31 de março de 2023 – A ordem do dia é enfrentar a questão militar

Por ocasião de mais um aniversário do golpe militar de 1964, a direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda aprovou e divulga a seguinte resolução.

A questão militar no Brasil e nossas tarefas

Neste ano conflagrado de 2023, a passagem de mais um aniversário do infame golpe militar de 1964, que neste 31 de março completa 59 anos, deve servir de mote a uma reflexão profunda da esquerda brasileira e, particularmente, do nosso Partido dos Trabalhadores sobre a questão militar no Brasil.

Não basta celebrar o fato de que, desta vez, não haverá comemorações festivas nos quartéis. Não basta assinalar a data como uma efeméride histórica, que remete a algo convenientemente distante no tempo, merecedor apenas de algum repúdio retórico.

Nem podemos acreditar na falácia de que os generais de hoje — e mesmo aqueles que comandaram as Forças Armadas nos mandatos anteriores do companheiro Lula e nos da companheira Dilma Rousseff — não têm laços com a Ditadura Militar, por supostamente não estarem diretamente envolvidos com as atrocidades cometidas no período 1964-1985, quando eram jovens oficiais.

É preciso compreender que as Forças Armadas, na sua atual configuração, representam um grave fator de instabilidade política e uma permanente ameaça à agenda de urgentes transformações econômicas e institucionais que o PT considera essenciais para enfrentar a crise brasileira. Agenda essa que, em 2022, levou mais de 60 milhões de brasileiras e brasileiros a elegerem Lula, mais uma vez, presidente da República.

Por essa razão, é preciso enfrentar o tema sem vacilações, tanto na elaboração partidária como por meio de medidas de governo, abrindo caminho para que a sociedade brasileira possa, enfim, livrar-se da tutela militar e contribuindo, desse modo, para que se avance minimamente em direção a uma democracia real, que vá além do direito ao voto a cada dois anos — e que seja capaz de combater a gigantesca, despudorada concentração de renda, poder e riqueza e, assim, superar a imensa desigualdade social.

Será difícil, haverá resistências, revides, sabotagem? Obviamente sim, afinal de contas as instituições militares são braços armados da hegemonia burguesa e oligárquica existente na sociedade brasileira. Mas para que “nunca mais” ou “que não se repita jamais” não sejam frágeis palavras de ordem, neste 59º aniversário do golpe militar não devemos esquecer a questão militar “debaixo do tapete” nem avaliar que a simples troca de comando no Exército resolve nossas preocupações.

Entendemos que o enfrentamento da questão militar no âmbito do governo federal (e, quando preciso, com as devidas interações no parlamento) envolve, na presente conjuntura, três diferentes grupos de ações administrativas que podemos sumariar da seguinte forma:

1) continuidade e aprofundamento das investigações da autoria intelectual e material da fracassada tentativa de golpe contra o governo federal em 8 de janeiro último, bem como a devida punição dos responsáveis, além dos remanejamentos necessários nos comandos das forças e das unidades militares e quaisquer outras medidas e adaptações institucionais pertinentes;

2) medidas estruturais de médio e longo prazo capazes de democratizar as corporações, por exemplo: a) mudança das grades curriculares das escolas militares e a democratização da gestão escolar; b) desmilitarização das Polícias Militares (PMs) e desvinculação de Exército e PMs; c) supressão do artigo 142 da Constituição Federal, que prevê o instituto da “garantia de lei e da ordem” (GLO);

3) medidas destinadas à punição criminal dos autores das atrocidades praticadas pela Ditadura Militar (torturas, assassinatos, ocultamento de restos mortais e outros crimes), à localização dos corpos de desaparecidos políticos, à abertura dos arquivos militares, ao pedido de perdão das Forças Armadas à sociedade brasileira e a outras ações relacionadas à reparação de crimes e fraudes cometidos pela Ditadura Militar ou por seus agentes, e aos devidos esclarecimentos à população.

Investigação do golpe de 8 de janeiro e punições

No tocante ao item 1, a cada dia fica mais claro que oficiais-generais e outros militares de altas patentes envolvidos com o golpe não serão punidos, nem mesmo administrativamente. O ex-comandante do Exército, por exemplo, general Júlio César Arruda, teria de ser compulsoriamente reformado, uma vez que resistiu às ordens para desalojar o acampamento bolsonarista montado diante do Quartel General do Exército em Brasília, desacatou ministros e o interventor federal no Distrito Federal (DF) e chegou a ameaçar um coronel da Polícia Militar que tentava remover os acampados.

Além disso, a mídia revelou que outro general de quatro estrelas, Gustavo Dutra de Menezes, então à frente do Comando Militar do Planalto (CMP), reuniu-se na antevéspera do golpe frustrado com o então secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres (que foi ministro da Justiça do governo Bolsonaro). No gabinete de Torres, que se encontra preso desde que retornou dos EUA, onde foi avistar Bolsonaro, foi encontrada a minuta de um decreto de “estado de defesa”, por meio do qual seria instaurado um regime de exceção.

Depoimentos à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara Legislativa do DF que investiga os atentados de 8 de janeiro e à Corregedoria da PM-DF apontam, repetidamente, o general Dutra como responsável por impedir ações contra os bolsonaristas acampados no QG. Portanto, é outro caso de militar da mais alta patente que não pode permanecer na ativa, independentemente das ações que vierem a ser ajuizadas contra ele por participação nos eventos golpistas.

Caso os generais Arruda e Dutra não sejam objeto de reforma, passando à reserva, eles continuarão participando do Alto Comando do Exército, o que por motivos óbvios seria uma situação inaceitável, tais as evidências de seu envolvimento com os golpistas. Reformá-los imediatamente é uma prerrogativa do governo federal e deve ser levada a cabo, sob pena de premiar quem conspirou contra a vontade popular. Dutra, por exemplo, vem exercendo uma subchefia do Estado-Maior do Exército, como se nada tivesse acontecido.

Quanto às mudanças na estrutura governamental, um exemplo positivo é a transferência da Agência Brasileira de Informações (ABIN) para a Casa Civil, deixando assim de fazer parte do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

Por outro lado, continua sendo necessária a saída de José Múcio do Ministério da Defesa e sua substituição por alguém realmente qualificado, que seja um legítimo representante do poder civil e não um porta-voz dos generais.

Reformas estruturais, legais e constitucionais, de médio e longo prazo

O item 2 pressupõe a realização de uma reforma das Forças Armadas e das PMs, que seja capaz de democratizar tanto os processos de recrutamento e de formação de oficiais como suas estruturas internas (organização, regulamentos, hierarquia). Os currículos atuais das escolas militares são fortemente enviesados pelo conservadorismo mais reacionário, calcado nas antigas doutrinas de “Segurança Nacional” e nas agendas expansionistas dos EUA, a ponto de as Forças Armadas considerarem seriamente a possibilidade de uma invasão da Amazônia pela França e de colocarem um oficial-general a serviço da 5ª Frota norte-americana.

As escolas militares não podem se furtar às orientações do Ministério da Educação nem escamotear uma vasta bibliografia de autores e escolas de pensamento que os generais ainda hoje enxergam como “subversivos”. A resistência dos militares a qualquer alteração no seu sistema escolar indica precisamente quão crucial é esse sistema na reprodução da ideologia profundamente antidemocrática, visceralmente oligárquica, que historicamente vem enquadrando a visão de mundo de gerações e gerações de oficiais.

A esse respeito, diz o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) nas suas recomendações ao Estado brasileiro: “O conteúdo curricular dos cursos ministrados nas academias militares e de polícia deve ser alterado, considerando parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Educação (MEC), a fim de enfatizar o necessário respeito dos integrantes das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública aos princípios e preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos. Tal recomendação é necessária para que, nos processos de formação e capacitação dos respectivos efetivos, haja o pleno alinhamento das Forças Armadas e das polícias ao Estado democrático de direito, com a supressão das referências à doutrina de Segurança Nacional” (Capítulo 18, p. 967 e 968).

O Relatório Final da CNV faz ainda a seguinte recomendação, que devemos levar em conta: “Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos. É necessário que a formação dos integrantes das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública seja precedida por processos de recrutamento que levem em conta o conhecimento dos candidatos sobre os princípios conformadores do Estado democrático de direito e sobre os preceitos teóricos e práticos relacionados à promoção dos direitos humanos” (Capítulo 18, p. 967).

Essas orientações, às quais podemos acrescentar a criação de cotas étnico-raciais, devem ser igualmente válidas nos processos de contratação de docentes das escolas militares por concurso público.

Além disso, a gestão das escolas militares é profundamente autoritária, desrespeitando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e a Constituição Federal, que preveem a gestão democrática do ensino, com a participação de professores, funcionários e estudantes nos colegiados e nas decisões das instituições escolares. No ensino superior, um exemplo é o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), cujo reitor é escolhido em processo de seleção decidido exclusivamente pelo Alto Comando da Aeronáutica, sem consulta à comunidade do ITA.

A extinção da diretoria responsável pelas escolas cívico-militares, no âmbito da Secretaria de Educação Básica do MEC, foi um passo importante para sepultar a política do governo anterior. Contudo, não é suficiente para avançarmos na desmilitarização da gestão educacional e escolar das redes públicas. É preciso induzir a descontinuidade e a reversão do processo de militarização de escolas em estados e municípios, para que as estruturas civis responsaveis por essas unidades escolares reassumam plenamente sua gestão, em todos os aspectos, livrando-as da interferência de militares e de suas respectivas corporações.

Outra alteração que devemos priorizar, apesar das pesadas adversidades conjunturais, é a desmilitarização das PMs e sua desvinculação do Exército. É preciso pôr fim na falida “guerra às drogas”. As PMs comportam-se como “tropa de ocupação” nas periferias e comunidades faveladas dos grandes centros urbanos. São as forças policiais que mais matam no mundo inteiro! O texto atual da Constituição Federal as define como “forças auxiliares do Exército” e dificulta aos governadores e governadoras exercer comando sobre elas.

O Relatório Final da CNV também propõe a desmilitarização das PMs (Capítulo 18, item “Reformas constitucionais e legais”, p. 971), bem como a das justiças militares estaduais e a “exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar federal” (ambas na p. 972).

Por fim, vale lembrar a proposta de emenda constitucional (PEC) de autoria do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), a qual altera o artigo 142 da Constituição Federal, que prevê, atualmente, a figura da “garantia da lei e da ordem” (GLO). A PEC acaba com as operações de GLO e transfere automaticamente para a reserva o militar que assumir cargo público. Entendemos que tanto o PT como o governo Lula devem apoiar essa proposta, que tem ainda a vantagem de encerrar as especulações sobre o suposto “poder moderador” das Forças Armadas, pondo fim a um certo discurso praticado por setores neofascistas com a finalidade de justificar a tutela militar sobre a sociedade civil.

Fim da impunidade dos agentes da Ditadura Militar (1964-1985)

O terceiro item contempla as medidas necessárias ao “ajuste de contas” da sociedade brasileira com a Ditadura Militar, que são muitas e cuja implantação certamente encontrará aguda resistência por parte de setores sociais interessados em reviver aquela perversa forma da dominação de classes. Por isso mesmo não podemos descuidar delas.

É central a reformulação do artigo 1º da Lei da Anistia (lei 6.683/1979) e do seu parágrafo 1º, que preveem anistia para os autores de “crimes conexos”, uma espécie de código para anistiar agentes militares e civis que praticaram torturas, assassinatos e toda sorte de atrocidades contra aqueles e aquelas que se opuseram à Ditadura Militar, bem como contra diferentes grupos populacionais, inclusive camponeses e povos indígenas.

Ao “interpretar” essa lei, em 2010, o Supremo Tribunal Federal considerou válidos os dispositivos de “crimes conexos”, legitimou a anistia que os militares se autoconcederam (e a seus cúmplices civis), e interditou todo e qualquer processo criminal contra torturadores e assassinos a serviço do regime ditatorial e de seu Terrorismo de Estado: centros de tortura, execuções sumárias, “casas da morte”, desaparecimento forçado de corpos, falsificação de laudos etc.

Também aqui o Relatório Final da CNV traz recomendações que precisam ser cumpridas pelo Estado brasileiro: “A CNV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia” (Capítulo 18, p. 965).

Mais adiante, registra esse Relatório Final: “Em 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) responsabilizou o Brasil pelo desaparecimento de participantes da Guerrilha do Araguaia durante as operações militares da década de 1970 (caso Gomes Lund e outros vs. Brasil). Sustentou que as disposições da Lei de Anistia de 1979 são manifestamente incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos nem para a identificação e punição dos responsáveis.”

Ainda segundo o documento, “leis de autoanistia constituem ilícito internacional; perpetuam a impunidade; e propiciam uma injustiça continuada, impedindo às vítimas e a seus familiares o acesso à justiça, em direta afronta ao dever do Estado de investigar, processar, julgar e reparar graves violações de direitos humanos” (p. 966 e 967). Note-se que, em 2018, ao julgar o caso do assassinato de Vladimir Herzog (1975), a Corte IDH voltou a condenar o Estado brasileiro e a repelir a autoanistia dos militares.

Entre outras medidas, a CNV também indica as seguintes, no mesmo Capítulo 18: “Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a Ditadura Militar (1964 a 1985)”; “Estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar seguimento às ações e recomendações da CNV”; “Prosseguimento das atividades voltadas à localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos restos mortais dos desaparecidos políticos”; “Prosseguimento e fortalecimento da política de localização e abertura dos arquivos da ditadura militar”.

Tudo isso é extremamente sério. Tudo isso deve ser levado à frente com determinação. Tudo isso nos diz respeito.

A questão militar é estratégica. A médio e longo prazos, o sucesso ou não dessas medidas, bem como daquelas elencadas nos itens 1 e 2, poderá vir a condicionar positiva ou negativamente o projeto histórico do PT de emancipação da classe trabalhadora e de transformação da realidade social do nosso país.

Não haverá sequer liberdades democráticas no Brasil, muito menos uma “democracia”, enquanto persistir a tutela militar sobre a sociedade civil, enquanto a tortura não for definitivamente banida, enquanto as Polícias Militares tiverem licença para matar. Razão pela qual devemos incluir a questão militar entre os itens prioritários do programa do PT e exortar o governo do companheiro Lula a prosseguir avançando.

Brasil, 30 de março de 2023

A direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda

 

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