Rogerio Arantes, do Departamento de Ciência Política da USP
No próximo dia 24, a turma formada por três juízes do TRF4 – Gebran, Paulsen e Laus – julgará o recurso de Lula contra a sentença de Moro. Se o julgamento não for interrompido por qualquer motivo, o dia terminará com um de quatro resultados possíveis: confirmação da sentença de Moro por unanimidade (I) ou por maioria de 2 x 1 dos juízes (II), ou rejeição da sentença por unanimidade (III) ou por maioria de 2 x 1 dos juízes (IV). Considere ainda que a eventual confirmação da sentença (I ou II) pode ser acompanhada da revisão das penas, para cima ou para baixo. Em qual dos resultados você apostará neste almoço de domingo?
Uma análise de decisões anteriores da 8ª turma, sobre recursos apresentados por réus condenados, revela que os três magistrados, especialmente o relator Gebran Neto, estão em grande sintonia com as ações realizadas pela Força Tarefa da Lava Jato e as sentenças proferidas em primeira instância. Os números disponíveis indicam que pouquíssimos recursos tiveram êxito junto ao trio, que tende a aumentar em vez de diminuir a dosimetria das penas fixadas por Moro.
Nos recursos apresentados é bastante comum que os réus condenados aleguem uma série de irregularidades e nulidades nos processos conduzidos por Moro: incompetência (falo em sentido formal) da 13ª Vara de Curitiba para julgar aqueles crimes, desrespeito ao devido processo legal e às garantias de ampla defesa, inépcia da denúncia, nulidades nas ações de busca e apreensão, em escutas telefônicas, nas conduções coercitivas, nas delações premiadas e até com relação às primeiras medidas que ensejaram o início da operação Lava Jato. O trio do TRF4 já enfrentou todas essas alegações, na forma de “preliminares” em diversos recursos, para rejeitar todas elas. Neste sentido, Gebran-Paulsen-e-Laus parecem ter consolidado o entendimento de que a Lava Jato é uma operação de investigação, ações penais e julgamentos praticamente irretocável.
Impressiona na leitura dos votos dos três juízes o grau de conhecimento de que dispõem sobre as informações levantadas na base pelo MPF e PF. Embora decisões de segundo grau não se destinem a revisar os supostos fatos criminosos, mas basicamente se o direito foi aplicado corretamente pelo magistrado de primeiro grau, Gebran-Paulsen-e-Laus não se furtam a detalhar informações, especificar valores e até revisar contas, reproduzir depoimentos e ancorar suas decisões mais na matéria bruta derivada das investigações do que na (re)qualificação dos juízos emitidos por Sergio Moro. Em poucas palavras, tendem a realizar um segundo julgamento mais do que revisar o primeiro, e nesse processo têm confirmado os resultados quando não agravado a situação dos condenados.
Os perfis veiculados na grande mídia destacam que Gebran-Paulsen-e-Laus são juízes duros e conservadores, embora a leitura de seus votos indique que procuram ser técnicos e pouco moralistas. De fato, suas decisões raramente invocam razões morais ou éticas e sequer costumam fazer apologia do combate à corrupção ou da cruzada de salvação nacional liderada a partir de Curitiba. Vale mencionar, entretanto, que um deles, Laus, é oriundo do próprio MPF, talhado assim na arte da acusação e tendo ingressado no TRF pela porta do quinto constitucional.
Em diversos votos, Gebran-Paulsen-e-Laus assumiram e consolidaram a premissa da Lava Jato: um gigantesco e sofisticado esquema de corrupção assaltou a Petrobrás. Disso estão convencidos e as favas, que são centenas ou milhares, já estão contadas. Mais do que convictos deste grande e alarmante fato, parecem dominar o conjunto probatório e das delações premiadas produzido no âmbito da 13ª Vara e buscam exauri-lo em meio à tarefa de responsabilizar criminalmente e na dose certa cada um dos envolvidos no grande esquema.
Todavia, uma análise dos votos da 8ª Turma revela que o trio, em alguns casos, tem esbarrado no problema da falta de provas para sustentar determinadas condenações. Nestes casos, tal como ocorreu com a chamada “teoria do domínio do fato” no Mensalão, Gebran-Paulsen-e-Laus têm recorrido a conceitos e técnicas alienígenas (no jargão jurídico quer dizer estrangeiros) como expedientes de demonstração, de preenchimento de lacunas e superação de contradições lógicas, seja da acusação, seja da condenação em primeiro grau. Dois desses estratagemas estão expressos nas chamadas “prova acima de qualquer dúvida razoável” e “cegueira deliberada”, com adaptações locais capazes de subverter seus sentidos originais. Oriunda da experiência do tribunal do júri nos Estados Unidos, a ideia de “proof beyond a reasonable doubt” por lá é ensinada aos jurados como forma de ponderar provas e dúvidas, de tal modo que uma dúvida razoável pode afastar o peso das provas, ou que provas somente podem ser consideradas suficientes se sobreviverem ao teste de dúvidas razoáveis. Pois o relator da Lava Jato na 8ª Turma tem considerado que “o tema das provas é de fundamental importância, em especial para o presente feito, porque os delitos imputados aos acusados são complexos e de difícil apuração, muitas vezes dependendo de um conjunto de indícios para a sua comprovação”, nas palavras de Gebran. Dito isso, segue o magistrado, “colhe-se da experiência estrangeira o parâmetro da existência de prova ‘acima de uma dúvida razoável’ (proof beyond a reasonable doubt)”, mas invertendo seu sentido original, Gebran argumenta que “essa ‘prova acima de uma dúvida razoável’ importa no reconhecimento da inexistência de verdades ou provas absolutas, devendo o intérprete/julgador valer-se dos diversos elementos existentes nos autos, sejam eles diretos ou indiretos, para formar sua convicção. Assim, tanto provas diretas quanto indícios devem ser considerados para composição do quadro fático que se busca provar.”
Traduzir “beyond” como “acima” em vez de “além de” tem feito boa diferença na absorção do conceito alienígena. Ou em outras palavras, se as provas forem razoáveis em seu conjunto, dúvidas não devem impedir a conclusão pela condenação. Mal comparando, Dilma também conheceu no processo de impeachment o peso que pode ter “o conjunto da obra”.
O segundo estratagema é mais conhecido. Por “cegueira deliberada”, também de origem norte-americana, entende-se o comportamento do réu que, intencionalmente, finge desconhecer a origem ilícita ou condutas criminosas precedentes relativas às vantagens que está auferindo no momento seguinte. Em acusações de lavagem de dinheiro, que em geral envolvem crimes anteriores, essa teoria tem se mostrado crucial para levar à condenação réus que alegam desconhecimento da origem ilícita dos recursos movimentados. No fundo, invocar a “cegueira deliberada” é uma forma de superar, no processo criminal, a incapacidade dos órgãos de acusação e julgamento de demonstrar o dolo do agente, e a teoria é tão mais viável de ser aplicada quanto maior o conjunto de evidências capazes de apontar na direção do ato criminoso. O problema dessa teoria é que a “cegueira deliberada” atribuída ao réu pode refletir na verdade a miopia dos agentes do Estado na tarefa de comprovar efetivamente o crime, condenando os acusados por meio de lentes de aproximação. Substituir o dolo que não se consegue provar pela inferência do fingimento dá ao julgador o poder de converter água em vinho, mas também justiça em injustiça.
Neste cenário, quais as chances de Lula no dia 24?
A sentença de Moro condenando o ex-presidente foi duramente criticada por diversos especialistas. Segundo os críticos, a sentença padece de todos os vícios preliminares indicados acima, mas é praticamente nula a possibilidade de que o trio Gebran-Paulsen-e-Laus venha reconhece-los a essa altura do campeonato, depois de terem rejeitado tais argumentos em sucessivos julgamentos. Aqui temos um ponto crucial. A Lava Jato é herdeira do Mensalão em diversos aspectos, mas foi além ao subir um degrau na escada do que supõe ser o maior esquema de corrupção de todos os tempos, alcançando por meio de inquéritos, acusações formais e uma primeira sentença um ex-presidente da República. Desde o início a operação está desenhada para chegar ao cume da organização criminosa e todas as estratégias foram habilmente conduzidas – por vezes em benefício dos criminosos menores – para se chegar ao “comandante da propinocracia”. Desde que seu nome apareceu no centro de um primário powerpoint a nação sabe que o alvo final da Lava Jato é Lula.
Como chegamos a este ponto? Em quantos países uma das maiores autoridades que ascenderam e se legitimaram democraticamente, entraram para a história como líderes de um dos governos mais bem-sucedidos e obtiveram enorme reconhecimento internacional, é levada às barras dos tribunais e corre o risco de ser condenado, impedido de voltar à presidência e preso por agentes da lei e não por simples opositores ou militares? Nunca na história deste país e eu arriscaria dizer de qualquer outro se viu um processo dessa magnitude e com tais características.
O fato é que essa gigantesca pororoca que marca o encontro das águas da Justiça com a Política é movida por correntezas profundas que marcam a história brasileira, mas que alcançaram a superfície de modo especial com a Constituição de 1988. Com o apoio decisivo da esquerda, a carta realizou uma massiva transferência de poder aos agentes da lei e o que hoje assistimos é o maior e mais surpreendente acerto de contas entre eles e “os políticos”.
Gebran-Paulsen-e-Laus devem ter noção do ineditismo da situação e estão pressionados a confirmar a ultima estrela na árvore de natal em que se converteu a Lava Jato. Talvez até acreditem que são colaboradores de Noel e que trarão ao país o maior de todos os presentes já recebidos. Todavia, afora as preliminares já anteriormente rejeitadas pelo trio, a sentença contra Lula padece de lacunas não preenchidas que, à luz do processo penal convencional, poderiam muito bem levar à sua absolvição. A sequência que vai dos esquemas de corrupção na Petrobrás > propinas da OAS > corrupção passiva de Lula e lavagem de dinheiro pela posse/ocultação do Triplex e sua reforma carece de comprovações e vínculos que só puderam ser superados per saltum, na corrida de obstáculos em que se converteu a sentença.
Existiria uma mínima chance de Lula ter sua condenação revista pela 8ª turma? Uma das poucas decisões em que Gebran-Paulsen-e-Laus divergiram e se formou uma maioria a favor do réu se deu na revisão de uma das condenações de João Vaccari Neto, o tesoureiro do PT. Paulsen e Laus argumentaram que a condenação se baseou apenas em declarações tomadas por colaboração premiada, algo que a lei não permite, ao passo que Gebran argumentou que havia claros indícios de que o produto do crime de corrupção fora destinado ao partido sob os cuidados de Vaccari Neto. E mais, “havendo diversos colaboradores asseverando fatos no mesmo sentido, entendo que há a regra acima transcrita [a de que não cabe condenar apenas com base em colaboração] deixa de ser imperativa, haja vista corroboração de um depoimento por outro.” Ou seja, na visão do relator não se pode condenar alguém com base em apenas uma delação premiada, mas se forem duas ou mais, na mesma direção, pode. “Ademais, diz Gebran, os contra-indícios são por demais etéreos e incapazes de fragilizar as conclusões a que chegou o magistrado de origem com base no somatório de proeminentes indícios e na boa prova material, devendo, portanto, ser improvido o recurso.” A despeito desses argumentos, os dois colegas de turma consideraram que a acusação não soube provar de fato a participação do tesoureiro naquele crime e, reformando a sentença de Moro, absolveram Vaccari Neto.
Considerando que a sentença contra Lula está lastreada apenas na segunda versão de apenas um delator (porque na primeira e abortada tentativa Leo Pinheiro não havia enredado o ex-presidente) e que o conjunto probatório apresenta lacunas e inconsistências que apenas a narrativa da propinocracia é capaz de equacionar, recorrerão Gebran-Paulsen-e-Laus aos estratagemas da “prova acima de qualquer dúvida razoável” e da “cegueira deliberada” para confirmar a condenação do ex-presidente, coroando a Lava Jato e preenchendo o ultimo círculo do powerpoint, ou se afastarão da mera narrativa, exigirão mais provas e mais demonstrações que permitam aplicar o direito penal sobre o cidadão Lula?
A Lava Jato é a operação judicial politicamente mais bem sucedida de todos os tempos. A Justiça ergueu-se contra a Política, mas neste processo deixou-se politizar na forma clássica dos fins que justificam os meios. Alcançar resultados pré-fixados têm sido a meta de muitos dos seus envolvidos, e isto significa dizer que fazem política num sentido bastante específico, não necessariamente partidário ou ideológico. Acima de tudo, Gebran-Paulsen-e-Laus estão sendo desafiados a ratificar ou não essa nova modalidade de fazer justiça, e a decisão do trio no dia 24 confirmará ou não o êxito dos agentes da lei em carimbar a estrela no cume da árvore que lograram construir. Se isso é Justiça ou Política, não dá mais para saber.”