Por Ana Lídia e Patrick Campos
Juventude é uma categoria caracterizada de inúmeras formas e reforçada por imaginários diversos. Por vezes ganha uma conotação extremamente negativa, onde é vista apenas como uma etapa de transição da vida, marcada pela rebeldia, individualização, crises, imprudências e tensões, associado a essa fase da vida. Por outro lado – identificado nos discursos políticos de esquerda, como observado em textos de Lênin1 e Fidel – a juventude é percebida como essencialmente revolucionária. A mídia reforça ainda outras tantas percepções, imagens baseadas em sensos comuns tais como: jovem como o futuro do país, como aquele que pode fazer a diferença, jovem empreendedor, e ainda, jovem perigoso associado a jovens homens negros da periferia urbana.
Diversas concepções de juventude atravessaram a história recente, estando ora em profundo conflito, ora em graus significativos de sintonia. Podemos afirmar que dentre estas, tem crescido e se consolidado determinada compreensão de que a juventude é uma fase da vida que possui um caráter fundamentalmente “preparatório”. Tal ideia surge e ganha força com a consolidação do liberalismo e a expansão do modo de produção capitalista ao longo do século XX, tendo o apogeu nas suas últimas duas décadas. Esta ideia se aprofunda com o neoliberalismo, que com sua hegemonia a partir dos anos noventa, estabeleceu um ideal de juventude. Nesse ideal, até determinada idade, supostamente, as pessoas deveriam se dedicar a formação escolar e profissional, para que pudessem ingressar no mercado de trabalho e na produção quando reunissem as melhores condições para desempenhar sua função. Ocorre que esta construção da categoria juventude parte de premissas extremamente contraditórias e chega a conclusões igualmente controversas. Primeiro que conceber a juventude como uma fase meramente “preparatória”, despreza completamente suas particularidades. Essa ideia, por um lado, tem como horizonte o mito da meritocracia, na qual os jovens terão o momento da juventude para se preparar, em condições de igualdade, e conquistar uma vida adulta de bem estar e, caso isso não ocorra, a razão estará no fracasso da juventude. Por outro lado, tal concepção ignora a possibilidade de que a juventude seja plenamente vivida e que nela existam grandes realizações, uma vez que a caracteriza como “menos importante” em comparação com o “futuro que realmente importa”, de modo que a juventude se torna um eterno esperar.
Mas essa percepção encobre algo ainda mais profundo. Essa construção – que reproduz a ideologia da meritocracia – esconde a divisão entre as classes sociais, que produz extrema desigualdade social, econômica e de acesso a bens culturais socialmente valorizados pela elite, que marcam a vivência das juventudes no Brasil. São nestes termos que gostaríamos de travar o debate sobre juventude.
As mudanças no mundo do trabalho, o aumento do poder de fetichização do capital e a maximização dos bloqueios do sistema além de tencionarem as condições de vida da juventude trabalhadora, acirram a disputa sobre o que de fato significa vivenciar a juventude e quais são as suas características. Hoje, é preciso destacar ainda, que muitos jovens estão experimentando com o avanço das tecnologias, sobretudo da internet, novas formas de viver o mundo social. Em outras palavras, de quem realmente se está falando ao tratar da juventude e como ela pode ser conhecida e caracterizada?
A categoria juventude ganha contornos próprios em contextos históricos, sociais e culturais, ela é marcada pela diversidade nas condições sociais (origem de classe, por exemplo), culturais (etnias, identidades religiosas, valores, etc), de raça, de gênero e, até mesmo, local de moradia, dentre outros aspectos. Além de ser marcada pela diversidade, a juventude é uma categoria dinâmica, transformando- -se de acordo com as mudanças sociais e as determinantes políticas, econômicas e ideológicas. Em função disso Regina Novaes (1998) destaca que não há que se falar em juventude, mas sim em juventudes, enquanto sujeitos que a vivem, experimentam e sentem segundo determinado contexto sociocultural onde se inserem. Um dos primeiros temas associados a percepção de juventude como transição é a educação.
Juventude e Educação
É lugar comum à associação dos conceitos de juventude com os de educação, ideia que por muito tempo foi responsável inclusive pela caracterização e identificação do jovem justamente como “o estudante”. Ou seja, aquele sujeito que está numa fase de preparação e que frequenta instituições de ensino para ser inserido no mercado e que tem como principais responsabilidades a dedicação à formação. Como dito anteriormente, a base desse raciocínio é o pressuposto liberal de juventude, incapaz de dar conta de uma realidade em que a maioria dos jovens precisa trabalhar para sobreviver, interrompendo, ou sequer começando, seus estudos, tendo seu ingresso no mercado sendo forçado muito antes de concluir qualquer ciclo de formação.
Assim, o papel da educação associado a essa concepção de juventude tornou-se elemento decisivo para sua perpetuação. Os modelos educacionais e os sistemas de ensino, dominados pela lógica do mercado, funcionam como catalizadores e reprodutores dessa ideologia. Por isso, uma disparidade monumental se consagra na educação recebida pelos jovens, pois a educação não é para todos apenas para aqueles que estão “adequadamente” inseridos no sistema.
No Brasil, desde a Ditadura Militar (1964-1985) a educação voltada para a juventude tinha como pilar a formação de uma mão de obra para o mercado industrial em expansão. Nesse período, o governo buscava construir um currículo escolar que pudesse ter “utilidade”, assim foram criadas disciplinas que ensinassem ofícios aos jovens. A educação possuía uma concepção de que precisava ser produtiva. Com o surgimento e respectiva vitória do Neoliberalismo novos mecanismos foram incorporados. O Sistema S2 como SESI e o SENAI, por exemplo, entraram no cenário para produzir mão de obra qualificada e implementar modelos educacionais que além do caráter estritamente técnico, não permitiam a liberdade crítica e a autonomia de pensamento, mas sim um adestramento ao setor industrial.
Ao longo de toda a década de 1990 o Brasil, como o mundo, vivenciou o aprofundamento do neoliberalismo, abrindo espaço para ideologias que pregam o individualismo, a competição, a meritocracia, e etc., que advêm não apenas dos meios de comunicação, mas principalmente dos currículos escolares. O modelo educacional, ao invés de socializar o indivíduo a partir de uma formação mais humana e crítica, reproduz a ideologia de uma educação voltada para o mercado e para o consumo, onde os jovens precisam desde cedo lidar com uma formação liberal de pensamento. Além disso, é comum encontrar nas escolas brasileiras rankings de desempenho e avaliações externas que não consideram as condições socioeconômicas dos educandos, mas sim um sistema de bonificação e mérito a partir do aproveitamento de cada estudante.
A escola por sua vez, não consegue dialogar com as demandas de parcela significativa da juventude, especialmente a juventude trabalhadora e nem responde aos anseios das mudanças ocorridas nos últimos anos. Um modelo de escola que é enclausurador, opressor, reprodutor de preconceitos e que pouco permitem que a autonomia crítica do aluno possa ir pra além do que os velhos currículos e práticas permitem. A opção da valorização do setor privado, por meio das Organizações Sociais (O.S.) na educação em detrimento da escola pública, busca enquadrar os educandos nos velhos modelos tradicionais de pensamento, de modo que não possam ser sujeitos de direitos, críticos e autônomos, haja visto as censuras sofridas pelos professores por meio de projetos como o chamado “Escola sem Partido”.
Entretanto, esse mesmo modelo de escola, sob uma ideologia conservadora e meritocrática (que mais embute sentimento de culpa e impotência) produziu os limites e contradições que assistimos em 2015, quando começaram as ocupações das escolas, inicialmente em São Paulo e logo, espalhadas por todo o país. Era uma tentativa de superar os moldes da velha educação.
O Estado e a Juventude “perigosa”
Ao contrário do que prega a meritocracia para muitos a juventude não é um momento de direito a educação. Nos governos Lula e Dilma, com a expansão das Universidades Públicas e Institutos Federais houve uma ampliação do acesso à educação para a juventude trabalhadora. Mas, ainda assim, para uma parcela expressiva das juventudes ser jovem significa viver diariamente uma percepção de aparatos de estado que os classificam como “perigosos”. As formas que o Estado tem se apresentado para os jovens negros, especialmente de favelas e periferias no Brasil, são extremamente violentas, pois vão desde abordagens policiais, passando pelo debate da diminuição da maioridade penal, ao extermínio da juventude negra, pautas/ações apoiadas pelo conservadorismo na sociedade e reforçadas com ajuda policial e da mídia.
Os dados do Mapa da Violência publicado em 2016 são exemplos da má relação do Estado com a juventude, sobretudo a negra e periférica. Não é de hoje que esses jovens são os que mais sofrem com a violência do Estado, no entanto, mesmo depois de décadas e de algumas políticas importantes para a juventude, o número de homicídios por arma de fogo ainda é inaceitável. Mais de 318 mil jovens foram assassinados no Brasil entre 2005 e 2015. Os homens jovens continuam sendo as principais vítimas: mais de 92% dos homicídios acometem essa parcela da população.
Outro dado importante apresentado pelo Mapa da Violência (2016) é que, no período que se compreende de 2004 a 2014, a taxa de homicídios cai entre as metrópoles que antes apresentavam violências concentradas, como o caso de São Paulo. Entretanto, são as capitais da região nordestina do país que passaram a apresentar altos índices de mortalidade. Fato que pode nos dar indícios da organização do crime nessa região do país, a qual pode ter impacto profundo sobre a juventude, como já se viu em outros lugares e em outros momentos da história recente do Brasil. Pois são nas áreas definidas por risco, caracterizadas como áreas de alta criminalidade que ocorrem a maior quantidade de assassinatos de jovens negros sob a caracterização de auto de resistência. Um verdadeiro genocídio da juventude negra pelas mãos do estado.
Tal situação faz com que vários jovens não busquem a política como fonte de mudança da sociedade, uma vez que muitas vezes são os agentes do Estado que os estão oprimindo. Os jovens são bombardeados pela propaganda e pelos meios de comunicação que diariamente apresentam a política como uma via de enriquecimento pessoal e de corrupção. A criminalização da política generaliza e desqualifica a participação.
Desdobramentos conservadores
A agenda conservadora que se forma no campo ideológico e político promove uma verdadeira campanha entre a juventude. Mais uma vez é importante ressaltar o que foram os anos 1990 para a classe trabalhadora, pois para além do plano econômico, ocorreram fortes mudanças no campo religioso, com o aumento de Igrejas neo pentecostais que passaram a surgir em todo o país.
Não à toa, hoje lidamos com setores de juventudes religiosas conservadores que são educadas a partir de doutrinas que tem como expressão no campo político Marcos Feliciano e, principalmente, Jair Bolsonaro. Este último tem arrebatado muitos adeptos jovens que reproduzem o conservadorismo e a intolerância, que atacam a própria juventude, a classe trabalhadora, a diversidade religiosa, política, social, étnica, de gênero e sexualidade. Fundamental destacar aqui que a disputa pela consciência da juventude hoje tem sido meta incessante das forças conservadoras organizadas na sociedade.
A ofensiva das igrejas evangélicas mais fundamentalistas e reacionárias, a ação do governo federal golpista do Temer de desmontar o Estado atacando os direitos sociais e trabalhistas, e a ação orquestrada pelos grandes meios de comunicação de massas tem apresentado para parcelas cada vez maiores da juventude trabalhadora um cenário de vida com poucas ou quase nenhuma perspectiva. Busca-se incansavelmente convencer a juventude de que os problemas do mundo são insolucionáveis e que a meta da própria existência é o consumo, alcançado por meios individuais, como sintoma de felicidade.
Na esteira desse pensamento está a intensificação da descaracterização do papel do Estado e das políticas públicas. O sistema tem transferido a velha ideologia neoliberal para a esfera íntima e privada, principalmente dos jovens que não viveram os anos mais duros do neoliberalismo e que acreditam que os problemas da sociedade hoje estão única e diretamente relacionados à corrupção dos governos de esquerda. Destaque para a pesquisa publicada pela FGV/DAPP que demonstra ser para 67,5% dos jovens de 16 a 24 anos, a corrupção o que mais os angustia hoje no Brasil.
Nessa verdadeira guerra de versões, o aparato midiático e religioso possui armas de muito maior potencial ofensivo. Infelizmente, estes setores (que segundo a mesma pesquisa, no caso das igrejas, detêm mais 67% da confiança da população de 16 a 24 anos) conseguiram potencializar e mesmo gerar o desespero, a desesperança e o medo na juventude, apresentando uma saída individual e particular para cada um. Conseguem manter assim um “ciclo vicioso”, no qual instigam o aumento da violência, operam o crescimento do desemprego e a queda do padrão de vida da população, tudo isso para justificar mais violência, mais desemprego e mais diminuição no padrão de vida como formas de perpetuar o medo e assim manter sob controle a juventude trabalhadora.
Juventude e Trabalho
A desindustrialização que o país vem passando desde a década de 1990, combinada com a ideologia neoliberal, faz com que parte do setor da classe trabalhadora, que sempre esteve articulado com lutas sociais perdesse força na disputa dos rumos políticos do país. Em contrapartida, o setor terciário do trabalho teve um aumento muito expressivo na sua composição, estando concentrada nesse segmento a maior parte da juventude trabalhadora e que não vivenciou as grandes lutas sociais travadas nos anos neoliberais.
No setor terciário, a juventude enfrenta a desvalorização dos salários, atuando em trabalhos precarizados e com índice de rotatividade nos empregos muito alto. Muitos dos postos de trabalho oferecidos à juventude advêm de empresas terceirizadas que não respeitam a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), para não falar da parcela dos jovens que se encontram no setor informal da economia.
Com as reformas do atual governo a juventude será um dos setores mais atingidos. As Reformas Trabalhistas, Reforma da Previdência e a EC 95 (que congela os gastos públicos em investimentos para a educação) evidenciará o sucateamento e às más condições da educação no país. Todas essas medidas limitarão a renda familiar e poderá possibilitar que mais jovens se lancem precocemente ao mundo do subemprego, com contratos flexíveis, precários, principalmente devido ao aumento da jornada de trabalho, o qual dificultará a conciliação entre trabalho e escola.
Hoje, a juventude brasileira ocupa um quarto da população total do Brasil (IBGE, 2015). O perfil do jovem brasileiro é majoritariamente feminino, urbano e negro. Segundo o IBGE, 53,5% dos jovens trabalham, 36% estudam e 23 % dos jovens buscam a conciliação do trabalho com os estudos, onde um dos lados fica prejudicado, ainda mais quando assumem papeis centrais no seio familiar. Os jovens entre 25 e 29 anos, 70% está trabalhando ou procurando um emprego (Ministério do Trabalho, 2013). Isso nos mostra que a juventude brasileira é, sobretudo, uma juventude trabalhadora.
Não podemos ainda deixar de ressaltar que a falta de sustentação do trabalho da juventude e sua falta de valorização faz com que o jovem fique restrito a sua trajetória pessoal de conquista e garantia de um emprego visando à complementação do orçamento familiar, o que, muitas vezes, impossibilita se dedicar às demais lutas sociais.
Ao falar de juventude trabalhadora precisamos ter como perspectiva, também, maneiras de alcançar a organização desses jovens e do conjunto da classe trabalhadora em organizações de luta, em especial os sindicatos. Pois, apesar das inúmeras dificuldades que os jovens enfrentam no mundo do trabalho, a maioria deles não está organizada em sindicatos, acompanhando a lógica geral de não sindicalização em que o índice gira em torno de 16% e se mantém desde o ano de 2003 (80% dos trabalhadores do país não estão organizados para as lutas sociais). Ainda assim nos principais movimentos sociais e sindicais do país a juventude está organizada, a CUT comemora esse ano (2017) 20 anos do seu Coletivo de Juventude.
Algumas considerações finais
É fundamental que transformemos as lutas sindicais da classe trabalhadora em lutas que promovam rupturas com o atual modelo de trabalho sustentado pela burguesia aliando-se ao movimento estudantil, ao movimento negro, aos movimentos feministas e LGBT, ao movimento dos Sem Terra e Sem Teto. Pois, grande parte da juventude trabalhadora está inserida em problemas que cada um desses movimentos combate, seja na sala de aula, seja contra o machismo, o racismo, a homofobia ou contra qualquer tipo de preconceito ou exclusão.
Nesse sentido, é preciso congregar os problemas enfrentados pela juventude trabalhadora para dentro e para fora das organizações políticas, a fim de promover rupturas com as heranças neoliberais que servem ao grande capital, e assim, caminhar para uma outra maneira de se compreender a juventude, transformando com a juventude suas condições de vida.
ANA LÍDIA é mestre em Ciências Sociais e compõe a direção da JPT SP
PATRICK CAMPOS é Bacharel em direito e militante da JPT