Por Ricardo Menezes (*)
No final do primeiro período de governo Getúlio Vargas, o Estado brasileiro iniciou a descentralização do controle e fiscalização da ética e do exercício profissional dos membros da categoria médica, passando-os dos órgãos sanitários federal e estaduais para órgão estatal corporativo que se criou.
Os Conselhos de Medicina – Federal e Regionais – foram instituídos por meio do Decreto-Lei nº 7.955, de 13.09.1945, destinados a zelar pela fiel observância dos princípios da ética profissional no exercício da medicina no território nacional. Organizado o Conselho Federal Provisório de Medicina em 1951, projeto que disciplinaria o órgão tramitou pelo Congresso Nacional gerando a Lei nº 3.268, de 30.09.1957, que dispôs:
Art. 1º. O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina, instituídos pelo Decreto-Lei nº 7.955, de 13 de setembro de 1945, passam a constituir em seu conjunto uma autarquia, sendo cada um deles dotados de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira.
Art. 2º. O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e, ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente.
O complexo Conselho Federal de Medicina – CFM/Conselhos Regionais de Medicina – CRMs foi estruturalmente organizado como autarquia federal, que, mesmo tendo autonomia administrativa e financeira, não têm o poder de legislar. Contudo, na categoria de entidade da Administração Pública, o CFM exerce o poder normativo do Estado, estabelecendo normas de alcance limitado ao seu âmbito de atuação, desde que não contrariem a lei nem imponham obrigações, proibições e penalidades que nela não estejam previstas.
Em síntese: esse órgão corporativo incumbe-se do controle e registro dos profissionais habilitados, bem como do controle e fiscalização de aspectos éticos que envolvem a medicina relacionados ao exercício profissional dos médicos. Parece simples, mas é mais complexo.
No processo de democratização do País, especialmente a partir das eleições dos CRMs havidas em 1978, durante o Regime Militar, foi se conformando um sentimento na categoria médica, consoante com a luta pela democratização do País que mobilizava a sociedade, que resultou na renovação e democratização dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina. Por mais de três décadas, direções plurais politicamente passaram a gerir esses órgãos alinhadas em torno do combate à precarização das condições do trabalho médico, da necessidade de qualificar e ampliar o acesso ao Sistema de Saúde nacional, da produção de normas e fiscalização da ética no exercício profissional objetivando promover a boa prática da medicina.
Nos dias 6 e 7 de agosto de 2024, ocorreram eleições, em todos os Estados da Federação, para a escolha de dois representantes por unidade federativa para compor a próxima gestão do Conselho Federal de Medicina. A presença da oposição democrática à atual gestão conservadora, hegemonizada no plano político pela ultradireita, deu-se em 18 unidades federativas, o que revelou amplo retorno do campo progressista à disputa de ideias nos órgãos médicos brasileiros num pleito que mobilizou contingente expressivo de profissionais.
Se o conservadorismo foi vitorioso, cabe aos membros de chapas de oposição que passarão a compor da direção do CFM, e principalmente ao movimento que as apoiou, manter-se atentos e na luta para que o CFM sempre reprove o uso de procedimentos ou práticas sem evidências científicas que abone seu emprego, que apoie normas vigentes antimercado sobre a pesquisa clínica em seres humanos, que incentive a discussão bioética, que priorize a crítica às más condições de trabalho médico, que apoie a formação médica concebida para o trabalho abrangente num Sistema de Saúde universal, o SUS, e para que zele pela fiel observância dos princípios da ética profissional no exercício da medicina no território nacional.
Por fim, no próximo período, cabe às direções de associações científicas e de sindicatos médicos do País, proporem ao complexo CFM/CRMs que se crie fórum de discussão permanente sobre problemas de saúde da população e do Sistema de Saúde nacional, abordados à luz dos princípios da ética profissional no exercício da medicina.
(*) Ricardo Menezes é médico sanitarista e membro da direção do Sindicato dos Médicos do Estado de São Paulo.