A carta de Rui Falcão

Por Valter Pomar (*)

Recomendo fortemente a leitura da Carta aberta do companheiro Rui Falcão à militância petista, divulgada hoje na página do Partido dos Trabalhadores.

A Carta pode ser lida ao final deste comentário ou diretamente no endereço:

https://pt.org.br/carta-aberta-a-militancia-petista-por-rui-falcao/

A Carta de Rui Falcão é um alento nesses tempos de “guerra civil” na tendência “Construindo um novo Brasil”.

É um alento especialmente porque apresenta uma análise política que, concordemos ou não, possui começo, meio e fim. Mostrando, portanto, que o processo de renovação das direções partidárias não precisa se limitar “a conquista de cargos e espaços de poder”.

Rui Falcão destaca que nosso partido “precisa voltar a representar um projeto civilizatório que se contraponha à ordem estabelecida pelos bilionários. Não pode haver dúvidas que somente a esquerda e seu maior partido, o PT, expressam uma alternativa estruturalmente antissistema, que proponha a transformação radical da economia, da sociedade e do Estado. O mundo vive hoje uma crise global, econômica, social, política, cultural e ambiental, todas elas entrelaçadas de forma indissociável com o capitalismo, a opressão racial e com os antagonismos e conflitos bélicos associados a eles”.

A Carta não usa o termo “socialismo”, mas o sentido apontado é evidentemente esse.

Rui Falcão defende “apoiar o governo na resistência às pressões do capital financeiro, que se movimenta para abocanhar o orçamento público, em nome da austeridade, tentando impedir a aplicação das políticas de justiça social e desenvolvimento. Querem que nosso governo abdique das políticas de união, reconstrução e transformação, e passe a adotar o programa dos representantes do grande capital”.

A Carta não explicita que um de nossos grandes obstáculos na luta contra o capital é o “arcabouço fiscal”, mas vale lembrar que recentemente Rui votou contra as medidas de ajuste propostas pela Fazenda.

Rui Falcão defende “deixar claro, na comunicação e na prática, que a missão do governo é caminhar em direção a “plena emancipação”, “democratizando renda, riqueza e poder”. Salvo engano, a Carta não explicita o papel que têm, para dar conta destes objetivos, a reforma agrária, a industrialização e o combate ao agronegócio.

“No tempo que nos falta até as urnas”, a carta defende “marchar com as duas propostas definidas como prioritárias por nossa bancada na Câmara dos Deputados para 2025: aprovar a isenção de imposto sobre renda para quem ganha até cinco mil reais mensais, com maior tributação para valores acima de 50 mil; e votar a PEC que elimina a escala 6 x1 e reduz a jornada de trabalho para 36 horas semanais. Mas também precisamos avançar em outros temas fundamentais, como a segurança pública, a democratização do Estado e o fim da tutela militar com a alteração do Art. 142 da Constituição Federal. Praticamente abandonamos a discussão da reforma política, essencial para criar um ambiente de apoio a propostas fundamentais como a adoção do voto em lista partidária e a implementação de plebiscitos convocados pelo Poder Executivo e por iniciativa popular”.

Infelizmente, Rui não incluiu na Carta uma referência a necessidade de demitir imediatamente o ministro da Defesa, que todos sabemos ser defensor da Anistia para os golpistas. Mas certamente Rui segue pensando que José Múcio não deveria ter sido nomeado. Assim como certamente defende posições avançadas sobre a necessidade de lutar contra o oligopólio privado de comunicação; e também por uma Assembleia Constituinte, nos termos aprovados por pelo menos dois congressos partidários.

A Carta rechaça “os apelos à despolarização, palavra da moda que significa levar-nos a uma transição efetiva para o centro, com um forte rebaixamento ideológico, programático e organizacional”, lembrando ademais que “a correlação de forças não pode ser vista como um elemento geológico, como os mares e as montanhas, cuja mutação independe da ação humana, da luta política, e se processa no tempo infinito”.

Rui Falcão fala ainda que “a construção de coalizões para vencer as eleições e governar não pode ser vista como contraditória com a disputa pública de hegemonia pelos partidos do campo popular. O partido não pode ser reduzido a um braço institucional do governo de frente ampla”. E diz que “somente será possível implementar nosso programa” se “o nosso campo e o próprio governo forem capazes de criar um clima de mobilização social, que pressione as instituições de fora para dentro, como ocorreu durante a Constituinte de 1988”.

Obviamente, dar conta dessas tarefas depende em grande medida do que faça nosso Partido, que no último período não teve propriamente êxito neste mister. Um dos motivos pelos quais não é possível concordar com Rui quando ele afirma que o legado de Gleisi Hoffmann “é inquestionável, mesmo para quem dela discorde”.

(Cá entre nós, ultimamente anda muito difícil achar algo ou alguém “inquestionável”.)

A verdade é que desde 2017 até hoje vimos o aprofundamento do que a Carta aponta como um sério problema, a saber: “a dinâmica da democracia liberal empurra os partidos de massa para se converterem em partidos eleitorais e, em seguida, meras legendas controladas por governos e mandatos parlamentares”.

Neste sentido, chama atenção o fato da Carta defender que “o direito à organização de tendências não pode mais ser visto como oportunidade para organizar partidos dentro do partido, esvaziando as instâncias e fechando as portas para a participação do militante comum”; ao mesmo tempo que não desenvolve raciocínio análogo sobre quais medidas organizativas deveriam ser adotadas para enfrentar o crescente controle dos mandatos por sobre as instâncias partidárias.

Como parlamentar e dirigente experiente, Rui certamente deve ter várias ideias a respeito de como reverter o crescente controle de “governos e mandatos parlamentares” sobre nosso Partido.

Aliás, concordando inteiramente com Rui quando ele afirma que “o estatuto do PT merece ser rigorosamente respeitado e somente pode ser alterado por decisão congressual”, lembramos que uma das mais recente alterações estatutárias -ilegítimas e ilegais – foi aquela que abriu as portas para os mandatos vitalícios, tanto de parlamentares quanto de dirigentes. Medida apresentada pela companheira Gleisi Hoffmann.

Por fim, é sem dúvida fundamental que os fundos partidários sejam “repartidos e implementados de modo mais transparente, evitando privilégios e garantindo sua plena gestão pelo coletivo da direção”. Mas é importante lembrar que “gestão coletiva” só vai acontecer quando a tesouraria deixar de ser controlada pelo “partido dentro do partido”. Controle que vem desde 1995, portanto trinta anos.

Haveria outras coisas a comentar sobre o que Carta diz ou não diz acerca de certos temas estratégicos – como por exemplo nossa política externa, o combate ao racismo, a defesa dos direitos das mulheres, a questão ambiental e da juventude – mas o que mais importa é que a Carta coloca o debate noutro patamar, adequado para quem deseja mudar o rumo e a direção de nosso Partido.

É o caso, por exemplo, da tendência petista Articulação de Esquerda, que neste final-de-semana de 15 e 16 de março lançará uma chapa para concorrer ao Diretório Nacional, assim como lançará uma candidatura da própria AE à presidência nacional do PT.

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT

***

Segue a Carta citada

Queridas companheiras, queridos companheiros

Nosso partido recentemente completou 45 anos de vida e luta. Temos todas as razões para sentirmos orgulho dessa trajetória de quase meio século. Nossa história é a síntese das grandes jornadas populares do nosso tempo, de suas conquistas e derrotas, de seus acertos e erros.

O Partido dos Trabalhadores é o principal instrumento que dá voz aos assalariados da cidade e do campo, organizando-os para dirigir a nação. Como está escrito em nosso Manifesto de Fundação: “o país só será efetivamente independente quando o Estado for dirigido pelas massas trabalhadoras”.

Desde 2023, voltamos a governar o Brasil. Como sempre afirmamos, liderar o Poder Executivo é passo fundamental para que nosso partido possa se enraizar na vida do povo e conquistar sua confiança. A vitória contra o bolsonarismo em 2022, portanto, foi um capítulo crucial, depois de seis anos marcados por golpismo, repressão e retrocesso.

Passados mais de dois anos da posse do presidente Lula, nossa maior liderança, conseguimos avançar em muitas frentes, reconstruindo um país que tinha sido destruído pelas políticas neoliberais das administrações anteriores, desde que a presidenta Dilma Rousseff foi derrubada por um golpe parlamentar. Os indicadores econômicos e sociais são uma clara demonstração de nossos êxitos, apesar das dificuldades.

Mas estaríamos cegos à realidade se desconsiderássemos ou subestimássemos os obstáculos que temos pela frente. A recuperação do país ainda não foi suficiente para isolar e derrotar a extrema direita. Tampouco nos permitiu uma ofensiva sustentável contra ideias e valores liberais, avançando na construção da hegemonia de esquerda. Estamos longe de uma correlação favorável de forças tanto nas instituições, a exemplo do parlamento, quanto na sociedade, mas a correlação não pode ser vista como um elemento geológico, como os mares e as montanhas, cuja mutação independe da ação humana, da luta política, e se processa no tempo infinito.

Queridas companheiras, queridos companheiros

Aproxima-se uma batalha decisiva, a das eleições de 2026.

Daqui a alguns meses nosso partido elegerá novas direções, e esse é um processo essencial para nos prepararmos para a campanha de reeleição do presidente Lula, ajustando nossa orientação política e nossa organização para um embate de tanta importância.

A companheira Gleisi Hoffmann, ao me suceder na presidência do PT, a partir de 2017, conduziu com coragem a resistência à extrema direita e a preparação de nosso partido para a sucessão presidencial de 2022. Após a vitória, sempre foi uma referência no enfrentamento ao reacionarismo e no fortalecimento da esquerda dentro do próprio governo.

Seu legado é inquestionável, mesmo para quem dela discorde. Temos um notável ponto de partida para o trabalho a ser feito, mas novos desafios batem à porta. O processo de renovação deve ser marcado pelo debate sobre como enfrentá-los. Não podemos nos aprofundar numa disputa que vise apenas a conquista de cargos e espaços de poder.

Às voltas com a mais persistente crise do capitalismo e da democracia liberal desde a Segunda Guerra Mundial, nosso partido precisa voltar a representar um projeto civilizatório que se contraponha à ordem estabelecida pelos bilionários. Não pode haver dúvidas que somente a esquerda e seu maior partido, o PT, expressam uma alternativa estruturalmente antissistema, que proponha a transformação radical da economia, da sociedade e do Estado.

O mundo vive hoje uma crise global, econômica, social, política, cultural e ambiental, todas elas entrelaçadas de forma indissociável com o capitalismo, a opressão racial e com os antagonismos e conflitos bélicos associados a eles.

Retomo nosso texto fundacional: “o PT buscará conquistar a liberdade para que o povo possa construir uma sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores”. Precisamos desse sentido de destino para aprofundarmos nossa unidade, recuperarmos nossa organização e ampliarmos a formação de nossos militantes. Para provocarmos entusiasmo e mobilização, especialmente na juventude, é necessário defender um futuro que signifique a plena emancipação de nossa gente diante de todas as formas de exploração e opressão.   

Devemos deixar claro, na comunicação e na prática, que a missão do governo é caminhar em direção a esse destino, democratizando renda, riqueza e poder. “Colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda” foi a maneira que o presidente Lula encontrou para sintetizar o nosso programa. Não podemos duvidar que somente a consolidação e o aprofundamento de medidas com esses objetivos poderão reforçar os laços de identidade do governo e do PT com as classes trabalhadoras e o povo.

No tempo que nos falta até as urnas, precisamos marchar com as duas propostas definidas como prioritárias por nossa bancada na Câmara dos Deputados para 2025: aprovar a isenção de imposto sobre renda para quem ganha até cinco mil reais mensais, com maior tributação para valores acima de 50 mil; e votar a PEC que elimina a escala 6 x1 e reduz a jornada de trabalho para 36 horas semanais.

Mas também precisamos avançar em outros temas fundamentais, como a segurança pública, a democratização do Estado e o fim da tutela militar com a alteração do Art. 142 da Constituição Federal. Praticamente abandonamos a discussão da reforma política, essencial para criar um ambiente de apoio a propostas fundamentais como a adoção do voto em lista partidária e a implementação de plebiscitos convocados pelo Poder Executivo e por iniciativa popular.

Nosso papel é apoiar o governo na resistência às pressões do capital financeiro, que se movimenta para abocanhar o orçamento público, em nome da austeridade, tentando impedir a aplicação das políticas de justiça social e desenvolvimento. Querem que nosso governo abdique das políticas de união, reconstrução e transformação, e passe a adotar o programa dos representantes do grande capital. Os setores rentistas do empresariado recorrem a todas as armas para proteger seus interesses e impedir a tributação dos mais ricos, preservando a todo custo a herança neoliberal de Temer e Bolsonaro.

Não temos maioria no parlamento. Precisamos de alianças. Somente será possível implementar nosso programa, contudo, se o nosso campo e o próprio governo forem capazes de criar um clima de mobilização social, que pressione as instituições de fora para dentro, como ocorreu durante a Constituinte de 1988. Mesmo com uma pequena bancada progressista, direitos sociais avançados foram conquistados porque tínhamos um pé na institucionalidade e outro na rua.

Nosso partido deve rechaçar os apelos à despolarização, palavra da moda que significa levar-nos a uma transição efetiva para o centro, com um forte rebaixamento ideológico, programático e organizacional. A construção de coalizões para vencer as eleições e governar não pode ser vista como contraditória com a disputa pública de hegemonia pelos partidos do campo popular. O partido não pode ser reduzido a um braço institucional do governo de frente ampla.

O combate à extrema-direita somente poderá ser bem-sucedido se formos capazes de lhe fazer uma contraposição frontal, aguerrida e popular. A história nos ensina que fórmulas gelatinosas facilitam a ascensão do fascismo.

Para cumprir suas tarefas históricas, o PT precisa se reconverter em um partido de massas, mesclando a concorrência eleitoral com a incorporação de amplas frações do povo à luta política. Sabemos o caminho das pedras. Muito se fala, com razão, em ampliar nossa atuação nas redes sociais. Mas isso não é suficiente: os meios digitais devem estar a serviço, entre outros objetivos, à reimplantação territorial nos locais de moradia, trabalho e estudo.

Aprendamos com as igrejas evangélicas: o PT somente será hegemônico quando, ao lado de cada templo, em cada bairro, houver uma sede partidária aberta às mais distintas atividades políticas, culturais e recreativas. Não basta abrirmos comitês somente em época eleitoral, a cada dois anos. Temos que estar inseridos diretamente na vida do povo e de suas organizações.

Não é um processo fácil. A dinâmica da democracia liberal empurra os partidos de massa para se converterem em partidos eleitorais e, em seguida, meras legendas controladas por governos e mandatos parlamentares. Precisamos, mais uma vez, ter as forças necessárias para remar contra a maré.

Nosso partido também precisa se democratizar, para estar à altura de sua missão. O direito à organização de tendências não pode mais ser visto como oportunidade para organizar partidos dentro do partido, esvaziando as instâncias e fechando as portas para a participação do militante comum. Os fundos partidários devem ser repartidos e implementados de modo mais transparente, evitando privilégios e garantindo sua plena gestão pelo coletivo da direção. Além do que, é preciso retomar as políticas de auto-sustentação pelos filiados para não ficar na dependência exclusiva de recursos públicos ou estatais.

O estatuto do PT merece ser rigorosamente respeitado e somente pode ser alterado por decisão congressual. Novos mecanismos de deliberação da base precisam ser desenvolvidos, como a realização de plebiscitos para as grandes decisões políticas. Antes do surgimento da internet, com voto em papel, foram consultas impositivas à militância que decidiram pelo boicote ao colégio eleitoral (1985) e pela defesa do presidencialismo (1993), orientando o PT em episódios primordiais. Com as novas tecnologias, esse tipo de participação poderia ser frequente, massivo e seguro.

Queridas companheiras, queridos companheiros

O processo eleitoral interno que está sendo inaugurado nestes dias é uma chance para elevarmos o PT a um novo patamar, em um cenário interno e externo de conturbações extremas.

Desse desafio depende, em grande medida, a reeleição do presidente Lula e a continuidade de nosso projeto histórico.

A valentia, a generosidade e a integração de toda a militância é essencial, em mais essa hora da verdade.

Viva o Partido dos Trabalhadores!

Rui Falcão, ex-presidente nacional do PT e deputado federal.

São Paulo, 12 de março de 2025.

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