Reencaminho A História Que Se Vai, de Flávio Aguiar
Queria ser o autor dessa crônica, desse artigo ou qualquer coisa que seja essa sequência concatenada de palavras. Como incapaz sou de produzi-la, e o texto já nasceu em Flávio Aguiar, assumo-o: divulgá-lo passa a ser a minha homenagem a nós mesmos, já que Leonel Brizola se encarrega, agora, de tomar o Céu de assalto…
Confira Che!
Ricardo Menezes / 2004
A História Que Se Vai
Flávio Aguiar (*)
Brizola fez parte da minha geração, embora fosse de uma anterior. Ele foi dono de um estilo político que ficou único – o da transição da última geração dos velhos caudilhos gaúchos aos modernos políticos comprometidos com reformas de base inadiáveis.
Morreu um pedaço da minha pessoa. É toda uma história que se vai.
Brizola fez parte da minha geração, embora fosse de uma anterior. Ele foi dono de um estilo político que ficou único. Foi o da transição da última geração dos velhos caudilhos gaúchos, da estirpe dos Vargas, Flores da Cunha, Batista Luzardo, Osvaldo Aranha, e os modernos políticos comprometidos com reformas de base inadiáveis, ainda que sempre adiadas.
O Brizola dos anos cinqüenta e sessenta está na raiz de no século XXI Porto Alegre e o Rio Grande do Sul terem sediado a criação do Fórum Social Mundial.
Sua atuação foi de ponta onde esteve: espalhou escolas pelo Estado inteiro. Criou e implantou o primeiro programa de reforma agrária no Estado. Pela primeira e única vez na história do Brasil liderou a derrota de um golpe de Estado de monta depois deste deflagrado, em 1961.
Ainda tenho nos ouvidos a lembrança de sua despedida emocionada pelo rádio, ao saber que os tanques do regimento blindado da Serraria estavam se dirigindo para o centro de Porto Alegre, no final de agosto daquele ano. Mas felizmente eram os tanques do bem. Ao invés de atacarem a multidão concentrada na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, ocuparam pontos estratégicos da cidade, entre eles o cais do porto, onde havia corvetas da Marinha cuja oficialidade aderira ao golpe e poderiam ameaçar a cidade. O III Exército aderia à campanha da Legalidade.
Não tenho nem quero falar muito mais. Há e haverá necrológios generosos, evocando as concordâncias e as dissensões. Nessa hora eu não quero me lembrar de dissensão nenhuma, de nem sombra de desacordo. O que quero lembrar é que a política brasileira ficou menos bem humorada, menos pessoal, mais previsível, mais sem graça. Ficou também com seu espírito público mais encolhido. Brizola era um homem público e teve uma vida pública irreprochável, inquestionável.
Cometeu erros? Quem puder que jogue a primeira mancha de tinta na sua reputação. Teve incoerências? Mas as suas, diante da tempestade de incoerências que se abate sobre o país, tinham o gosto de seguir estritamente o veio de suas opiniões do momento, mesmo quando ia contra a maré, não a busca das conveniências. Brizola só não foi contra o povo e isto, neste nosso país, é imperdoável. Foi o único político de monta até hoje que enfrentou a Rede Globo, e também enfrentou (e com sucesso) a tentativa de lhe garfarem a eleição para o governo do Rio em 1982.
As tribos antigas que habitavam o pampa, os teuelche, os mapuche (de quem herdamos a palavra Che, “homem”), os charruas, minuanos, tapes e guaicurus, viam o mundo como uma imensa planície que se encurvava no Ande, a oeste, e que continuava se estendendo pela Via Láctea no céu, até o Cruzeiro. A imagem do Cruzeiro representava uma ema sangrando, e era para este pampa estrelado que iam as almas dos guerreiros, depois de mortos, perseguindo esta ave-mãe do universo. É pra lá que Brizola deve ter ido. Mas deve estar reunindo a indiada, para organizar a tomada do Céu e implantar a reforma agrária no Continente de São Pedro.
E digo isto com convicção, pois sou ateu, mas não praticante.
(*) Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior. In Cartas Ácidas, 22-06-2004, Carta Capital.