Por Daniel Marcolino C. de Sousa (*)
Tenho frequentado diversos debates no campo da educação ora como aluno, outras vezes como professor, e, neles, é bom que se diga, os participantes se empenham com sinceridade e com boa intenção de fazerem o seu melhor. Nesses espaços, no entanto, quando se procura analisar a “crise” da educação costuma-se buscar apoio não em um repertório linguístico político ou teórico do campo da administração ou da educação, mas em afetos pouco pertencentes a essas esferas, de modo que os argumentos saltam de um para outro como se fossem desconhecidos entre si, sem relações causais. Daí a um instante, com assiduidade, fala-se na humanidade, que teria perdido o prumo, em corrupção, essa pauta levantada em todos os golpes executados em governos da América Latina, ou em democracia, dentre outros temas, sempre com uma imprecisão flagrante.
Enquanto isso, a realidade corre paralela.
Assim, observo com assombro professores e alunos de universidades públicas tergiversando o fundamental, embaralhando-se ao defender grandes abstrações, dentre elas, o que costumam chamar de democracia, como se fosse essa a grande marca do país a ser defendida, coisa da qual “não se deve abrir mão”. Para tanto, limitam-se a citações pontuais de documentos normativos, como a CF/88 ou a BNCC, a ONU e outras entidades internacionais, além de buscarem abrigo em países como EUA, este que é, numa busca rápida de Google, indubitavelmente, o maior assassino e aniquilador de soberanias nacionais do século XXI, que opera um suposto legítimo combate ao que chamam de terrorismo, exercendo – ele mesmo – um implacável terrorismo de Estado. Nos debates, nada desses números assombrosos e reveladores é levado em conta, apenas um sentimento de que as coisas fiquem como estão.
Na defesa do abstrato, os debates esvaziam a discussão e o seu campo de ação, perdendo seu lugar “natural”, a velha crítica universidade dos anos 1960-1980, e as ruas, acrescidas das redes sociais. Desse modo, terminalmente, a esquerda tenta “civilizadamente” se equilibrar entre a cruz (extrema-direita) e a espada (a democracia exportada pelo Império estadunidense). Há ainda um espectro estranho de vários participantes desse debate. Eles se apresentam orgulhosamente na posição da autoproclamada independência ideológica, anunciando um lugar de neutralidade: “Não tenho político de estimação”, diz alguém, já com o pé no campo da moral, sem encontrar contestações.
Nessa encruzilhada, nota-se que a esquerda se inclina a conformar suas posições contra referências caricatas como Donald Trump e Elon Musk ou o bolsonarismo, com sua versão turbinada via eleições paulistanas, e a Israel genocidária. Demarcada a posição, para ficarmos nas fronteiras da região sul-americana, em tom definitivo, designam Venezuela e Cuba como ditaduras, cometendo equívocos flagrantes, um atrás do outro, quando essas vozes, eco nítido da grande mídia, são nitidamente dubladas pelos interesses privatistas e imperialistas. Mas, como se não bastasse que esse pavimento da direita se desse em solo universitário público, de acordo com texto contundente de Alexandre Eduardo, o editorial da EBC (Empresa Brasil de Comunicação) está nas mãos de um bolsonarista, Vancarlos de Oliveira Alves, que segue publicando disparates infundados contra as eleições na Venezuela, dando voz à oposição golpista desse país. Bem, Lula e Amorim também têm declarado disparates nesse tema.
Ao contrário, o que se espera de um partido de esquerda e da universidade pública brasileira é o apoio resoluto a esses países que confrontam o Imperialismo e sustentam/sofrem o ônus dessa luta, que se espelhem em judeus militantes, que marcham contra o genocídio do povo palestino. Espera-se ainda uma contundente crítica ao aumento da exploração da classe trabalhadora e um enfrentamento firme dos ataques à educação pública. No entanto, um e outra escalonam a pauta democrático-discursiva, abstrata, liberal, que não representa nem de longe o interesse da maioria da população do país, historicamente oprimida por uma burguesia nada abstrata e ávida pela intensificação material da acumulação da riqueza produzida pelo trabalho vivo.
Trata-se de um discurso vazio, porque ele não se espelha na realidade material desse grande contingente populacional, não propõe nada efetivo quanto ao desenvolvimento econômico autônomo do país ou quanto à consolidação de relações com outros países da América Latina ou do BRICS. É defensivo, acuado demais por uma pauta imposta pela direita e, assim, assimilada. Nessa disputa-adaptação, a esquerda acaba ajustando sua gramática, como Safatle já falou, eliminando de seu repertório linguístico, como Winston, personagem de “1984”, expressões, reivindicações e conceitos do campo propriamente da política, substituindo-os por afetos, como amor, medo, fé, além de tomar a administração da coisa pública como extensão do privado, de alguém que teria competência para a vida pública por possuir valores da boa família brasileira, seja lá o que isso significa. Essa substituição do repertório lexical político inunda as campanhas eleitorais tradicionalmente do campo da esquerda, caso de candidatos também do PT à prefeitura de algumas cidades. Um deles começa seu programa eleitoral afirmando ser casado, pai e que teria decidido se candidatar, porque sentira fé em seu coração, uma espécie de chamado divino, deixa a entender. Já vimos o uso desse expediente dezenas de vezes. Não foi Simone Tebet, que, também em campanha eleitoral, dizia oportunamente ser mulher, mãe e que respondia a uma coerência de quem proclama o evangelho?
Meus amigos, companheiros e camaradas, desculpem-me, mas o que interessa a condição de pai desse candidato ou a de mãe da outra citada nominalmente? Não há fascistas e neonazistas, grandes empresários/as ou pastores ricos que são pais, cujos interesses individuais colonizam a educação pública do país? Há, pois, um conjunto de afetos que a esquerda apregoa ter sido imposto inelutavelmente e que não lhe restaria alternativa a não ser adotá-lo no debate sobre a administração pública. Nós temos o entendimento contrário. É exatamente aí que o campo da esquerda demanda coerência na luta contra uma pauta emprestada, que serve apenas a interesses extrínsecos aos trabalhadores.
Algumas palavras a mais sobre o tema “identitário” serão aqui ditas para que fique evidente nossa posição frente à confusão que existe em torno desse aspecto. Ora, não poderíamos mesmo dizer que há determinadas mulheres que são mais homens que a grande maioria dos homens no país, considerando sua condição de privilegiadas de classe? Como identificá-las às demais mulheres, que sofrem pela falta dos direitos básicos, acrescidos de diversas outras faltas próprias da demanda de seu gênero? Nesse sentido, a ênfase dessas mulheres ricas em sua condição universal de mulher, mãe e de cristãs não objetivaria eliminar as diferenças em relação à maioria das mulheres que, essas, sim, são submetidas à vulnerabilidade social, fazendo desaparecer a peculiaridade que expressa a desigualdade social? Essa posição de privilégio classista é investida de interesse próprio na manutenção das desigualdades sociais. Por isso, estabelece na luta de classes sua participação militante decisiva, desenvolvendo estratégias e articulações políticas para o recrudescimento da expropriação da maioria da população. Portanto, trata-se de uma questão de classe e não especialmente de gênero, ao menos não exclusivamente de gênero. Penso mesmo que essas mulheres ricas, caso de Tebet, deveriam pedir desculpas pelo bolsa-berço que recebem em seu nascimento, privilégios robustos herdados de classe num país violento com os mais pobres, e não se apresentarem como merecedoras de crédito em razão de terem ocupado cargos públicos eletivos.
Sendo assim, fica claro que essa democracia vazia defendida pela esquerda e pela universidade pública serve a uma burguesia ávida, que celebra a queda do acirramento e da diferença que guardava para com a esquerda clássica. O medo do retorno da extrema-direita bolsonazista ao poder segue como referência a ser combatido, o que faz com que a esquerda tenda ao centro, ocupando-se quase exclusivamente com uma institucionalização no campo da disputa eleitoral. Sendo esse o objetivo consequente da esquerda, o de sobreviver por aparelhos, as eleições ganham importância capital a ponto de termos o afogamento da luta efetiva, do enfrentamento do Capital, que proporia, por exemplo, a reestatização das empresas privatizadas desde a era FHC e, mais recentemente, na era Temer e Bolsonaro. Além disso, deixa de propor a inexistência de patrões, subsidiada por uma reforma agrária radical, que priorizasse a agricultura familiar, o recrudescimento da indústria nacional e da pesquisa autônoma nesses campos. Lembremos o caso de experiências como o da empresa Flaskô, cujos grupos que a compunham, Cipla Interfibra e Holding Brasil (HB), entram em falência em 2003, ocasião em que os operários decidem assumir a direção. No entanto, como também já foi lembrado por Safatle, o governo federal não lhes assistiu com um centavo furado de empréstimo, ainda que tenha sido solicitado por diversas vezes.
A transformação de seu vocabulário (e de sua ação revolucionária), que acomete drasticamente o PT, é expressiva dessa esquerda intimidada, que, pelo abandono das referências históricas de luta, assiste resignada à passagem da banda. O caso mais emblemático desse afrouxamento é a defesa esdrúxula recente do governo do Ceará ao medieval Projeto de Indicação do pastor e deputado estadual Luiz Henrique na Assembleia do estado, projeto este que legisla sobre a compra e distribuição de bíblias nas escolas estaduais. Bíblias. Com isso, o governador torna-se claramente agente dessas mudanças conservadoras no cenário político-partidário regional e nacional, acenando com o que há de mais reacionário no campo religioso, o neopentencostalismo dos grandes empresários da fé.
Para reforçar o que estamos dizendo acerca do projeto de poder do neopentecostalismo, lembremos que em algumas partes do país, como ocorre em São Paulo, a Polícia Militar (PM) tem participado de “reuniões” em templos evangélicos, que seriam cedidos ao governo do estado. Os policiais são conduzidos às reuniões fardados, em horário de trabalho e em viaturas da própria PM. Os faltosos são alvo de processo administrativo. Há um caso em que um agente sofrera processo administrativo mesmo estando em seu dia de folga. Entrou com processo e perdeu. Em fotos publicadas dessa presença militar em templo religioso, os policiais aparecem em posição de oração em respeito à reunião-culto conduzida por pastores. Como se não bastasse essa sedução do público pelo religioso no âmbito da PM, há ainda outra calamidade: a inconstitucional sombra das escolas “cívico-militares”. Mas, deixemos esse tema para outra oportunidade.
Paralelo a esses desastres, pavimenta-se um silêncio conivente e ensurdecedor da esquerda frente ao movimento substancial de militarização não apenas da PM, que já é militarizada, além do Corpo de Bombeiros, mas sua extensão às guardas municipais, que expõem com muito orgulho seus rifles e boinas em diagonal. Essa militarização é embalada com a convicção religiosa de que eles devem “defender” as famílias e seus cidadãos de bem. Com isso, e, em consequência, configuram-se os inimigos da sociedade, claro, candomblecistas, comunistas, e, assim, por diante.
Que cenário! Muita luta pela frente…
(*) Daniel Marcolino C. de Sousa é filiado ao PT
Respostas de 2
Complicada nossa situação, vendo a esquerda se apoiar em Evangélicos corruptos, para sobreviver, a juventude tem que participar mais do momento e até se envolver políticamente.Muito boa sua análise do Brasil, triste realidade.
Penso que hoje, influenciado pela ascensão da extrema direita, vivemos um paradoxo: grupos de Centro, esquerda ou direita, mas principalmente, centro, por apresentarem um mínimo de preocupação social, estão se autoproclamando e sendo chamados de esquerda. Isso traz uma confusão, pois mistura discursos que são díspares, como sendo de uníssonos.
Precisamos separar o joio do trigo, aceitar o apoio, mas não perdermos a consciência da nossa pauta de luta: queremos justiça social, fim da opressão, superação da democracia representativa burguesa, trabalho digno sem exploração, propriedade coletiva dos meios de produção, etc.