Por Tânia Mandarino (*)
Autoritarismo: manifestantes são presos em Brasília, após realizarem protesto contra Bolsonaro, com base na Lei de Segurança Nacional, (18/03/21).
Está lá na Lei 7.170 de 14 de dezembro de 1983 que ela, a Lei de Segurança Nacional, “Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências”.
Mas precisamos nos perguntar: a ordem política e social de quem?
Pelo ano de promulgação da referida Lei, não é muito difícil encontrar a resposta.
1983. João Figueiredo era o último general do século XX a governar o país na ditadura militar.
O termo “segurança nacional”, usado desde sempre, sobretudo pelos Estados Unidos, no sentido de proteção nacional contra ataques militares e ameaças externas, após a Guerra Fria passou a ser utilizado para blindar governos contra nacionais que compõem grupos internos de oposição.
E assim tem sido, sobretudo nos países latino-americanos que seguiram dominados pelo capitalismo, após o período denominado Guerra Fria.
Depois da edição de várias leis de segurança nacional, a primeira vez que se usou o termo foi na Constituição de 1934 e durante a ditadura militar foram editadas várias leis de segurança nacional para melhor perseguir opositores, a LSN de 1983 praticamente adormeceu com o advento da Constituição de 1988.
Mas é bom que se relembre que no ano 2000, sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, a LSN foi utilizada contra militantes do MST, após uma ocupação de prédios públicos, ocasião em que muitas lideranças foram levadas à prisão, o que fez com que FHC, em 2002, criasse uma comissão de juristas para discutir a criação de um projeto que substituísse a LSN.
Na mesma época, a Câmara dos deputados chegou a discutir a revogação da LSN. Porém, como nem o projeto de substituição e nem o de sua revogação evoluíram, o STF estabeleceu regras para sua utilização durante o regime democrático, determinando a obrigatoriedade da apresentação de provas quanto aos objetivos políticos e os danos efetivos à segurança nacional e à ordem política social, para o enquadramento de quem quer seja, na referida lei.
Com a ascensão do genocida ao poder, a LSN vem sendo aplicada com frequência, não somente como ameaça a quem o critica, mas também em situações concretas, começando – mesmo antes de seu governo, por Adélio Bispo, que o teria tentado esfaquear durante a campanha presidencial.
Segundo a Folha de São Paulo[1], através da Lei de Acesso à Informação, de janeiro de 2019 a junho de 2020, foram instaurados 30 inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional promulgada na ditadura militar, mesmo que ao seu final.
Até se utilizando da pandemia como pretexto, Bolsonaro se vale da LSN para intimidar servidores, sobretudo do Ministério da Saúde, caso vazem qualquer informação discutida no âmbito da instituição.
Sabemos, por ter acompanhado de perto, que há pessoas que, em 2019, já eram chamadas a depor na Polícia Federal, por postagens em suas redes sociais.
É o caso de Roger, cidadão paulistano, que postara em seu facebook aquele famoso meme de Bolsonaro em um caixão, bem no início de seu governo, com uma frase dita por uma ex-noiva de Ronaldinho – que à época também virou meme, dizendo “saudade do que a gente ainda não viveu”.
Por conta dessa postagem ele teve que responder à Polícia Federal se era filiado a algum partido político, onde trabalhava, quanto recebia por mês e explicar em detalhes porque comentara no próprio post que esperava que o mandato de Bolsonaro acabasse “hoje, infartado ou com câncer, de qualquer maneira”.
É certo que a escrivã ficou sem ação, quando Roger lhe respondeu que aquela frase não era sua e sim do próprio Bolsonaro, em referência a Presidenta Dilma, três anos antes.
Ela também ficou sem ação quando ouviu de Roger que ele apenas compartilhara o meme, por discordar de Bolsonaro como presidente, e que não tinha intenção de incitar o ódio porque nem era daqueles que convidavam as pessoas a metralhar a petralhada.
Mas, mesmo assim, Roger teve que prestar seu depoimento, ainda que por telefone, e está inscrito no Registro Especial que mobilizou servidores da Polícia Federal, em Brasília e São Paulo, apenas para saberem por que um trabalhador postara um meme onde Bolsonaro aparecia em posição desconfortável.
Mera intimidação?
Não podemos afirmar com segurança. O que sabemos é que, sem nossa reação, Bolsonaro está se mostrando cada dia mais ousado na aplicação da Lei de Segurança Nacional, e, por isso, as polícias brasileiras cada vez se sentem mais autorizadas a evocá-la.
Foi assim na quinta-feira do último dia 04 de março, após a PM dar voz de prisão a André Constantini, na Cinelândia.
Também foi assim nessa quinta-feira, 18 de março, quando cinco militantes petistas, dentre eles o blogueiro Rodrigo Pilha, foram abordados pela PM e conduzidos à Polícia Federal em Brasília, por estarem se manifestando na Praça dos Três Poderes portando um grande faixa que reproduzia a conhecida charge do Aroeira, também perseguido por Bolsonaro com a LSN, que o indica pintando uma cruz vermelha hospitalar para que se torne em uma suástica.
Além dos cinco, mais dois militantes petistas receberam voz de prisão no pátio da delegacia de polícia federal; é que eles estavam segurando os cartazes com a frase “Bolsonaro Genocida” escrita em batom, depois que parlamentares foram fotografados com eles.
Como não podia prender os parlamentares, um policial federal, certamente devoto de Bolsonaro, deu voz de prisão aos dois militantes, ao argumento de que ali no pátio não se poderia estar com esse tipo de manifestação. E assim foi.
A notícia era de que todos seriam enquadrados na Lei de Segurança Nacional, ameaça que, após a intervenção dos parlamentares petistas e de advogados, acabou não se confirmando, ao menos por ora.
Entretanto, mesmo após liberado, Rodrigo Pilha foi “convidado” a retornar, pois havia um mandado de prisão contra ele, por reincidência em conduta de desacato e, até o momento em que escrevo esse texto, Pilha permanece na Polícia Federal, ainda que todos estejamos mobilizados em torno da questão.
Isso aconteceu dois dias depois do youtuber Felipe Neto ter anunciado em suas redes sociais que recebeu uma intimação para depor na Polícia Federal por ter chamado Bolsonaro de Genocida, também sob a ameaça de enquadramento na Lei de Segurança Nacional.
Todos esses episódios recentíssimos, e que começam a ocorrer com cada vez menos intervalo de tempo, podem ser cristalinos sinais de que a intenção daquele que hoje ocupa a Presidência da República, não seja apenas intimidar opositores.
Na tarde da mesma quinta-feira em que se deram as prisões dos militantes petistas em Brasília, foi noticiado que Jair Bolsonaro fez acordo com o Congresso para derrubar seus próprios vetos ao pacote anticrime, aprovado em 2019, e que uma das propostas resgatadas aumenta a pena para crimes contra a honra, como injúria e difamação, quando cometidos pela internet.
Se confirmado tal acordo, é fato gravíssimo que se configura como a mais absoluta servilidade do Congresso Nacional aos intentos absolutistas desse desgoverno, que usurpa os poderes do Legislativo, assim, com a maior naturalidade, como se isso não ferisse de morte o Pacto Federativo e a própria República brasileira.
Porém, mesmo que tal atentado à Democracia não se confirme como verdade, ainda assim é preciso que se tenha em mente que Bolsonaro quer o caos e, a cada notícia de prisão de opositores, ou de intimação para depor com base na LSN, é disparada uma senha de ódio para seus seguidores mais fanáticos que, sabemos, parecem dispostos a tudo pelo “mestre mito”, iniciarem ataques aos imputados.
Em se confirmando a notícia de aumento de pena para os crimes contra a honra praticados pela internet, confirma-se, também, que o território onde Bolsonaro pretende vencer as próximas batalhas, seguirá sendo o virtual, o mesmo território no qual ele foi eleito, com a ajuda de Steve Bannon, que parece seguir no posto de seu estrategista.
Em qualquer hipótese, podemos concluir com segurança, que os reais intentos de Bolsonaro são, de fato, endurecer o regime, criminalizando ativistas sociais e militantes políticos.
Bolsonaro está na frente; desde o início de seu governo vem utilizando a Lei de Segurança Nacional contra opositores, nem poderemos dizer que fomos pegos de surpresa.
Mas não podemos admitir outra ordem política e social que não seja a democrática e popular soberana.
Resta saber como nos mobilizaremos em relação a essa judicialização da luta democrática, pois lutar não é crime e é somente com mais luta ainda que poderemos enfrentar esse estado de coisas.
(*) Tânia Mandarino é militante petista e advogada pela democracia.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2020/06/acusacoes-de-violacao-da-polemica-lei-de-seguranca-nacional-batem-recorde-sob-bolsonaro.shtml