada com absoluta seriedade e rigor. Ademais a quem interessa vender a fantasia de que o governo Lula poderia estourar os gastos públicos sem nenhuma consequência em termos de ataque especulativo contra o valor da nossa moeda, contra os títulos da dívida, e sem que isso se transformasse numa crise política paralisante e destrutiva no congresso?

O exercício da crítica, por outro lado, é fundamental.  É saudável que tantos intelectuais e influencers queiram dar mostras de coragem e independência política, através de um posicionamento duro contra o que consideram erros do governo.

Mas acho simplesmente inútil gastar energia com algumas coisas. Em minha humilde opinião, toda essa coragem e independência deveriam ser direcionadas para críticas a falta de investimento em infra-estrutura, especialmente na área de mobilidade urbana. Com a economia aquecida, os brasileiros estão precisando viajar mais, por razões de trabalho, e estão se deparando com o custo crescente das passagens aéreas. Conforme cresce a demanda, aumentam os preços. Eu realmente não consigo entender porque o Brasil não tem um grande projeto ferroviário! Esse é o gargalo principal do governo. Não é BPC, não é Bolsa família, que vão muito bem, obrigado. O problema do governo Lula é sua obsessão bizarra por automóveis, o que me parece um reflexo muito triste de um pensamento elitista que contaminou toda a burocracia partidária e governamental. Os quadros do governo federal tem suas passagens aéreas pagas pelo Estado. Não é o caso de nós, reles mortais do setor privado, ou dos setores mais humildes do serviço público, que representamos 99% da sociedade.

Esse sim me parece o principal risco político vivido pelo governo Lula, o de ser visto como uma “casta” pela população. Temos milhões de pequenos empresários – inclusive eu, da área da comunicação -, e dezenas de milhões de trabalhadores,  que estamos perdendo muitas oportunidades porque estamos acorrentados a um modelo nacional de transporte baseado unicamente em carro, ônibus e avião.

Não considero isso um problema trivial. Sem mobilidade urbana adequada, não se conseguirá completar o processo de modernização do país, aí incluindo a correção dos problemas de segurança pública, limpeza urbana e acesso mais ágil a serviços de saúde.

O problema brasileiro mais estratégico, e que mais corresponde à crítica de que falta ao governo um projeto nacional, é a falta de transporte sobre trilhos!

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