Por Rafael Tomyama**
Pode parecer a princípio exaustivo realizar um balanço dos primeiros dias do (des)governo Bolsonaro, dada a profusão de sandices, vacilações, corrupção e incompetência que marcam um período tão curto de intensos retrocessos na conjuntura nacional.
Na verdade, é preciso perceber o que há por trás das declarações estapafúrdias do ultraconservadorismo, que funciona como uma “cortina de fumaça” aliada ao que há de central na política econômica ultraliberal privatista.
As pesquisas de opinião de todos os institutos apontam uma forte queda de popularidade do malfadado governo, mesmo no meio que lhe deu os votos para elegê-lo. Até entre os setores populares ou evangélicos, que permanecem como abnegados apoiadores, predomina o discurso de que “ainda é cedo” para resultados ou culpabilizam a corrupção no Congresso e o “legado do PT”.
O pessimismo crescente indica que, diante da persistência da crise econômica, a maioria da população começa a desfazer ilusões e desvelar as reais intenções do alinhamento governista com o mercado. Tal e qual preconiza o bonde do funk em bate-bocas em Brasília, fica patente a disposição voraz para surrupiar direitos, enquanto é serviçal aos interesses que favorecem a concentração do grande capital.
Não que seja exatamente uma novidade. O início do governo deu vazão a anunciada dicotomia (para os trabalhadores) entre “empregos x direitos”, começando pela extinção do ministério do Trabalho, pela redução no reajuste do salário mínimo e pelo anúncio de alta de juros para compra da casa própria.
Por outro lado, nem sinal de se cumprir na prática a promessa de “combate à corrupção”: o fisiologismo político e o parentesco são os critérios utilizados para nomeações nos escalões da gestão que dizia pregar a moralização da política. Já se anuncia também a distribuição de cargos e recursos de emendas aos parlamentares para aprovação do desmonte da Previdência.
As ligações suspeitas de Bolsonaro e de quem o acompanha também ficaram registradas neste período, no episódio da exoneração do ex-presidente do PSL, Gustavo Bebiano, depois do escândalo dos desvios de recursos públicos destinados a candidatas laranjas do partido. Além disso, como se sabe, o caixa 2 milionário na eleição foi bancado por empresários para disseminação de mentiras e dissimular uma suposta campanha oficial pobre e improvisada.
Também as revelações de envolvimentos de familiares do presidente com esquemas de desvios e apropriação de vencimentos de assessores, bem como os fortes indícios de relações com milicianos em sua vizinhança e até possivelmente com a execução da ex-vereadora Marielle (PSol-RJ) e do motorista Anderson, evidenciam a complacência dos setores que lhe garantem apoio até aqui.
Os militares, por exemplo, em paralelo a essa convivência com patrimonialistas e gangsteristas, ocupam cargos-chave na gestão estatal e se configuram num dos principais setores estruturantes desse apoio.
É notório o alinhamento do comando militar ao golpismo, interferindo no cenário político para legitimar uma sucessão de fraudes: desde o suporte ao impeachment forjado da presidenta Dilma até a intimidação ao judiciário, o que garantiu a manutenção da prisão política do ex- presidente Lula, para evitar que concorresse e vencesse o processo eleitoral.
O próprio judiciário golpista tem como avalista o ex-juiz Sérgio Moro, responsável pela condução do absurdo julgamento que levou à condenação por “atos indeterminados” do ex-presidente Lula. Processo que hoje se sabe forjado com base em delações e provas falsas, relacionadas à fictícia reforma de um imóvel no Guarujá. A performance de Moro nessa manobra foi crucial para o resultado eleitoral que o beneficiou pessoalmente.
O chamado “pacote anticrime” requentado e levado ao Congresso – e depois fatiado para se evitar a parte que toca aos políticos, o caixa 2 – simboliza esse carro-chefe que ele representa, uma espécie de moralismo persecutório e punitivista.
Obviamente tais setores, no entanto, permanecem silentes quanto a certas pautas “delicadas”, como a dos disparos de 80 tiros por soldados do exército num veículo de passeio no Rio de Janeiro, que levou à morte do músico Evaldo Rosa dos Santos, no domingo, 7 de abril.
Tudo isso tem ocorrido contendo as digitais da agência de espionagem dos Estados Unidos (CIA) e está evidentemente relacionado à subserviência aos interesses econômicos estadounidenses.
Durante os governos petistas, a movimentação do Brasil em direção a mercados concorrentes, notadamente a China e a Rússia, bem como a descoberta e adoção do modelo de partilha na exploração do Pré-Sal, foram deflagradores da atuação decisiva dos EUA numa “guerra híbrida” subterrânea para barrar qualquer possibilidade de continuidade de um projeto de desenvolvimento nacional autônomo.
E aí se encontra o outro fator de apoio ao atual governo, assentado na burguesia golpista. Desde que atenda à sua pauta econômica de sócia menor subordinada aos oligopólios do capital financeiro transnacional.
Vejamos como a configuração desse tripé de sustentação tem se refletido em diversas áreas do governo federal:
EDUCAÇÃO
Na educação está a principal trincheira de ataque da chamada Escola Sem Partido à “ideologização” supostamente disseminada por professores nas instituições de ensino. A tese cara ao astrólogo Olavo de Carvalho, guru tanto do colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, ministro da Educação demitido após desempenho pífio em audiência na Câmara federal, quanto ao recém empossado Abraham Weintraub. Este com o perfil ligado ao mercado financeiro, para capitanear e dar efetividade às medidas de aprofundamento da privatização do ensino.
Inclua-se também no rol das “mudanças” desde a interferência no Ensino Nacional do Ensino Médio – ENEM, por meio de uma comissão de censura às questões da prova, até a autonomia das comunidades acadêmicas quanto à eleição democrática de seus diretores e/ou reitores.
Além das incidências de setores militares ressuscitando a educação moral e cívica e evangélicos detonando a laicidade do Estado, há o prosseguimento da criminalização das atividades educacionais, por meio de uma investigação ampla das atividades do Ministério, a cargo do super ministro Moro, que comanda a operação nos moldes da que levou ao suicídio do reitor Cancellier (UFSC), em 2017.
Na esteira da elitização do ensino (“universidade não é para todos”), o governo eliminou por decreto todas as funções gratificadas das universidades federais do Delta do Parnaíba (PI), Catalão (GO), Jataí (GO), Rondonópolis (MT) e Agreste de Pernambuco (PE), extinguiu 119 cargos de direção em outras instituições de ensino e 1.870 funções comissionadas de Coordenação de Curso. Em julho, a promessa é a de que serão extintas mais de 11 mil outras funções gratificadas nas universidades federais.
SAÚDE
O governo nem havia começado quando mais de 8,3 mil médicos retornaram a Cuba após reiteradas declarações hostis de Bolsonaro à participação de estrangeiros no programa Mais Médicos. Os planos do ministério sob comando de Luiz Henrique Mandetta, investigado por suposta fraude em licitação, caixa 2 e tráfico de influência, vão desde a anunciada redução de verbas para o Sistema Único de Saúde – SUS até sua extinção na prática por meio da implantação de um sistema de voucher, em que o usuário compraria vagas e serviços de atendimento em hospitais ou clínicas privadas.
RELAÇÕES EXTERIORES
Não partem apenas do ministro Ernesto Araújo, que se diz opositor de uma certa “conspiração globalista marxista”, os maiores incidentes diplomáticos protagonizados pelo governo em nível internacional. O episódio da embaixadora Maria Nazareth Farani Azevedo, batendo boca com Jean Wyllys em uma reunião da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra (Suíça), parece menor para a reputação do país frente ao inacreditável tweet de Bolsonaro acerca do Golden Shower, para desviar o foco da atenção sobre as reiteradas manifestações de desaprovação popular durante o carnaval no Brasil.
Seja em Davos ou em disparos de mensagens ofensivas a árabes e chineses, Bolsonaro e seu séquito protagonizam reiterados vexames e perdas de negócios perante investidores e a imprensa mundial. Muito grave em termos econômicos, por exemplo, é a renúncia às vantagens na Organização Mundial do Comércio (OMC) para ter o apoio dos Estados Unidos numa possível entrada para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
SEGURANÇA E JUSTIÇA
A Justiça incorporou funções de vários órgãos sob a guarda de um super ministério sob a condução do ex-juiz Sérgio Moro. A sua ida ao cargo é denunciada por seu envolvimento político no processo que levou à condenação e prisão de Lula, num casuísmo processual de exceção, afastando assim o principal adversário na eleição da chapa que venceu e o beneficiou.
Suas primeiras medidas foram no sentido de impedir o monitoramento do Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF sobre parentes de políticos e também para silenciar a lei da transparência, facilitando que documentos sejam classificados como sigilosos. O próprio Moro adotou o silêncio como regra diante dos escândalos e denúncias que afloram dia após dia envolvendo integrantes dos mais altos escalões da República.
A versão requentada de um “pacote anticrime” apresentada ao Congresso, visa legalizar a ilegalidade cometida com a prisão por condenação em segunda instância de Lula e também permitir a ampliação da licença para matar por agentes de segurança, alegando a legítima defesa por meio da excludente de ilicitude.
O tal pacote vem sendo criticado por especialistas quanto ao início do cumprimento da pena em regime fechado (no caso de alguns tipos de crimes com penas menores que oito anos) às mudanças na definição das organizações criminosas e à ausência de medidas mais efetivas para reorganizar o sistema prisional.
No âmbito da segurança, a medida mais significativa foi a assinatura do decreto que facilita a posse de armas no país, o que certamente será lucrativo para a indústria bélica, mas duvidoso como política pública de redução da violência e da criminalidade. O general Heleno, ministro da Segurança Institucional, condenado pelo Tribunal de Contas da União – TCU em 2013 por assinar contratos irregulares no valor de R$ 22 milhões, admitiu que vai espionar o Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia, que acontecerá no Vaticano, sob a liderança do papa Francisco.
DIREITOS HUMANOS
A polêmica ministra Damares Alves, que mentiu sobre sua formação acadêmica e foi fundadora da Organização Não Governamental – ONG Atini é alvo de duas investigações do Ministério Público por discriminação contra os povos indígenas.
Depois da saída do Brasil acordo global sobre migrações da ONU e da retirada da sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros) do texto relativo a direitos humanos, a ministra propôs projeto que autoriza a educação domiciliar.
É de sua lavra também o veto a recursos para vistorias preventivas de torturas em penitenciárias e a contestação a reparações a perseguidos políticos pela ditadura militar.
MEIO AMBIENTE
O ministro Ricardo Salles ficou conhecido por mentir quanto a título acadêmico em Yale e por ter sido condenado em 2018 em ação de improbidade por fraudar licenciamento de unidade de conservação. À frente da pasta tem adotado medidas para dificultar as fiscalizações e flexibilizar os controles ambientais. Mesmo diante do crime ambiental por negligência da privatizada Vale do Rio Doce, em Brumadinho (MG), dada à sua conhecida ligação a empreiteiras de minérios. Ele também questionou na TV a relevância de Chico Mendes.
Já Bolsonaro, que no início do governo chegou a anunciar a saída do país do Acordo de Paris, mas recuou devido à repercussão negativa, referiu-se ao desastre pela ruptura da “bagagem de dejeitos” e convidou o exército israelense para encenar sem sucesso o resgate às vítimas. A área também se notabiliza pela liberação de licenças para uso nas lavouras de agrotóxicos com substâncias cancerígenas e proibidas em outros países.
AGRICULTURA
A ministra Tereza Cristina tem notória ligações com os ruralistas e é investigada por suposto favorecimento à JBS, quando era secretária do agronegócio no Mato Grosso do Sul.
Enquanto o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra suspendia todos os processos de atribuição de terras em andamento no projeto de reforma agrária, o governo anunciava o perdão de R$ 17 bilhões em dívidas dos ruralistas.
A área também teve que lidar com uma decisão de liberar importação de leite em pó, gerando protestos da grande pecuária leiteira, até que a medida fosse revogada.
O ministério passou a ser responsável pela demarcação de terras indígenas e quilombolas, o que antes era de responsabilidade da Fundação Nacional do Índio – Funai. O governo argumenta que a medida visa “integrar a população indígena à sociedade”. Para o Instituto Socioambiental, a decisão sujeita os índios ao poder do agronegócio.
ECONOMIA
À frente da Economia, está Paulo Guedes, processado por suspeitas de gestão fraudulenta dos fundos de pensão de empresas estatais. Do ministério de Guedes saiu o perverso projeto de desmonte da previdência social, para arrecadar “1 trilhão” atacando os trabalhadores e mantendo os privilégios de políticos, militares e devedores.
Guedes também encabeça o entreguismo do patrimônio público via privatizações, como as de 12 aeroportos em março, que arrecadou R$ 2,4 bilhões – o preço de duas aeronaves. De sua pasta partem medidas de sucateamento para privatização dos Correios, da Petrobras e do Banco do Brasil, dentre outras empresas.
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Pode-se concluir a partir de uma análise inicial de um quadro amplo de ataques em várias, que a verborragia reacionária e obscurantista emanada de Bolsonaro e seus ministros, ao tempo que falsifica fatos históricos e ataca o pensamento crítico ou científico, também funciona como uma tática de distração para o escoamento de medidas de destruição: da capacidade industrial instalada, do papel social do Estado brasileiro e da inserção soberana do país na geopolítica mundial.
*Matéria atualizada da versão publicada originalmente no jornal Página 13 n° 195, Abril de 2019
**Rafael Tomyama é jornalista e militante do PT em Fortaleza/CE