Por Valter Pomar (*)
No dia 2 de junho aconteceu o primeiro debate entre os quatro candidatos que estão disputando a presidência nacional do PT.
Quem quiser assistir, está disponível aqui:
Como se poderá constatar, houve pouco debate no sentido de polêmica direta entre os concorrentes. Uma exceção parcial se deu quando, talvez aproveitando o fato de ser o último a usar da palavra, Edinho Silva resolveu enfim falar de socialismo.
Para quem não está acompanhando, uma ajuda memória: o manifesto de lançamento da candidatura de Edinho não fala uma única vez a palavra socialismo. E a tese apresentada pela tendência de Edinho fala de socialismo uma única vez, no clássico estilo “para não dizer que não falei de flores”.
Quem quiser confirmar, pode ler nos endereços abaixo:
Valter Pomar: A “Carta aos Petistas” de Edinho
Valter Pomar: Glosando a tese da CNB ao PED 2025
Cobrado por isso, Edinho falou o seguinte:
“(…) eu acredito muito na construção de valores, na construção duma junção de forças que a gente consiga efetivamente afrontar esse modelo e essa concepção de modo de produção. Mas, efetivamente, eu não trato o socialismo como se fosse uma tomada de assalto de poder de dentro de um gabinete. Pra mim, a construção da correlação de forças se dá na base, e aí a economia solidária é instrumento de organização sim, orçamento participativo é instrumento de organização sim, a participação nos conselhos populares, nos conselhos gestores de políticas públicas é organização sim, é disputar consciência da classe trabalhadora. A consciência da classe trabalhadora não se faz, desculpem aqui, a gente efetivamente discursando, ou a gente bravateando. A consciência da classe trabalhadora se faz nós na base efetivamente organizando os trabalhadores, enfrentando os desafios da classe trabalhadora.
Nesse sentido, por isso, que eu reafirmo a concepção de construção partidária que valorize o orçamento participativo, que a gente tenha coragem de defender o orçamento participativo, que a gente demonstre pras trabalhadoras e pros trabalhadores que eles organizados, eles podem deliberar e a sua vontade vai sim pro orçamento, invertendo prioridades e construindo uma nova relação de poder na sociedade. Isso não é discurso, isso não é metafórico, isso é real. É disputar a consciência da classe trabalhadora, da mesma forma que eu penso que quando o PT debate universalização da educação integral, ele tá dizendo pra mãe da periferia a sociedade que ele quer construir. E nós estamos disputando a consciência da mãe das periferias.
A mesma coisa quando o PT defende a universalização da Primeira Infância, quando nós defendemos direito à creche, à segurança alimentar. Quando nós falamos em cooperativismo, nós tamo disputando a consciência de que nós podemos construir riqueza numa outra relação, sem submissão de poder. E isso é conscientização da classe trabalhadora, isso é disputar rumos da sociedade. Como eu penso que nós devemos debater segurança pública. Agora, nossa concepção de segurança pública tem que ser aquela que cuide do adolescente em conflito com a lei, aquela que cuide daqueles que cumpriram pena e que têm que ser reinseridos na sociedade, que o PT tá recuando nesse debate. Nós não podemos recuar, porque nós estaremos ignorando o processo de exclusão social se nós debatemos segurança pública fora desse contexto, sem considerar as novas tecnologias. E também, eu penso, quando nós debatemos transição energética, não é apenas um debate ambiental, é nós estarmos falando que nós somos capazes de produzir riqueza sem submissão dos trabalhadores e sem degradar o meio ambiente. Portanto, é uma outra relação de produção de riqueza com a sociedade.
Da mesma forma, que eu quero dizer a vocês, que com muito orgulho eu digo aqui, que o governo do presidente Lula é patrimônio do Partido dos Trabalhadores. O governo do presidente Lula tem reconstruído o Brasil; o governo do presidente Lula tem tido êxito na economia, que nós temos a menor taxa de desemprego da nossa história. O governo do presidente Lula que voltou com o Minha Casa, Minha Vida, voltou com as obras estruturantes do PAC. Criou o Pé-de-Meia. Claro que nós temos muitos outros desafios, muitos outros desafios, agora esses desafios serão superados se o Partido dos Trabalhadores tiver uma agenda clara, essa que eu disse aqui. Se o Partido dos Trabalhadores tiver condições de disputar os rumos da sociedade e também dentro do parlamento disputarmos o nosso projeto. Eu quero concluir dizendo que, quem quiser caminhar conosco, com esse coletivo, com todas as forças que me apoiam, na construção de um partido que seja efetivamente capaz de fazer disputas de rumo na sociedade, seja capaz de mudar a correlação de forças na sociedade, seja capaz de falar de socialismo como um projeto real construído no cotidiano da classe trabalhadora, vote 180, venha conosco nessa jornada” (…).
[A transcrição acima é de minha responsabilidade.]
Para começo de conversa, até ontem de noite desconhecia que algum petista tratasse do socialismo “como se fosse uma tomada de assalto de poder”, muito menos “de dentro de um gabinete”.
“Tomada de assalto de poder” (sic) é uma maneira caricatural de criticar uma determinada estratégia. Não se trata, portanto, de socialismo. Na melhor das hipóteses trata-se de como chegar ao socialismo.
E sobre este “como”, todo mundo que está no PT defende a necessidade da “construção da correlação de forças”. Podemos divergir na forma de fazer isso – por exemplo, há os que falam de base mas só pensam em gabinetes. Mas desconheço quem não reconheça a óbvia necessidade de construir uma “correlação de forças”.
Portanto, o que Edinho acha que é uma demarcação contra os seus críticos, na verdade é um ponto de unidade.
A divergência, na minha opinião, está no seguinte trecho: “A consciência da classe trabalhadora não se faz, desculpem aqui, a gente efetivamente discursando, ou a gente bravateando. A consciência da classe trabalhadora se faz nós na base efetivamente organizando os trabalhadores, enfrentando os desafios da classe trabalhadora”.
A frase acima contém uma grande verdade e uma grande mentira. A grande verdade é a seguinte: a luta é a principal fonte de aprendizado, é a principal escola da classe trabalhadora. A grande mentira é achar que esta luta não inclui uma dimensão ideológica, não inclui “gente efetivamente discursando” (e as vezes até bravateando, infelizmente).
A luta da classe trabalhadora inclui a crítica do capitalismo, inclui o estudo das experiências socialistas, inclui o debate sobre que tipo de socialismo nós queremos. Edinho parece achar que esse aspecto ideológico da luta seria “discurso”, algo “metafórico”, irreal. Da minha parte, considero absolutamente impressionante que em tempos de redes sociais, big techs e IA ainda exista gente como o Edinho, incapaz de perceber as imensas conexões entre prática e teoria, entre ação e pensamento.
Se não fazemos estas conexões, acontece exatamente o que ocorreu no período 2003-2016: as nossas políticas públicas não foram acompanhadas de um avanço na consciência de classe.
No fundo, no fundo, Edinho sabe disso. Tanto é que, numa determinada passagem de seu discurso final, ele afirma que “quando nós falamos em cooperativismo, nós tamo disputando a consciência de que nós podemos construir riqueza numa outra relação, sem submissão de poder. E isso é conscientização da classe trabalhadora, isso é disputar rumos da sociedade”.
Note-se que falar de socialismo é tratado como bravata, já falar de cooperativismo é disputar a consciência. Mas o que importa, no caso, é o reconhecimento de que é preciso… falar!
Mas Edinho não gosta de falar de socialismo. Devia, pois no debate foi um dos poucos momentos em que se percebeu que ele tem sangue correndo nas veias. Pena que isso aconteça devido a irritação que o tema provoca nele,
Na minha opinião, o que Edinho não percebe é que para a disputa de consciência ser completa, é preciso explicitar o que está em conflito. É preciso entre outras coisas nomear o que não se quer (capitalismo) e nomear o que se deseja (socialismo).
Se não fazemos isso, as reformas parciais, as conquistas parciais, os avanços parciais, servem para melhorar a vida do povo, mas não servem para acumular forças em direção a outra sociedade.
Neste ponto surge a questão: por quais motivos Edinho resiste até mesmo a falar a palavra socialismo? Por qual motivo tamanha recusa, se ele chega inclusive a defender, por exemplo, que devemos “produzir riqueza sem submissão dos trabalhadores e sem degradar o meio ambiente”. Sendo assim, por qual motivo ele resiste a usar a palavra socialismo?
Eu tenho dois palpites: primeiro, destacar o socialismo polarizaria com o lado de lá. E Edinho não quer polarizar. Segundo, destacar o socialismo criaria clivagens e eventuais incompreensões do lado de cá. E ele também parece não gostar disso.
Por isso, acho eu, Edinho afirma querer ser “capaz de falar de socialismo como um projeto real construído no cotidiano da classe trabalhadora”.
Esta abordagem (“projeto real construído no cotidiano) tem um acerto e dois erros. O acerto é que, obviamente, o socialismo só vai existir se for um projeto real construído pela classe trabalhadora.
Quanto aos dois erros: primeiro, como já comentei, ao não dar nome aos bois, esta abordagem conduz ao que já vivemos entre 2003 e 2016; fazemos um enorme esforço prático, mas a consciência política avança pouco. Mas há um segundo erro: essa abordagem acerca do socialismo “construído no cotidiano” coloca um sinal de igual entre duas dimensões que são vinculadas, mas que não são a mesma coisa.
Uma coisa são as conquistas parciais que conseguimos obter, dentro do capitalismo e num ambiente que segue hegemonizado pelo capitalismo.
Outra coisa coisa é uma sociedade socialista, na qual pode haver algum tipo de capitalismo, mas ele não é mais hegemônico.
Ao não estabelecer esta diferença, Edinho fica nos marcos teóricos e ideológicos da socialdemocracia, que acha que socialismo é igual a capitalismo com bem-estar social. Um filiado pensar assim faz parte. Alguém que pretende ser presidente nacional do PT pensar assim é um perigoso retrocesso.
ps. aproveito a deixa para corrigir uma informação dada pela apresentadora do debate realizado em Brasília. A saber, eu não fui “secretário de governo”, mas sim secretário de cultura, esportes e turismo da cidade de Campinas (SP).
(*) Valter Pomar é professor e candidato à presidência do PT