Por Wladimir Pomar (*)
Capa da Revista Veja – 10 de fevereiro de 2021
Grande parte da burguesia e da pequena burguesia brasileiras tem feito de tudo para esconder sua participação ativa na aventura desastrosa que constituiu a eleição de Bolsonaro à presidência da república. No entanto, sem querer, alguns de seus principais órgãos de comunicação escorregam e confessam sua responsabilidade na aventura de derrotar o PT na disputa presidencial de 2018 e colocar em execução seus planos de reformas neoliberais.
Esse é o caso, por exemplo, da Revista Veja, de 10 de fevereiro de 2021, cuja capa elogia que, “depois de dois anos perdendo tempo em confrontos desnecessários, o governo Bolsonaro elege aliados no Congresso e ganha uma nova oportunidade para cumprir a agenda liberal que prometeu na campanha”. E acrescenta que tal “agenda” incluiria a “reforma administrativa”, o “pacto federativo”, a “Pec emergencial”, a “Reforma Tributária” e as “privatizações”.
Tal “chance”, segundo Veja, surgida com a “vitória dos candidatos do governo” na Câmara e no Senado, poderia se efetivar, desde que Bolsonaro evitasse “assuntos que possam trancar a pauta e gerar divergências”, e se dedicasse a “temas que já tenham convergência no Parlamento”. Ou seja, a burguesia e parte da pequena burguesia, além de responsáveis pela eleição de Bolsonaro, nutriram e nutrem a esperança de que, derrotando o PT e conquistando o comando do Congresso, podem levar avante um plano de reformas que, numa ordem mais verdadeira de prioridades, privatize as estatais e reforme o sistema tributário e a administração pública, de modo a reduzir os encargos sociais do Estado e a criar formas mais eficazes para aumentar, ainda mais, a riqueza do 1% bilionário da população.
O problema é que a prioridade de Bolsonaro e de sua corrente fascistóide é ainda pior do que as reformas neoliberais. Ela consiste em desmontar o sistema político levemente democrático da Constituição de 1988, reimplantar no país uma ditadura militar, mesmo que tal ditadura tenha eleições, câmaras legislativas, e um sistema judiciário, mas todas obedecendo às ordens emanadas do “capo”. E, com base nessa nova ordem política, aí sim, realizar as reformas econômicas e sociais neoliberais, sem ninguém que possa opor-se a elas.
Não esqueçamos que a ditadura militar implantada em 1964 não aboliu o “legislativo”, nem o “judiciário”, mas os manteve o tempo todo sob tutela, mesmo quando os departamentos de ordem interna (DOI) especializaram-se, com o coronel Brilhante Ulstra no comando, no assassinato de presos políticos por tortura. Bolsonaro nunca escondeu que seus objetivos eram esses, principalmente quando dava vivas à memória de daquele torturador.
Apesar disso, desde 2013, a maior parte da burguesia e parcelas da pequena burguesia, em oposição às tendências democratizantes e socialistas do PT e de outras correntes de esquerda, aproveitou-se dos erros neoliberais dos petistas no enfrentamento da crise econômica capitalista, e da ausência de um combate político que demonstrasse a verdadeira natureza da Lava Jato, para criar um ambiente político favorável à derrota do PT, não só com o impedimento de Dilma, mas também com a eleição do ex-capitão à presidência da República.
As correntes burguesas, em especial, acreditaram que, com o Posto Ipiranga no comando da economia, teriam força para domar e submeter o “capo” a uma agenda neoliberal, sem mexer muito na estrutura política. No entanto, espantaram-se com o fato de que as prioridades bolsonaristas eram outras. Por isso, Veja, considera “perdidos” os “dois primeiros anos” do governo Bolsonaro, embora não diga que isso decorreu das tentativas bolsonaristas de acabar com o STF e com todos os obstáculos institucionais a arroubos ditatoriais.
A esperança de Veja, quanto à aplicação firme das reformas neoliberais, renasceu, porém, com a vitória dos candidatos do Centrão, na Câmara e no Senado. Tal vitória seria nova oportunidade para fazer com que Bolsonaro a aproveite como uma “segunda chance”. Em resposta, porém, Bolsonaro parece haver decidido fazer o contrário, intensificando sua orientação justamente em assuntos capazes de “trancar a pauta e gerar divergências”.
Exemplos disso foram a liberação da aquisição de armas, a contenção dos preços dos combustíveis, a destituição do presidente (um neoliberal de carteirinha) da Petrobras, a intensificação da presença do estamento militar em toda parte, a afirmação de que vacinados podem transformar-se em “jacarés”, a oposição declarada ao uso de máscaras, e as ameaças aos governadores que aplicarem medidas emergenciais de isolamento para conterem, de alguma forma, a disseminação veloz e massiva do covid19.
Todas as medidas e declarações do ex-capitão, além de trancarem a pauta e gerarem divergências de todo tipo, desorganizam ainda mais as finanças, causam prejuízos generalizados à economia, intensificam o desemprego e a miséria, e aumentam assustadoramente as dificuldades de salvamento das vidas ameaçadas ou atacadas pela pandemia. Tudo, numa sequência que, mais cedo ou mais tarde, numa demonstração de que o Brasil tem um povo criterioso, deve transformar-se num processo de responsabilidade criminal, por atitudes que já contribuíram decisivamente para a morte de mais de 250 mil brasileiros.
Aliás, processo de responsabilidade criminal que já deveria estar em andamento desde o momento em que a pandemia foi proclamada como “gripezinha” e a cloroquina foi indicada como medicamento eficaz para contê-la. Mesmo porque, além de estar em meio a uma de suas mais profundas e letais crises sanitárias, o Brasil também está sendo levado a ingressar numa crise econômica, social e política de vulto.
Crise que demanda da esquerda uma estratégia mais consistente de universalização das medidas de controle sanitário das endemias e pandemias, de auxílio emergencial efetivo aos desempregados, de geração de novos empregos, de reindustrialização e desenvolvimento econômico, e de fortalecimento dos direitos democráticos.
Isto é, uma estratégia capaz de fazer com que o protofascismo bolsonarista fique cada vez mais isolado, e que a burguesia neoliberal seja responsabilizada por seu apoio às barbaridades praticadas pelo governo eleito em 2018, incluindo o criminoso número de mortes causadas pelo covid19.
Só uma estratégia desse tipo será capaz de fazer com que esquerda aprofunde seu protagonismo, produzindo táticas que gerem defecções nos setores burgueses e militares, viragens importantes na pequena burguesia e, principalmente, que mobilizem grandes camadas trabalhadoras contra as políticas genocidas do governo protofascista de Bolsonaro.
Dizendo de outro modo, sem uma estratégia que tenha o bolsonarismo fascista e o neoliberalismo como inimigos principais, e as grandes massas trabalhadoras como força essencial, não será possível ter táticas adequadas para enfrentar não só os disparates fascistas, mas também as tendências neoliberais burguesas, igualmente nefastas para a sociedade brasileira. Elas procuram dar novas “chances” ao bolsonarismo, num momento em que se torna imprescindível alijar seu governo para evitar um desastre nacional ainda maior do que já está à mostra.
(*) Wladimir Pomar é jornalista, escritor político e militante do PT