Por Valter Pomar (*)
No dia 4 de fevereiro de 2022, a companheira Gleisi Hoffmann concedeu uma entrevista ao blog MANIFESTO PETISTA.
A entrevista está disponível no seguinte endereço:
https://www.youtube.com/watch?v=FbJoY2HNkQI
Entre as pessoas que assistiram a entrevista, um grande número deixou mensagens criticando as posições da presidenta, especialmente acerca de Alckmin e acerca da federação.
E houve também pelo menos uma pessoa crítica aos entrevistadores, que supostamente teriam “pegado leve” e deixado a presidenta do PT “nadar de braçada”.
Na minha opinião, parte desta crítica procede em termos: nosso principal objetivo é ouvir a opinião das pessoas entrevistadas sobre os temas em debate. Para isso cabe a nós perguntar tudo o que deve ser perguntado, no tempo disponível e respeitando a pessoa convidada. Portanto, não nos cabe “pegar pesado”.
Mas a outra parte da crítica, também na minha opinião, simplesmente não procede: infelizmente, mesmo em águas supostamente tranquilas, a presidenta do PT não “nadou de braçada”.
A seguir, um resumo da entrevista.
A primeira questão (de Rui Falcão) feita à Gleisi foi referente aos “comitês de luta”. Ela deu a resposta padrão a respeito, baseada numa interpretação excessivamente otimista do processo de encontros setoriais do Partido e na expectativa de que ali na frente os “comitês de luta” virarão “comitês Lula”, como parte de uma campanha massiva e militante.
A segunda questão (feita por José Genoíno) foi referente à federação. Genoíno lembrou que se está negociando uma federação com partidos que estão à direita do PT e perguntou se isto não criaria dificuldades políticas e programáticas para o Partido, na eleição e no eventual governo.
A resposta de Gleisi foi que ela não concorda que isto vá acontecer. Gleisi acha que os problemas de direitismo limitam-se a setores desses partidos, especialmente em algumas regiões do país. E que a federação, como vai se conformar em torno da candidatura Lula, vai depurar os setores mais alinhados à direita – “a tendência é que saiam”- ficando os defensores de um programa mais “à esquerda e centro-esquerda”.
Ou seja: segundo Gleisi o alinhamento programático se daria em torno da candidatura Lula, como em tese aconteceria… numa coligação.
Também na resposta dada à questão feita por Genoíno, Gleisi citou o caso de Pernambuco, onde Humberto Costa teria tido um “gesto generoso” ao retirar a pré-candidatura dele.
Não foi citado nem pelos entrevistadores, nem pela Gleisi, o nome do candidato a governador do PSB, ao que tudo indica um deputado que em 2016 votou pelo impeachment de Dilma.
Ou seja: o ponto de partida de Gleisi -premissa para tudo o que ela fala a seguir – é que não haveria impedimento programático numa aliança entre o PT e o PSB.
(Talvez por pudor, não se falou do apoio do PSB a Aécio no segundo turno de 2014, do voto do PSB em favor do impeachment, nem de fatos mais recentes em âmbito nacional, estadual e municipal. Pelo visto, basta agora apoiar Lula para nós aceitarmos “virar a página” e olvidarmos os malfeitos, como se os problemas fossem apenas passados e não também presentes e futuros).
Em seguida fiz duas questões: em que momento e em que lugar se vai decidir pela vice, portanto em que momento e lugar a militância que não concorda com entregar a vice para alguém como Alckmin vai poder apresentar um nome alternativo? E como será o funcionamento das federações nos municípios?
A resposta de Gleisi para a primeira pergunta foi: a proposta “Alckmin vice” teve origem em São Paulo, ganhou vida própria, mas não há discussão “institucional” a respeito e há uma série de preliminares (Alckmin precisa se filiar a um partido, se houver federação esta precisa debater o assunto, o PT precisa discutir, há o debate programático etc.).
Um ponto importante da resposta foi a afirmação peremptória, feita por Gleisi, de que a decisão sobre candidatura vai ser feita em um encontro do Partido (pode parecer uma obviedade, mas algumas pessoas estavam crentes de que o assunto vice poderia ser resolvido na executiva ou no diretório nacional do PT).
Sobre o tema das federações, Gleisi afirmou que as discussões (feitas desde 16 de dezembro de 2021) são preliminares e que o (primeiro!!!) informe a respeito será dado na reunião da executiva nacional convocada para o dia 7 de fevereiro de 2022.
Especificamente sobre o tema dos municípios, disse que ainda não foi debatido entre os partidos, mas haveria uma “reivindicação” do PSB – que ela Gleisi “não acha de todo ruim” – segundo a qual a indicação dos partidos governantes teria “precedência”.
Gleisi deu como exemplo Juiz de Fora e Contagem: nestas cidades governadas pelo PT, as indicações do PT para a sua própria sucessão teriam “precedência”.
Como a própria Gleisi explicou, as “negociações” feitas até agora não foram precedidas de discussão na direção do PT e, portanto, o que foi tratado corresponde, pelo menos no caso do petismo, à opinião dos dirigentes envolvidos nas tratativas.
Isto posto, a reivindicação do PSB chama a atenção para dois problemas pouco debatidos: i/a obrigação dos partidos federados terem candidaturas únicas à prefeitura em todos os municípios do Brasil; ii/o que fazer caso não haja acordo.
A esse respeito, Gleisi falou de “acordo” e de “pesquisa” como possível método de solução. Mas de novo fica no ar o seguinte: e se não tiver acordo, resolve como? No voto? Quem vota?
Gleisi considera possível ir resolvendo estes problemas “ao caminhar”, depois de 2022, talvez revendo o estatuto aprovado agora.
Neste sentido, ela parece imbuída da ideia de que a federação seria um espaço idôneo para “um grande exercício de consenso”, chegando a comparar com esforço de unidade feito (segundo ela) dentro do próprio Partido dos Trabalhadores.
As palavras de Gleisi são: “a federação não é um espaço onde um partido se sobreponha ao outro”.
A consequência prática desta visão cândida é: i/ou submeter o PT aos consensos possíveis com os demais partidos; ii/ou, se não houver consenso, a federação liberar os partidos para “se manifestarem”.
Como parece óbvio, esta visão cândida reflete um ponto de vista estritamente parlamentar. Mas como “liberar os partidos” em temas como escolha de candidaturas, se a lei determina que a federação precisa ter uma única candidatura em cada âmbito? Além do mais, qual o sentido da federação, se em questões fundamentais não houver consenso??
Neste ponto da entrevista, foi perguntado e Gleisi confirmou que o PT está solicitando ao TSE o adiamento do prazo limite (hoje fixado em 1 de março de 2022) para registro de uma federação.
Na sequência, foi pedido (por Celso Marcondes) a Gleisi que falasse das “virtudes” de Alckmin; Celso perguntou também se não foram discutidos outros nomes.
A resposta de Gleisi foi a padrão: “nunca fizemos discussão de nomes para vice”. Como é óbvio, ela está se referindo às instâncias formais do Partido. Mas na informalidade, o debate corre solto, constituindo uma óbvia pressão sobre as instâncias.
Um ponto divertido é: Gleisi não citou absolutamente nenhuma virtude de Alckmin, exceto (indiretamente) o desejo de “São Paulo” em tirar Alckmin da disputa, favorecendo Márcio França e Fernando Haddad.
Ao mesmo tempo, Gleisi falou que o debate programático precede e deve constituir o“norte” do debate sobre a vice. E defendeu que nosso programa não deve amaciar e não deve ter como objetivo atender o “mercado”.
Também neste ponto Gleisi falou da possibilidade de Alckmin se filiar ao PSB e da possibilidade de o PSB indicar Alckmin como candidato a vice.
Possibilidade que, aliás, contradiz a tese, defendida no início da entrevista ao MANIFESTO pela mesma Gleisi, tese segundo a qual uma federação com o PT depuraria o PSB.
A esta altura da entrevista, a Maria Carlotto fez uma síntese das perguntas e comentários das pessoas que estavam acompanhando a entrevista: “quando a militância será ouvida?”, “é possível ter um programa de esquerda e um vice neoliberal, da Opus Dei, como Alckmin?”, além de muitas críticas à federação.
Rita Camacho aproveitou a deixa para perguntar se a revogação da reforma trabalhista seria uma premissa (seja da federação, seja da definição sobre a vice). Rita disse, também, ter sentido numa entrevista de Gleisi que ela estaria admitindo flexibilizar e perguntou: “tem algo de bom na reforma trabalhista?”
Gleisi respondeu existir uma discussão “sobre o verbo: revogar ou revisar”. Ela disse não achar isto importante, pois “até para revisar tem que revogar todas as disposições em contrário”. E defendeu “revogar e construir uma nova legislação”, “consertar o que deu errado”, pois a “maioria da reforma trabalhista deu errado”. E defendeu “se mirar no exemplo da Espanha” (vale lembrar que na Espanha houve uma revisão parcial da reforma anterior, revisão negociada com o empresariado). Para bom entendedor, meia palavra basta.
Gleisi também reafirmou que a federação “não está aprovada”: para aprovar tem que ser “levada uma proposta às instâncias partidárias”. Ela chegou a dizer explicitamente que ela “como presidente, mais alguns companheiros” estão discutindo o estatuto etc. e “vamos levar para as direções dos nossos partidos propostas”.
Assumidamente trata-se de um procedimento totalmente diferente do aprovado pelo Diretório Nacional do PT, dia 16 de dezembro de 2021, determinando que as negociações deveriam ser “conduzidas” pela executiva nacional do Partido.
Ainda sobre o tema, Gleisi disse ser contra levar o tema da federação para um congresso do PT. Para ela, a “união de partidos para um objetivo comum” pode ser aprovado pela “direção máxima”, que para ela é o Diretório Nacional.
Uma lógica curiosa: candidaturas e política de alianças serão deliberadas num encontro, mas a federação – embora preceda do ponto de vista lógico e embora dure por 4 anos – poderia ser decidida apenas pelo Diretório.
Fica claro, nesta como em outras questões, estarmos diante de visões profundamente diferentes acerca de certos temas. O que para uns seria praticamente a diluição do PT em um partido-de-partidos, para outros seria uma coligação melhorada; o que para uns é rebaixamento programático, para outros é um acordo aceitável; e assim por diante.
Gleisi voltou neste ponto a falar da vice, lembrando estarmos num “momento muito duro da história”, falando da ameaça nacional e internacional da extrema-direita, para justificar a necessidade de um programa e de uma aliança “que nos dê condições de não deixar esta gente voltar”.
Foi o mais perto que ela chegou de justificar uma aliança “mais ampla”, mas sempre “sem abrir mão de questões fundamentais no programa”: “privatizações”, “política fiscal ampliada”, “reversão das reformas feitas em prejuízo do povo”. O problema é: será possível atender estes dois objetivos?
Em seguida Natália Sena perguntou a Gleisi sobre as “fórmulas” do funcionamento das direções da federação: baseado na proporcionalidade das bancadas, maioria do PT na direção da federação, mas decisões importantes seriam tomadas por 2/3, constituindo na prática um direito de veto dos partidos minoritários.
Gleisi respondeu que a referência para elaborar esta fórmula foi a mesma adotada para definição do fundo partidário, do fundo eleitoral e do tempo de horário eleitoral gratuito.
A resposta de Gleisi revela existir um problema adicional no tema da federação, problema pouco debatido: o PT é um partido militante, mas a federação é uma cooperativa de parlamentares. Na prática, com a federação tende a se institucionalizar um problema já existente no PT, que é a submissão crescente do partido-militância ao partido-bancadas.
Ademais, o critério de 2/3 seria adotado onde “não chegarmos a consenso”, mas Gleisi reafirmou que a federação será um “espaço de construção e diálogo para construir o consenso, um exercício permanente de convivência de forças”.
No caso da votação das bancadas, Gleisi reiterou o método de liberação onde não houver consenso. E no caso da escolha de candidaturas, a resposta foi a dada anteriormente: consenso, prevalência de quem já governa, pesquisas etc.
Mas no limite, se nada disso der certo, como decidir as candidaturas da federação?
Gleisi não respondeu.
Será possível firmar uma federação deixando isto em aberto??
Douglas Martins fez duas perguntas, uma sobre o prazo e outra sobre o programa. Gleisi respondeu que o prazo de 1 de março dificulta, mas não inviabiliza. E sobre o programa, Gleisi considera que os partidos envolvidos no debate da federação tiveram posições muito semelhantes na reforma trabalhista e previdenciária e a “vários outros temas” no Congresso nacional.
Gleisi também chamou a atenção para o seguinte: a federação não precisa agora de um programa de governo, mas de uma “carta programática”, “assim como” aconteceu com o PT quando ele foi “lançado”. Segundo Gleisi, estaria sendo elaborada tal proposta.
Já o programa de governo, lembra Gleisi, poderá ser debatido pela federação (se esta vier a ser formada) com outros partidos. Por exemplo, o PSOL e a Rede, mas também outros partidos. Sobre o PSD e o MDB, entre outros, nada foi falado.
A comparação feita por Gleisi, entre o PT e a federação, reforça as preocupações dos que consideram que a eventual adesão a uma federação não é algo trivial. Aliás, registre-se: na hora de falar dos supostos benefícios da federação, Gleisi é enfática; mas na hora de falar dos evidentes malefícios, Gleisi minimiza, como se a federação fosse apenas uma coligação com outro nome.
Para “aliviar”, Rui pediu a Gleisi que falasse do aniversário do PT.
O que Gleisi afirmou neste momento da entrevista acerca da importância do PT é – na minha opinião – contraditório com o movimento de diluição do Partido em uma federação.
Contraditório do ponto de vista programático e estratégico, mas contraditório também do ponto de vista eleitoral.
Afinal – e disto não se falou na entrevista – do ponto de vista estritamente eleitoral, a federação funcionará como uma coligação proporcional. E o efeito das coligações proporcionais sobre o PT é reconhecidamente negativo. Portanto, a federação neste momento significa transferir para o PSB realmente existente (em cada estado e cidade do Brasil sabemos o que isso significa) parte dos benefícios deste bom momento vivido pelo PT.
A última pergunta foi feita por mim, acerca da pressão feita pelo PSB para o PT retirar suas candidaturas a governador em vários estados, especificamente em São Paulo e Rio Grande do Sul. A pergunta foi: “numa situação limite, se o PSB chegar e nos disser ou é isso ou é nada, qual deve ser a nossa postura?”
A resposta de Gleisi foi: “eu não trabalho com esta hipótese”.
O curioso é que ela considera “óbvio” que Carlos Siqueira tensione, mas ela não parece achar igualmente óbvio que nós do PT tensionemos também, da mesma forma e no sentido oposto.
Na opinião de Gleisi, vamos ter um “entendimento político” tanto em São Paulo como no Rio Grande do Sul e Espírito Santo. E informou que esta semana haverá reunião com PSB, PV e PCdoB para debater o a situação desses estados.
Como em outras questões envolvendo a federação, Gleisi parece acreditar que conversando tudo se resolve. Pode ser que seja assim, até porque como todo bom chantagista, a cúpula do PSB não joga dinheiro fora e sabe muito bem dos benefícios eleitorais advindos de uma aliança com o PT e com o Lula nestas eleições de 2022.
Eles operam para maximizar estes benefícios. E até agora tem tido êxito.
Mas é exatamente nisto que reside o problema: numa conjuntura tão favorável, por qual motivo deveríamos fazer tantas concessões?
Por quais motivos deveríamos montar uma federação e nos amarrar por quatro anos com um partido como o PSB?
Por quais motívos deveríamos aceitar discutir a entrega da vice para a direita golpista e neoliberal?
Para tudo isto, a resposta sempre gira ao redor do “ampliar as chances de derrotar Bolsonaro e eleger Lula”.
O que não tem nenhuma resposta crível é a pergunta feita por alguns ouvintes da entrevista: como fazer tantas concessões e, ao mesmo tempo, manter um programa que não “amacie” com o mercado?
A expectativa de vitória em 2022 faz muita gente boa aceitar qualquer concessão como se fosse útil e inevitável. Mas do mesmo jeito que ocorreu entre 2003 e 2016, tudo tem seu preço.
O preço da aliança com Alckmin é rebaixar o programa: em nome de derrotar o bolsonarismo, conciliar com o neoliberalismo.
O preço da federação é mudar na prática a natureza do PT.
Ainda somos um partido de militantes, apesar de todos os problemas.
Mas se a federação for aprovada, isto estará em questão.
E o saldo disto para a organização da classe será um desastre.
Embora tenha gente que não acredita mais nisto, nós seguimos acreditando: a existência do PT é decisiva para o futuro da classe trabalhadora e do Brasil.
Matar o PT, sufocar o PT, desmoralizar o PT, corromper o PT, é a meta permanente da classe dominante.
E não consigo deixar de pensar em um livro chamado El sastre de Ulm, que conta a história de um importante dirigente do Partido Comunista Italiano, o Lucio Magri.
Magri conta o seguinte: num determinado momento foi tomada uma decisão muito grave, que acabou levando ao fim do PCI.
A esse respeito, Magri confessa o seguinte: “eu estava convencido do contrário, porém me resignei a um silêncio que era um consentimento”.
E acrescenta: “voltando a pensar em minha vida política, creio que entre tantos erros que eu cometi, esse silêncio foi o único em que o erro se mesclava com a vileza”.
Embora a atual direção do PT tenha alguns candidatos a Magri, também tem muita gente preocupada com os problemas reais.
Assim, fica o convite aos contrários, seja aos contrários a entregar a vice para um golpista neoliberal, seja aos contrários a amarrar o PT numa federação mal ajambrada: afastem a resignação, manifestem-se privadamente, manifestem-se publicamente, votem contra.
Da nossa parte, esta disputa será feita não apenas no Diretório, mas também no congresso do Partido.
Por último, mas não menos importante,: o Leão da Montanha citado por Douglas Martins no pós-entrevista (disponível no youtube) era um personagem engraçado da Hanna-Barbera, que tinha entre seus bordões o “saída pela esquerda”.
Se pintasse algo difícil de fazer ou de explicar, vinha a resposta: “saída pela esquerda”.
O Leão da Montanha é ótimo. Mas a luta de classes não é um desenho animado.
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT