Apagando incêndios com gasolina

Ou a misteriosa mania de contemporizar com o inimigo

Por Rafael Tomyama*

O mês de setembro no Ceará não é marcado pela chegada da primavera, com o contumaz desabrochar de flores das zonas temperadas. O clima equatorial tórrido faz com que só haja duas estações: chuvosa nos primeiro trimestre e seca no restante do ano. Setembro é árido, demasiadamente árido, sob o sol do Ceará.

No feriado de 7 de setembro, um jovem transexual foi amarrado, arrastado pela rua e morto a tiros, no bairro Pici, em Fortaleza. Em 14 de setembro, um adolescente de 14 anos foi morto numa abordagem policial, no bairro Vicente Pizón, também em Fortaleza. Em 24 de setembro, dois jovens… Estes, entre outros tantos casos, envolvendo brutais assassinatos na capital do estado, foram acompanhados com os registros protocolares de praxe pela imprensa local.

No dia 22, no entanto, a menina Ágatha, de 8 anos, foi morta por disparo de arma de fogo da Polícia Militar no Rio de Janeiro. O assassinato gerou comoção e questionamentos quanto à política de segurança genocida de pretos, pobres e favelados, levada adiante pelo governador Wilson Witzel (PSC).

Ceará em chamas

Ainda repercutia a tragédia no Rio e o presidente Bolsonaro deslumbrava negativamente o mundo com seu discurso farsesco nas Nações Unidas, quando o líder do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra, João Pedro Stédile, visitou a ocupação da comunidade acadêmica na reitoria da Universidade Federal do Ceará, na noite do 24 de setembro.

Discentes e docentes, que já vinham afrontando os cortes orçamentários do Ministério da Educação, há mais de um mês resolveram acampar em protesto contra a nomeação de Cândido Albuquerque como reitor-fantoche de Bolsonaro – o menos votado da lista tríplice da eleição, tendo obtido apenas 4,6% dos votos. A intervenção repetiu Collor que nomeou interventor sob uma chuva de ovos podres, por coincidência outro Albuquerque, em 1991.

Mais cedo, à tarde Stédile recebeu o título de cidadão cearense como um gesto de desagravo, no plenário da Assembleia Legislativa. Há exatos 4 anos, Stédile havia sido hostilizado ao aterrissar no aeroporto de Fortaleza, por uma horda golpista e fascista organizada pelo “Instituto Democracia e Ética”, comandado pelo arquiteto tucano Paulo Angelim (o próprio o admitiu em vídeo publicado na época).

Do lado de fora da sede do parlamento estadual, há dias ocorria uma nova onda de ataques a ônibus, vias, edificações e patrimônios públicos e privados, atribuídos a facção do tráfico de drogas. Os atentados, potencializados pela disseminação de boatos, causavam pavor e insegurança na população, especialmente a mais pobre, que depende de transporte público para seu deslocamento aos locais de exploração cotidiana de suas forças de trabalho.

Na semana seguinte, mesmo com a atuação das forças de segurança tentando conter a instabilidade, a situação seguia caótica na Região Metropolitana de Fortaleza.

Violência sem fronteiras

Neste contexto de tensão, mesmo na Aldeota – um bairro dito “nobre” – no sábado, 28, um estudante foi filmado apontando uma arma (de brinquedo?) a colegas na porta de uma conhecida escola particular ultraconservadora em Fortaleza. O vídeo circulou pelas redes sociais nos dias seguintes, gerando apreensão na alta burguesia da cidade, comumente afeita a modismos gringos.

A cena chocante para pais e mestres, quer tenham feito ou não o sinal de “arminha” com as mãos na hora de votar em outubro de 2018, recebeu uma pronta resposta do ministério público estadual: só que repudiando a divulgação do vídeo. O mesmo MP que comandou as investigações sobre a participação de PMs na chacina de 11 jovens negros e pobres no Curió e adjacências há quase 4 anos, agora, no caso dos jovens brancos e ricos, tergiversa.

Cheiro de pólvora

No esteio das revelações da Vaza Jato, o ex-procurador Geral da República, Rodrigo Janot, desmascara no capítulo 15 de sua autobiografia a farsa armada pela equipe chefiada por Dallagnol para condenar e prender Lula (e agora “soltá-lo”) e assim evitar que ganhasse a eleição permitindo que Bolsonaro premiasse o juiz Sérgio Moro com a nomeação no Ministério da Justiça e em seguida, quem sabe, a uma cadeira no Supremo Tribunal Federal. Depois que Janot disse em entrevista que teria entrado armado na antessala do STF com o intuito de assassinar um membro da mais alta Corte judicial do país, um assessor de deputado do PSL – partido de Bolsonaro – no Ceará, publicou vídeo em que aparece praticando tiro ao alvo em fotografia do presidente Lula.

Neste mesmo dia 30 pela manhã, fora publicado artigo no periódico progressista Brasil de Fato, analisando o programa do governo estadual focado em jovens que estão fora do ensino do mercado de trabalho formais. No texto, o autor reclama do tratamento destinado pelo governo do Ceará a iniciativas protagonizadas por jovens nas periferias “que acabam sendo reprimidas pelo próprio Estado”. Afora o uso cauteloso das palavras para se referir à polícia, note-se que, na opinião do autor, o problema seria causado pela “falta de diálogo”.

As “soluções” de Camilo

Em meio ao tenebroso cenário, a resposta ao reivindicado “diálogo” veio no dia seguinte, com a manifestação de interesse do governador Camilo Santana (PT) no Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, encetado pelo Ministério da Educação do Governo Bolsonaro. A adesão do único estado da região Nordeste ao programa foi comemorado pela deputada conservadora neopetencostal (e da base aliada) Dra. Silvana (PL) e pelo próprio Ministro da Educação, Abraham Weintraub.

O projeto visa instalar um número ínfimo de pouco mais de cinquenta escolas a cada ano (o país tem mais de 200 mil escolas), a serem direcionadas por militares da reserva. Qual seria a necessidade de um governo progressista aderir a este projeto que, a propósito, se insere no contexto dos cortes na saúde e educação e do desrespeito à autonomia das instituições públicas? Especialmente num estado que é tido como “referência” em alfabetização em todo país?

Cinco dias antes, frente à crise na segurança, Camilo já havia se pronunciado por meio da imprensa defendendo o projeto de lei do antiterrorismo, minimizando o alerta do seu próprio partido quanto à repressão às manifestações e organizações populares e sindicais. Seus aliados no campo da esquerda parecem desorientados quanto ao propósito de acenar às políticas que, além de representarem ataques às bandeiras progressistas, longe de serem soluções de fato estão associadas às causas da cultura de instabilidade e medo em que mergulhou o estado.

A arma da crítica

Na mesma noite do último dia de setembro (30), o deputado federal José Guimarães (PT) foi furiosamente atacado por passageiro de vôo à Brasília. O detrator foi preso, mas vídeos do ataque covarde e comentários hostis e ridicularizantes seguem soltos sendo disseminados pelas redes virtuais de comunicação.

Representantes de movimentos sociais que pareciam inertes nos últimos dias, aparentemente assistindo passivamente à onda de violência, à destruição do direito à aposentadoria pelo Senado e às próprias movimentações do “diálogo” heterodoxo de Camilo, se apressaram em lançar Notas em desagravo ao parlamentar atacado.

Não que um episódio seja menos grave do que o outro. O problema é anterior e bem mais estrutural. A criminalização de pobres, negros e favelados e a política de ultraencarceramento são as respostas da burguesia aos conflitos decorrentes do paradoxal aprofundamento da crise econômica enquanto aumenta a concentração do capital nas mãos dos cada vez mais minoritários milionários proprietários.

O discurso corriqueiro na esquerda tarefeira de uma atuação supostamente “republicana” à frente do aparato estatal traz a narrativa do benefício “à toda sociedade”, enquanto na verdade se propõe à uma gestão “eficiente” da manutenção dos interesses dominantes, com a garantia do exército de reserva proletário para a “inclusão” em mais exploração. Para estes, o Socialismo virou uma miragem, nome de fantasia na legenda partidária ou puro exercício de retórica.

Como flores do mandacaru que brotam em meio à caatinga, nem todo mundo se omitiu, é verdade: Um grupo de educadores petistas assinou nota cobrando posição da direção estadual do PT. Circula também um abaixo-assinado online de repúdio ao governo Camilo, proposto por gente PSol, usando a alcunha de um tal “movimento de Direitos Humanos”. É pouca ousadia pra um estado que deu mais de 70% dos votos ao candidato do PT no 2° turno da eleição presidencial. É pouco mesmo pra quem mede a política por cálculos meramente eleitorais.

Na nossa Bacurau às avessas, o silêncio conivente da maioria das lideranças sociais progressistas quanto à submissão do governo petista ao necroprojeto de destruição bolsonarista deixa evidente que a cegueira não é apenas de Camilo. Possivelmente porque não percebam a relação entre uma coisa e a outra. Ou talvez porque a percebam bem demais.

*Rafael Tomyama é jornalista e militante da Articulação de Esquerda do PT Ceará

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