Por Mucio Magalhães (*)
Em setembro deste ano de 2023, a tendência petista Articulação de Esquerda completará 30 anos de fundação no seminário nacional realizado no Instituto Cajamar, em São Paulo, nos dias 18 e 19 de setembro de 1993.
Um mês antes, havia ocorrido o oitavo encontro nacional do PT, que se constituiu em um marco histórico na trajetória da construção do partido, por ter sido o palco onde se travou uma disputa de rumo fundamental para o PT.
As avaliações sobre a crise das experiências socialistas no leste europeu; o avanço do neoliberalismo no país a partir da vitória de Collor de Mello, em 1989, contra o PT e a candidatura Lula, evidenciaram divergências de fundo no interior do PT, crescentemente expostas no sétimo encontro nacional do PT, em 1990; no primeiro congresso do PT, em 1991, na posição que o PT deveria adotar no movimento fora Collor, em 1992, e, depois, nos debates sobre a relação do PT com o governo Itamar Franco e no plebiscito sobre sistema de governo.
Estas polêmicas serviram de esteio para a conformação de um campo político no interior do PT que aglutinou os grupos e lideranças que se posicionaram a favor das conclusões sobre a natureza da crise do chamado socialismo real e seus desdobramentos para a luta política no médio e longo prazo.
Para estes setores, os fatos ocorridos no leste europeu anunciavam um novo tempo, cujas pedras angulares eram o fracasso do socialismo enquanto alternativa ao capitalismo, o fim da luta de classes, o conceito de democracia como valor universal e o estado entendido como um aparato neutro e acima dos interesses de classe. Por óbvio, a imperiosa necessidade de se adequar aos novos paradigmas trazia consigo a exigência da revisão programática e a necessidade de adotar uma nova concepção de partido.
Em um partido construído no fogo da luta de classes, que se consolidou como a mais importante ferramenta de luta da classe trabalhadora brasileira, quebrando a hegemonia de posições conciliadoras na esquerda brasileira, que se capilarizou na sociedade através de milhares de militantes organizados em uma extensa rede de núcleos de base, que impulsionou a fundação da CUT, do MST, e outros tantos movimentos sociais, e que disputava eleições com o entendimento de disputar a institucionalidade como parte do acúmulo de forças na luta geral pela transformação social, tais mudanças geraram reações.
Veio do interior da tendência que havia dez anos hegemonizava o PT, a Articulação, a mais importante oposição a este reposicionamento do PT, uma vez que o alcance e a profundidade das divergências foram capazes de dividir a velha maioria e possibilitar o surgimento de uma nova.
A militância que viria a fundar a articulação de Esquerda se posicionou na defesa de formulações que reconheciam a existência de uma grave crise nas experiências socialistas, notadamente na União Soviética e no leste europeu, mas jamais colocou um sinal de igualdade entre esta crise e o fim do socialismo.
Que a consolidação do neoliberalismo no mundo e seu avanço no Brasil exigia a discussão sobre as transformações no mundo do trabalho, as terceirizações, os impactos no sindicalismo, e várias outras mudanças que impunham o debate sobre as vias para manter a luta da classe trabalhadora diante de uma nova fase do capitalismo e de novas formas de exploração e, portanto, de uma nova etapa da luta de classes e não do seu fim.
Desde o primeiro documento público divulgado meses antes da fundação da AE, o Manifesto aos petistas, conhecido como A Hora da Verdade, é dito que:
“Historicamente violentas e excludentes, as classes dominantes brasileiras resistem secularmente a transformações estruturais. As mudanças que se impuseram foram conquistadas a ferro e fogo, frequentemente após as elites terem infligido derrotas “aos de baixo”. Veja-se o exemplo da Abolição da Escravatura e das leis trabalhistas de Getúlio, para ficar nestes dois casos. Nada indica que este comportamento tenha mudado. Portanto, é ilusório sonhar com uma sociedade de consensos, sem disputas, um capitalismo sem conflitos sociais, bem gerenciado por governos de coalizão, em que acordos setoriais e ações parlamentares suprapartidárias ditem o ritmo, a forma e o conteúdo das reformas. Não é função do PT agradar as elites: nossa aspiração é estar ao lado das maiorias, dos trabalhadores, dos deserdados, contra os de cima, os poderosos, os exploradores”.
Se negar a aderir aos arautos do sonho ilusório da democracia universal significou organizar uma dura luta em defesa do PT como partido socialista de massas, de classe, militante, organizado pela base, dirigido por instâncias partidárias democraticamente eleitas nos congressos do partido, com presença organizada nos movimentos sociais e nas disputas institucionais para fortalecer o partido como instrumento de luta pelo socialismo.
Esta resistência foi decisiva para impedir o PT de participar do governo Itamar Franco, de apoiar o parlamentarismo, e derrotou por um período a ofensiva para transformar o PT em um partido de centro-esquerda e criar as condições objetivas para surgir uma nova maioria no Diretório Nacional do PT, no oitavo encontro nacional do PT.
A disputa de rumos do PT não parou no oitavo encontro nacional. Sustentar a luta exigiu dar um passo à frente e enfrentar o desafio de organizar uma tendência nacional para organizar a militância identificada com a linha política acumulada no processo de enfrentamento interno, composta, em sua maioria, por membros da antiga Articulação e por militantes de outras origens.
Nestas condições históricas, foi fundada a Articulação de Esquerda, trinta anos atrás.
No documento O melhor ainda está por vir, divulgado após o oitavo encontro nacional, está dito no seu parágrafo final:
“Cabe lembrar que as forças motrizes que empurraram o PT para a direita continuam atuando: a crise do socialismo, a ofensiva neoliberal, as dificuldades dos movimentos sociais, a cooptação pela institucionalidade. Em particular, cumpre recordar que nosso caminho estratégico — cujo aspecto central é a disputa do poder e o exercício do governo — é extremamente arriscado, sendo que a quase totalidade dos partidos de esquerda que o trilharam abandonaram seus laços com o socialismo e com a revolução. Por isso, como dizia o apóstolo, é preciso orar e vigiar, porque o melhor (e o pior) ainda estão por vir.”
Estas forças motrizes citadas no documento continuam atuantes nos dias atuais, se retroalimentando do aprofundamento da adaptação da maioria da esquerda que não mede esforços para operar o rebaixamento programático, ampliar ao máximo o conceito de frente ampla, de governar e participar de governos em coalizões cada vez mais abrangentes.
Após três décadas de organização e disputas que se ampliaram para além do âmbito interno do PT, uma vez que as concessões moderadas hegemonizam importantes instrumentos de luta, como a CUT e a UNE, e crescem em outros partidos e movimentos, a Articulação de Esquerda mantém sua atualidade e validade histórica, afinal, o PT ainda é um partido onde continua a existir espaço para a disputa de rumos e a luta por uma nova hegemonia interna, orientada por uma estratégia socialista.
As pressões para isolar e invisibilizar a presença de uma corrente interna que contesta uma maioria que transforma o descenso dos movimentos sociais, as vitórias eleitorais, as melhorias implementadas nos governos que dirige e a correlação de forças desfavorável em argumentos para legitimar sua política e transformar o PT em um partido eleitoral e de centro-esquerda, continuam muito fortes.
Nossa teimosia é digna de respeito e merece ser comemorada. Trinta anos se passaram e no horizonte muitas lutas se anunciam, e nosso esforço para que o PT esteja à altura de todas elas vai continuar.
AE 30 anos!
Nas lutas populares, comemoramos!
(*) Mucio Magalhães é dirigente do PT Pernambuco.