Por Valter Pomar (*)
Dê a mão, vão querer engolir teu braço inteiro.
O comandante da Marinha escreveu, no dia 22 de abril de 2024, uma carta criticando a inclusão de João Cândido no panteão dos heróis do Brasil.
A seguir os melhores momentos da tal carta, dirigida ao deputado que preside a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados.
Segundo o comandante, a “Revolta de Marinheiros ocorrida em navios da Esquadra, em 1910”, “constitui para a Marinha do Brasil (MB), fato opróbio da história, cujo estopim se deu pela atuação violenta de abjetos marinheiros que, fendendo hierarquia e disciplina, utilizaram equipamentos militares para chantagear a nação, disparando, a esmo, os canhões de grosso calibre dos apoderados Encouraçados contra a então Capital Federal e uma população indefesa, ceifando a vida de duas crianças, atingidas no Morro do Castelo”.
“Mister rememorar dentre as reivindicações apresentadas por manifesto de rebelados ao Governo brasileiro: o aumento de salários; a exclusão de Oficiais considerados – por eles – indignos de servir à Marinha; e regime de trabalho menos exigente. Notável, então, entender que, além do justo pleito pela revogação da prática repulsiva do açoite, buscavam, deliberadamente, vantagens corporativistas e ilegítimas”.
Óbvio que para um Almirante de Esquadra é totalmente inaceitável que reles marinheiros demandem “vantagens corporativas”, afinal todos sabemos que estas são restritas a altos oficiais. Oficiais que continuam incapazes de compreender o seguinte: o fato de em 1910 continuar existindo a “prática repulsiva do açoite” é justificativa em si mesma suficiente para que os “canhões de grosso calibre” fossem dirigidos contra os “oficiais indignos”.
Parece incrível ler isto em 2024, mas está aqui: “Os castigos físicos levados a cabo nos navios, prática inaceitável, sob perspectiva alguma, e absolutamente incompatível com os caros preceitos morais observados pela sociedade contemporânea, foram reconhecidos, posteriormente, como equivocados e indignos, e os insurgentes, inclusive, anistiados. Porém, resta notável diferença entre reconhecer um erro e enaltecer um heroísmo infundado.”
Erro é ter nomeado este comandante. Açoite é crime, é prolongamento da escravidão. Aliás, quantos altos oficiais são negros?
Ele mesmo diz: “incluir, no Livro de Heróis da Pátria, João Cândido Felisberto ou qualquer outro participante daquela deplorável página da história nacional, quando o patrimônio público foi destruído e o sangue de brasileiros inocentes derramado, seria o mesmo que transmitir à sociedade e, em particular, aos militares de hoje a mensagem de que é lícito recorrer as armas que lhes foram confiadas para reivindicar suposto direito individual ou de classe”.
Seria cômico, não fosse cínico.
Na República Velha, nas condições antidemocráticas então vigentes, era “lícito” recorrer às armas para combater as desigualdades e injustiças. Aliás, foi isso que fizeram os tenentes e a Revolução de 1930. “Ilícito” foi fazer isso em 1964.
E esbanja sua hipocrisia ao criticar a atitude de “enaltecer passagens afamadas pela subversão, ruptura de preceitos constitucionais organizadores e basilares das Forças Armadas e pelo descomedido emprego da violência de militares contra a vida de civis brasileiros é exaltar atributos morais e profissionais, que nada contribuirá ao pleno estabelecimento e manutenção do verdadeiro Estado Democrático de Direito”.
Desmedido é o comandante da Marinha interferir no trabalho legislativo.
Espero sinceramente que o senhor Marcos Olsen seja melhor marinheiro que historiador.
Mas o presidente Lula, por respeito à história das lutas do povo brasileiro, precisa demitir este senhor do cargo de Comandante da Marinha.
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT
ps. vale a pena ouvir o áudio disponível no link abaixo, onde se lembra que a ditadura censurou a música “O mestre-sala dos mares”. Como se vê, os filhotes da ditadura seguem todos aí. Mas nós também seguimos aqui. E não vamos deixar esquecer jamais nossas lutas, mesmo que inglórias.