Por Valter Pomar (*)
Leonardo Avritzer, professor de ciência política da UFMG, escreveu um artigo polemizando com Vladimir Safatle em torno da defumação de Borba Gato.
O artigo de Safatle foi publicado no dia 26 de julho e pode ser lido aqui:
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-07-26/do-direito-inalienavel-de-derrubar-estatuas.html
O artigo de Avritzer foi publicado no dia 30 de julho de 2021 e pode ser lido aqui:
https://www.brasil247.com/blog/bastilha-e-borba-gato
A réplica de Safatle pode ser lida aqui:
https://www.brasil247.com/blog/da-arte-de-nao-enxergar-o-fogo
Não sei se Avritzer escreveu novamente sobre o tema.
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No artigo supracitado, Avritzer lembra que “a destruição ou remoção de estátuas de personagens violadores de direitos ou símbolos das desigualdades” é um ato similar ao que tem sido praticado em outros lugares do mundo.
Lembra também que os bandeirantes eram “bárbaros que detinham exércitos privados e escravizavam indígenas” e que são “parte central da narrativa paulista”.
Concorda, portanto, que “a estátua [de Borba Gato] materializa o discurso oficial (…) que procurou ignorar os crimes dos bandeirantes”.
Até aí, 100% de acordo.
Nesse ponto, entretanto, Avritzer afirma o seguinte: “Não há dúvidas que cabe um questionamento a Borba Gato e aos bandeirantes. A pergunta é: qual a linguagem desse questionamento e se a utilização da violência como método é a linguagem correta da disputa histórica”.
(Só mesmo no lúdico ambiente acadêmico seria possível discutir a “violência como método” nestes termos: “linguagem correta da disputa histórica”).
Segundo Avritzer “a violência não é uma categoria da política e quanto mais a política a utiliza, mais problemas ela terá na construção de uma ordem democrática posterior”.
Talvez no mundo tal-como-deveria-ser de Avritzer a violência não seja uma categoria da política; mas no mundo da política tal-como-ela-é a violência é sim parte integrante da política, como bem resumiu um cidadão “acima de qualquer suspeita” como Weber, para quem a essência do Estado é o monopólio da violência.
Portanto, a primeira parte da frase de Avritzer só teria algum sentido se fosse reescrita como um desejo, algo mais ou menos assim: “a violência não deveria ser uma categoria da política”.
E realmente seria muito mais saudável fazer política num mundo onde só existisse a força dos argumentos, onde o argumento da força estivesse totalmente proscrito.
Bom motivo, por sinal, para lutar por uma sociedade “sem Estado, sem classes, sem opressão, sem dominação nem exploração de nenhum tipo”.
Mas como a violência é uma “categoria” da política realmente existente em toda sociedade onde existe a luta de classes e o imperialismo, é necessário discutir o que fazer a respeito.
A resposta de Avritzer é: “quanto mais a esquerda a utiliza [utiliza a violência], mais problemas ela terá na construção de uma ordem democrática posterior”.
Tal como está escrita, a frase descreve unilateralmente a realidade.
Afinal, há abundantes provas de que atos violentos tanto podem ajudar a limitar quanto podem ajudar a ampliar as condições de exercício da democracia.
Os golpes militares, a chamada Guerra do Paraguai, a guerra contra o terror, a violência policial na periferia e os feminicídios são alguns exemplos do primeiro tipo: limitadores.
A guerra de independência e a guerra civil nos EUA, a violência popular em 1789, as revoluções socialistas na Rússia, na China e em Cuba, e o Black Lives Matter são alguns exemplos do segundo tipo: ampliadores.
Talvez Avritzer seja unilateral na abordagem da questão, porque ele pressupõe axiomaticamente algo que simplesmente não existe: uma “ordem democrática” (portanto, um Estado) em que a “violência” não é uma “categoria” da “política”.
Na vida real, enquanto houver Estado, a política incluirá algum nível de violência.
Portanto, se queremos intervir no mundo real, trata-se de discutir momento, forma, intensidade e – principalmente – conteúdo de classe (de quem é a violência, contra quem e a favor do quê).
A alternativa – abrir mão desta discussão, achar que a violência não é uma categoria da política – é aceitar que uma parte da sociedade tem o direito (divino?) de exercer a violência, cabendo a outra parte uma recusa por princípio.
A única “vantagem” que esta atitude nos traria é que – derrotados por W.O. – não vamos precisar enfrentar os “problemas” sobre os quais Avritzer alerta, problemas que são reais, que aparecem não apenas na “construção de uma ordem democrática posterior”, mas também na luta aqui e agora por soberania, liberdades e direitos.
Isto posto, é curioso que este debate sobre o papel da violência na história – aliás, recomendo aos interessados ler o que Engels escreveu a respeito – tenha como gatilho disparador a defumação de Borba Gato.
Todo mundo sabe que parte da população de nosso país vive sob um clima de violência permanente, e isso não é de agora. Este ambiente de violência crônica se agravou depois do golpe de 2016 e da eleição de Bolsonaro.
Parte da extrema-direita fala e uma parte dela acredita sinceramente que está se preparando um golpe da esquerda. “Argumento” parecido ao adotado em 1964.
Neste contexto é muito sintomático que o debate sobre a violência tenha como disparador uma “ação direta” que – vamos combinar – não passou daquilo que Avritzer resume como um “acerto de contas com injustiças presentes e passadas”.
É sintomático mas é compreensível: num país em que a classe dominante não faz nenhuma concessão, em que a ditadura volta sem nunca ter ido completamente embora, qualquer ato que pareça revolucionário – e não precisa parecer ser bolchevique, basta parecer ser jacobino – causa imensa preocupação, digamos assim.
Preocupação na direita e preocupação em uma parte da esquerda.
Afinal, se o povo brasileiro resolvesse retribuir a violência de que é vítima cotidiana, a defumação pareceria brincadeira de criança.
A esse respeito, Avritzer diz o seguinte: “Trata-se sim de rever o passado e as injustiças do passado. Porém, revê-las deve necessariamente passar por categorias que não utilizam a violência porque o objetivo dessa revisão é a construção de uma ordem democrática e igualitária. Portanto, o ato de revisão e o ato de construção devem ser compatíveis e a violência não é compatível com a política democrática”.
Já observei que Avritzer está historicamente equivocado: a violência é “compatível” e uma parte inseparável da política democrática.
Mas deixemos a história de lado e nos concentremos na política.
Pergunto: se a esquerda agir como Avritzer sugere, a direita fará o mesmo? Se formos moderados, eles também se moderarão?
Não concordo com parte da abordagem que Safatle dá ao problema. O esquerdismo – especialmente o estético – não resolverá nossos problemas. Mas a abordagem de Avritzer tampouco contribui para enfrentar os problemas concretos da luta contra um governo como o de Bolsonaro, nem da luta contra um capitalismo como o brasileiro.
Não resolve porque, sem trocadilhos, nos desarma no tratamento de temas candentes como a tutela militar, a violência policial e paramilitar.
Mas não resolve, também, porque o problema de Avritzer não é com a “violência”, é com as revoluções.
Avritzer repudia as revoluções “baseadas na violência”, que seriam incapazes de “construírem formas democráticas depois do fim dos antigos regimes”.
Confesso que é assustador ler isto, em parte porque toda a nossa tradição democrática está assentada nas grandes revoluções dos séculos 17, 18, 19 e 20, revoluções que como é óbvio envolveram alguma dose de violência, na imensa maioria dos casos tendo como gatilho disparador a violência das classes dominantes, dos contrarrevolucionários ou de potências estrangeiras.
As “formas democráticas” modernas têm origem nas revoluções “baseadas na violência”.
Assusto-me, principalmente, porque não vejo a menor possibilidade de o Brasil superar as estruturas que nos oprimem – que incluem a dependência externa, a subalternidade, a desindustrialização, a política oligárquica, a destruição ambiental, a herança da escravidão, a desigualdade abissal – sem uma revolução socialista. Revolução que será profundamente democrática, mesmo que a classe dominante nos empurre para a violência.
Como se vê, Gato e a turma da “Revolução Periférica” provocaram um debate que vai muito além da defumação.
Galo livre! Brasil livre!
(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT