Aldo Fornazieri e o debate sobre as esquerdas

 

Artigo de Marcos Jakoby, militante petista, analisa um texto de Aldo Fornazieri.

 

Aldo Fornazieri e o debate sobre as esquerdas

O professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP) Aldo Fornazieri publicou no dia 20/08 no portal https://jornalggn.com.br um texto intitulado “As esquerdas encurraladas” (texto completo ao final). É um artigo que tem a pretensão de elaborar uma crítica às esquerdas, porém ao invés de jogar luzes sobre os debates acerca dos caminhos que devemos perseguir, acaba por causar mais desorientação e confusão, sobretudo do ponto de vista político e estratégico. Ele argumenta que na esquerda a “aversão à crítica gerou militantes com pendores fascistóides que, diante de qualquer crítica, ao invés de debater o conteúdo, partem para a agressão. São bolsonaristas de sinal invertido.” Ele discorre sobre os limites e a incapacidade da esquerda em sair da situação de defensiva em que se encontra atualmente. Sobretudo, a sua incapacidade de fazer a crítica e a autocrítica, o que neste sentido tem certa razão. Então, propomo-nos a pensar a respeito de algumas questões levantadas pelo professor.

Transcrevo um trecho que chama muito a atenção: “Incapazes de olhar para si mesmas, as esquerdas estão encurraladas por Bolsonaro. Com o passar dos dias do governo Bolsonaro, as esquerdas e o bolsonarismo vão desenvolvendo um mútuo desejo mimético: o que um quer o outro quer. Bolsonaro quer destruir as esquerdas, as esquerdas querem destruir Bolsonaro; Bolsonaro tem e quer mais poder, as esquerdas querem o poder de Bolsonaro; Bolsonaro odeia as esquerdas, as esquerdas odeiam Bolsonaro; Bolsonaro tem se mostrado corajoso no governo em atacar seus inimigos, as esquerdas gostariam que, quanto no poder, os seus governantes tivessem a coragem de Bolsonaro para atacar os inimigos; Bolsonaro despreza o povo e o vê apenas do ponto de vista do seu interesse pelo poder; as esquerdas culpam o povo por ter elegido Bolsonaro”.

Curiosa essa insistência de Fornazieri em caracterizar a esquerda como um “bolsonarismo de sinal invertido”, pois é uma das principais operações ideológicas e políticas de um setor da direita para isolar a esquerda. Em outras palavras, o autoritarismo, o extremismo, o sectarismo do bolsonarismo encontraria um equivalente na esquerda. A famosa tese dos “dois demônios”.

Por isso, vamos olhar mais de perto essa comparação feita por Fornazieri. Diz o professor “Bolsonaro quer destruir as esquerdas, as esquerdas querem destruir Bolsonaro; Bolsonaro tem e quer mais poder, as esquerdas querem o poder de Bolsonaro”.  Não sei quanto a Fornazieri, mas acho correto que as esquerdas estabeleçam como objetivo a derrota e a “destruição” da extrema-direita. O governo Bolsonaro está literalmente destruindo com o país: direitos sociais e trabalhistas, serviços e empresas públicas, soberania nacional, o que resta da indústria, liberdades democráticas, regulamentação e fiscalização que protege o meio ambiente. Qual a postura que deveríamos ter? A de uma convivência “pacífica” com o bolsonarismo?

Mas aí vem a diferença que Fornazieri ignora. Bolsonaro quer destruir a esquerda por meio do uso da violência, das milícias, da censura, das perseguições, das restrições às liberdades democráticas, do uso da repressão e atacando o povo. A esquerda pretende fazer isso por meios democráticos, em defesa dos direitos e dos interesses populares: com a mobilização das ruas, com a cultura e o pensamento crítico, com eleições democráticas, com organização popular. Certamente que isso vem sendo feito numa escala pequena e muito insuficiente.

A segunda parte da afirmação acima de Fornazieri é curiosa pois ele diz que “Bolsonaro tem e quer mais poder, as esquerdas querem o poder de Bolsonaro” de modo que no início do texto o autor diz, o que não deixa de ser verdadeiro, que as “esquerdas perderam a própria noção de estratégia”.  Acontece que a noção de estratégia envolve a questão do poder. As classes trabalhadoras e as camadas populares não farão transformações econômicas e sociais profundas em nossa país caso não se tornem majoritárias no poder. O limite da maioria esquerda foi justamente achar que ser governo bastaria. Ser governo deve ser parte integrante de uma estratégia para ser poder. Para isso, é fundamental muita organização popular, luta política combinada com luta ideológica e cultural, alianças internacionais, luta social, diálogo com o povo, o que por sua vez permitirá mexer nas estruturas de poder da classe dominante. Não fizemos isso. Fomos governo, mas não fomos poder. Os meios de comunicação, o judiciário, o Congresso Nacional, a maiorias dos governos municipais e estaduais, as Forças Armadas continuaram sob controle e influência das elites e do pensamento conservador e reacionário.

Fornazieri diz “as esquerdas gostariam que, quanto no poder, os seus governantes tivessem a coragem de Bolsonaro para atacar os inimigos”. Sim, em minha opinião, faltou coragem e disposição política para ao menos tentarmos realizar a reforma agrária, a reforma urbana,  a democratização do oligopólio dos meios de comunicação, taxar as grandes fortunas e realizar uma reforma tributária progressiva, rever a Lei de Anistia e punir militares responsáveis por torturas e assassinatos na ditadura, reformar o sistema financeiro etc. Mas, ao contrário de Fornazieri, não acho que desejar que tivéssemos feito, portanto, “atacado os inimigos” (e seus interesses), seja ruim. Se isso tivesse sido realizado, possivelmente, não nos encontraríamos na situação atual.

O professor aponta que para sairmos da crise “as esquerdas precisam recriar o trabalho de base nas periferias – campo abandonado para o conservadorismo religioso. Mas este trabalho precisa ser desenvolvido com atividade, energia, disciplina, agregação e propostas, pois o discurso de esquerda não encontra a simpatia natural dos pobres e dos trabalhadores. É o discurso conservador que toca mais naturalmente os sentimentos das pessoas, pois as sociedades são conservadoras. Por isto, as esquerdas precisam rever as suas formas de se comunicar e de agir. Precisam rever os seus discursos para convencer, sabendo que no Brasil se trata de uma sociedade fragmentada, dilacerada pela violência, pela desigualdade, pela pobreza”.  Em grande medida, creio que a maioria das pessoas da esquerda concordam com isso, embora nem sempre se tenha consequência prática.

E conclui: “não será com uma retórica marxista, ultrapassada, dirigida a trabalhadores de uma sociedade industrial que sequer existe que as esquerdas irão recuperar o terreno perdido para a direita e para o conservadorismo”. Não sei de onde muitos que se ocupam de analisar a esquerda brasileira tiram a ideia de que o marxismo é um problema. Em primeiro lugar, porque a esquerda hoje é muito mais influenciada pelo keynesianismo, pelo pós-modernismo, pelo social-liberalismo e outras correntes do que pelo marxismo. Por isso acho engraçado que o alvo das críticas seja o marxismo. Na minha modesta opinião, falta muito de marxismo à esquerda brasileira.

Em segundo lugar, “Fornazieri emenda a crítica da “retórica marxista” com “uma sociedade industrial que sequer existe”. Dá a entender que o marxismo serviria, portanto, para analisar, e orientar as esquerdas, somente em formações sociais propriamente industriais, o que não é verdade. No século XX o marxismo foi largamente utilizado por organizações e partidos políticos em sociedades pré-capitalistas ou em sociedades em que o capitalismo estava em fase inicial de expansão. Nos países onde havia uma sociedade industrial mais desenvolvida, as organizações de esquerda de orientação marxista não tinham a mesma força. As revoluções aconteceram justamente onde o capitalismo industrial era ainda muito pouco desenvolvido: Rússia, China, Cuba, Nicarágua, Vietnã, países africanos etc.

Se pensarmos em termos de Brasil, tem razão em se dizer que assistimos um processo de desindustrialização, embora ainda exista ainda um setor. Mas isso não diminui a necessidade explicativa e a utilidade prática do marxismo para a classe trabalhadora. A desindustrialização é também uma opção política da burguesia brasileira, de tal modo que presenciamos a industrialização em outras regiões do mundo; e que precisamos ter no horizonte algum tipo de industrialização em nosso país se quisermos um desenvolvimento econômico digno do nome.

Por outro lado, a desindustrialização no Brasil não gerou, portanto, uma sociedade menos capitalista, assim como a esmagadora maioria dos brasileiros continuam a viver do trabalho assalariado, cada vez mais precarizados e submetido a novas formas relações. Em vista disso, precisam ser organizados sob ótica de classe, o que não significa dizer que a classe trabalhadora não seja atravessada por uma série de outras opressões e desigualdades, mas inclusive estas são reconfiguradas pela desigualdade de classe.  Por fim, Fornazieri cita a ascensão da “extrema-direita” no cenário internacional. Mas esta ascensão não é justamente um desdobramento da ofensiva do capital sobre as classes trabalhadoras num contexto de crise do capitalismo!?

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As esquerdas encurraladas, por Aldo Fornazieri

Aversão à crítica gerou militantes com pendores fascistóides que, diante de qualquer crítica, ao invés de debater o conteúdo, partem para a agressão. São bolsonaristas de sinal invertido.

 

Por Aldo Fornazieri – 20/08/2019

 

As esquerdas encurraladas

por Aldo Fornazieri

As esquerdas estão encurraladas. Encurraladas por si mesmas e encurraladas por Bolsonaro. Há uma evidente incapacidade de as esquerdas se pensarem a si mesmas, de desenvolverem uma crítica acerca de si mesmas, de suas trajetórias, de suas derrotas e de suas estratégias. Essa perda de capacidade crítica e autocrítica está jogando as esquerdas para fora do jogo político do poder, fazendo-as perder a própria noção de rumo e de sentido de sua ação política. Ou seja, as esquerdas perderam a própria noção de estratégia. Esta aversão à crítica gerou militantes com pendores fascistóides que, diante de qualquer crítica, ao invés de debater o conteúdo, partem para a agressão. São bolsonaristas de sinal invertido.

 

Os partidos em geral, incluindo os de esquerda, são sustentados pelo dinheiro público, pelo dinheiro do contribuinte. Portanto, devem ser submetidos à crítica pública e ao debate público de suas propostas, de suas ações e atitudes. Na era das redes socais, o arcaísmo das esquerdas as faz acreditarem que podem resolver os seus problemas, as suas políticas, as suas táticas e as suas estratégias no segredo de suas catacumbas burocráticas. Essa misantropia política afastou os partidos das bases sociais e da juventude e quando eles se aproximam da sociedade o interesse é quase que exclusivamente eleitoral. Resultou que os partidos de esquerda se tornaram partidos de gabinetes.

 

Incapazes de olhar para si mesmas, as esquerdas estão encurraladas por Bolsonaro. Com o passar dos dias do governo Bolsonaro, as esquerdas e o bolsonarismo vão desenvolvendo um mútuo desejo mimético: o que um quer o outro quer. Bolsonaro quer destruir as esquerdas, as esquerdas querem destruir Bolsonaro; Bolsonaro tem e quer mais poder, as esquerdas querem o poder de Bolsonaro; Bolsonaro odeia as esquerdas, as esquerdas odeiam Bolsonaro; Bolsonaro tem se mostrado corajoso no governo em atacar seus inimigos, as esquerdas gostariam que, quanto no poder, os seus governantes tivessem a coragem de Bolsonaro para atacar os inimigos; Bolsonaro despreza o povo e o vê apenas do ponto de vista do seu interesse pelo poder; as esquerdas culpam o povo por ter elegido Bolsonaro.

Nessa escalada de mútua fixação, de ódio mútuo, Bolsonaro perdeu a capacidade de governar e de pensar o seu governo e as esquerdas perderam sua capacidade de pensar a si mesmas, sua crise, suas estratégias e seus rumos. O que não falta são ataques de Bolsonaro às esquerdas e os ataques das esquerdas a Bolsonaro. Bolsonaro ocupou, povoou e dominou o pensamento das esquerdas e as atormenta todo dia, toda hora, todo minuto.

 

Os ataques das esquerdas a Bolsonaro, contudo, são inconsequentes, virtuais, impotentes, ilusórios. Os partidos de esquerda foram incapazes de promover qualquer ato contra a fúria destrutiva do governo Bolsonaro. No máximo, são caudatários das poucas mobilizações de movimentos sociais, a exemplo da luta pela educação. Os movimentos sociais, fragmentados e sem uma direção universalizante dos partidos, não são capazes de gerar potência. O terceiro tsunami da educação, ao menos em São Paulo, foi uma marolinha, para usar uma tirada do Lula.

 

As esquerdas não serão capazes de enfrentar a direita e Bolsonaro de forma consequente e eficaz se não se repensarem a si mesmas, se não repensarem suas estratégias, seus dilemas, seus desafios. Para isto é preciso abrir um amplo debate público e dialogar com a juventude, com as periferias, com os trabalhadores, com as mulheres, com os negros, com as classes médias. As esquerdas estão inseridas em duas crises: uma crise internacional, com o seu recuo e com a ascensão da extrema-direita; e uma crise no Brasil, com as sucessivas derrotas e com a incapacidade de enfrentar o governo Bolsonaro.

 

Ao se tornarem coadjuvantes dos partidos de centro liberal, os partidos de centro-esquerda colapsaram, com o esvaziamento do conteúdo democrático das instituições, com a crise dos sistemas políticos. Não foram capazes de oferecer saídas para as mazelas da globalização e para o aumento da desigualdade e da pobreza. Não foram capazes de dar outra perspectiva ao Estado-nação, assentada na justiça, na maior igualdade, na garantia de direitos e na democracia participativa. É nesse vácuo provocado pelo colapsamento dos sistemas políticos e pelo fracasso do centro e das esquerdas que cresce a extrema-direita, com seu discurso nacionalista e conservador. As esquerdas sofrem uma crise de oferta de políticas e programas eficazes para enfrentar os problemas das democracias e as carências das sociedades.

 

No enfrentamento do governo Bolsonaro, os partidos de esquerda propuseram a formação de uma frente democrática que não funciona e de uma frente antifascista que ninguém nunca viu. O PT lançou um programa emergencial de geração de emprego e renda de forma quase clandestina. Quer gerar 7,5 milhões de empregos. Mas qual a capacidade que o partido tem para gerar esses empregos?  São estratégias equivocadas, pois não é disso que se trata. O que se trata é de formar redes e frentes aglutinando partidos, movimentos, entidades e organizações a partir das lutas e dos temas concretos como o desemprego, a educação, a destruição da Amazônia, a Saúde, a habitação etc.

 

O que se trata é de formar redes e frentes concêntricas e flexíveis de lutas, com o protagonismo de várias lideranças e organizações. Mas na sua vaidade, na sua arrogância e no seu egoísmo, os dirigentes partidários não são capazes de estabelecer uma eficaz distribuição de tarefas e de responsabilidades entre líderes, partidos, movimentos e organizações.

 

Bolsonaro opera sobre o colapso do sistema político-partidário e institucional que emergiu da crise do governo Dilma, do golpe-impeachment e do fracasso do governo Temer. Ele aprofunda, de forma deliberada, esse colapso, esvaziando e destruindo instituições e intervindo e dominando os mecanismos de controle, fiscalização e investigação. A sua meta é aprofundar o esvaziamento da vontade política e a descrença nas instituições. Sua forma de exercer o governo consiste em viabilizar mecanismos autoritários e estabelecer uma hegemonia a partir de valores conservadores e religiosos.

 

As esquerdas deveriam estabelecer uma contra-estratégia recuperando a capacidade de articulação e de organização da sociedade civil, dos movimentos sociais, do campo progressista e dos partidos políticos a partir das lutas concretas. Trata-se de recuperar o sentido das lutas coletivas e de unidade nas lutas, recriando vontades políticas e crenças de

As esquerdas precisam recriar o trabalho de base nas periferias – campo abandonado para o conservadorismo religioso. Mas este trabalho precisa ser desenvolvido com atividade, energia, disciplina, agregação e propostas, pois o discurso de esquerda não encontra a simpatia natural dos pobres e dos trabalhadores. É o discurso conservador que toca mais naturalmente os sentimentos das pessoas, pois as sociedades são conservadoras. Por isto, as esquerdas precisam rever as suas formas de se comunicar e de agir. Precisam rever os seus discursos para convencer, sabendo que no Brasil se trata de uma sociedade fragmentada, dilacerada pela violência, pela desigualdade, pela pobreza. Não será com uma retórica marxista, ultrapassada, dirigida a trabalhadores de uma sociedade industrial que sequer existe que as esquerdas irão recuperar o terreno perdido para a direita e para o conservadorismo.

 

 

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP)

 

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