Por Francisco Júnior*, Nayara Oliveira**, Paulo Mariante*** e Roberto Farias****
A militância da Reforma Sanitária e o povo brasileiro conseguiram garantir na Constituição Federal de 1988 o Sistema Único de Saúde, uma das maiores conquistas da nossa história. Os petistas, militantes da Reforma Sanitária, desde então, tiveram papel destacado nessas lutas.
Num país profundamente desigual, escravagista, excludente e desigual, a falência da ditadura de 1964 e a retomada das liberdades democráticas e de organização da sociedade, foram decisivas para vencer a resistência dos setores conservadores, oligopolistas e atrasados do país.
Como previmos na época, o poder constituído, as elites, o “mercado” e os grupos econômicos e políticos hegemônicos não assistiriam passivamente a implantação e consolidação do SUS que era intrinsecamente uma grave ameaça ao status quo. Partiram para a disputa, cônscios de que ali estava um nicho privilegiado a ser por eles explorado. Afinal, estava sendo gestada uma poderosa política de Estado de um potencial financeiro significativo e uma capacidade de capilaridade privilegiada com uma demanda perene, permanente e inesgotável a serem explorados.
Junto com o subfinanciamento crônico que prevaleceu desde o início de sua implantação, organizados nos parlamentos, inseridos nas três esferas de gestão, estas forças sociais atuaram fortemente junto aos gestores e à mídia para viabilizar a contratação de serviços privados, num primeiro momento na atenção terciária e especializada, utilizando-se de argumentos correntes no senso comum como “É importante que o SUS tenha parceiros privados, sozinho governo não dará conta” ou “O usuário não pode ficar esperando pelo Estado” ou ainda “Para o usuário não importa se o serviço é publico ou privado contratado, o que ele quer é ser atendido”. Contaram para isso com a participação direta de gestores comprometidos com e a serviço do setor privado, e outros que, sem o devido acúmulo conceitual sobre a proposta da reforma sanitária, empenhavam-se nesse caminho. Já no final da primeira década de vida o SUS enfrentava uma crescente dependência do setor privado, sofrendo com isso consequências no aprofundamento do desfinanciamento, indisponibilidade de serviços, equipamentos e profissionais, e de um número cada vez maior de pessoas privadas do atendimento.
A história e o mundo nos ensinaram que, política e financeiramente, é impossível se implantar um Sistema Público de Saúde de cunho universal e integral, como o SUS, na lógica de mercado, concorrendo com sistemas privados que se utilizam dessa lógica para aliciar profissionais e disponibilizar procedimentos, numa disputa profundamente desigual. No nosso país tal situação se agrava, já que o Estado é seu próprio algoz enquanto retroalimenta seus competidores com recursos públicos na forma de contratos, convênios e subsídios os mais variados. Uma equação profundamente perversa em que o Sistema é médico centrado, voltado para a atenção especializada, com importantes deficits no financiamento, na atenção primária, nas equipes multiprofissionais, nas ações de prevenção de doenças, promoção da saúde e ações intersetoriais, e na formação e distribuição dos médicos, de quem o SUS é refém.
Num quadro como esse, já flagrantemente insustentável política e economicamente, o SUS tem sido engolfado pela saúde suplementar e privada, tornando-se totalmente dependente da rede privada contratada e conveniada e por corporações organizadas em cooperativas e outros instrumentos mercantis de gestão da força de trabalho, como a “pejotização”. O que começou com a contratação dos serviços privados terciários, especializados e de alto custo, se estendeu muito rapidamente à gestão e gerência da rede, através das OSs, OSCIPs e os ditos parceiros privados, mas também através de instrumentos públicos de direito privado que exercitam a privatização através do clientelismo, patrimonialismo e fisiologismo político, como Fundações de direito privado, Serviço Social Autônomo e EBSERH.
É nesse gravíssimo quadro de virtual inviabilidade do SUS em seus princípios basilares, que o governo, com o Ministério da Saúde agora encabeçado por Alexandre Padilha, lança o “Agora tem especialistas”.
Segundo o ministro, durante o lançamento do programa, o Ministério constatou que “90% dos médicos especialistas estão na saúde privada e apenas 10% no SUS”, propondo que o “ressarcimento (dos Planos de Saúde e de hospitais que têm dívidas com o governo) pode ser trocado por mais cirurgia, mais exame diagnóstico, mais consulta especialista”. Segundo o ministro, esta é “a situação de vários hospitais privados e filantrópicos desse país que têm dívidas acumuladas, dívidas que se acumularam ao longo de anos, tributárias, previdenciárias, dívidas fiscais. Graças à parceria com o Ministério da Fazenda vamos criar um programa que relembre o Prouni, que pegava a dívida e transformava em vaga de atendimento para quem não podia pagar. Agora essa dívida vai ser transformada em mais atendimento às pessoas”. Segundo ele, hospitais que não tenham dívidas também serão beneficiados “recebendo créditos que poderão ser utilizados para abatimento de impostos ou de outros pagamentos que ele tenha que fazer pra frente, ou seja, abriu a porta do hospital pro SUS, vai ter a mão amiga da União, do Ministério da Fazenda para aliviar sua dívida, seus tributos e pagamentos pra frente”. E completou: “Imagina, né? As pessoas poderem entrar lá no hospital privado, ser atendida por lá pelo Sistema Único de Saúde sem precisar pagar nenhum valor adicional.” Para arrematar o ministro também reforçou que agora se “começa a enterrar de vez a famigerada tabela SUS”.
A fala do ministro parece perfeita, mas deixa de lado questões muito relevantes de serem tratadas. Por um lado, a preferência dos médicos pelo privado se dá porque lá recebem atraentes pagamentos por procedimento que realizam e pior, em grande parte das vezes, pagos pelo SUS. Assim a cada serviço privado que contrata, mais difícil se torna o SUS ter especialistas nos seus quadros, por mais que se forme (o governo promete 3.500), eles sempre preferirão o privado, independente do salário que o SUS ofereça.
Outra questão que merece destaque é que o Prouni, citada por Padilha como exemplo a ser seguido, teve um papel importante na inclusão de significativa parcela da sociedade no ensino universitário, porém além de não ter sido acompanhado por um fortalecimento adequado da educação fundamental, que continua com os mesmos problemas, teve efeitos deletérios como a recuperação de instituições privadas então literalmente falidas, bem como ampliar drasticamente o número de instituições (2.274, correspondente a 87,75%) e vagas (23.681.916 correspondentes a 95,9%) no ensino universitário privado, dados de 2023. O FIES, por seu turno, tem hoje um saldo devedor de R$ 116 bilhões, uma inadimplência de 61,5%. Tudo indica que o mesmo fatalmente acontecerá na saúde do país e no SUS.
Um aspecto a nosso ver essencial, como já dissemos, que está na raiz dos problemas da alta demanda por especialistas, não foi tratado pelo ministro como deveria ser, é a ausência de uma atenção primária resolutiva, de ações intersetoriais, de uma rede própria de procedimentos especializados e de equipe multiprofissional com plena capacidade de não somente atender à demanda, mas também de diminuir seu crescimento exponencial, que produziram um colapso que flagela milhões de brasileiros em todas as regiões do país.
No nosso entender o correto seria que o governo começasse um grande projeto de ampliação e estruturação da rede pública de modo a paulatinamente diminuir a dependência que tem da rede privada. Como há urgência e a população, concordamos, não pode mais esperar, é lícito compreender a necessidade de contratação de alguns serviços privados desde que, concomitantemente, seja deflagrado um projeto para o setor público. A questão é que o governo não pensa, a julgar pela apresentação feita por Padilha, em ampliar, fortalecer e estruturar a rede pública. Num outro caminho, a prioridade absoluta, suas declarações provam isso, é a rede privada.
As rápidas referências à atenção primária foram, digamos, meramente cosméticas e a participação do setor público centralizada no Grupo Hospitalar Conceição e na EBSERH, claramente prioridades absolutas da gestão Padilha. Além disso, nenhuma lembrança às especialidades que, inerentes a praticamente todas as demais categorias da saúde, também afligem diariamente e sobremaneira, com menos visibilidade, é verdade, a população usuária do SUS.
Em relação a sua referência à extinção da tabela SUS, no entanto, não foi mencionada a necessidade de superar a lógica mercantilizada da tabela, pelo financiamento de acordo com as necessidades e o perfil sócio epidemiológico de cada local referenciado. Ao contrário, o processo em andamento aprofunda e agrava a mercantilização de procedimentos e atendimento.
Mais recentemente ao lançamento do programa, o ministro deu novas declarações de que o debate sobre as parcerias público-privadas no SUS estaria superado, pois ele como a população não se importam se o atendimento é privado ou público, já que o mais importante é que o serviço seja prestado. Além disso reiterou também que o novo programa do governo federal não pretende criar nenhum serviço próprio, citando como exemplo de serviço próprio o INAMPS, aquele mesmo que, ao comprar ações e serviços de prestadores privados, engordou contas bancárias com dinheiro público e acabou na maior crise de insolvência de todos os tempos na Saúde. Uma das alavancas para a criação constitucional do SUS.
Um ministro de Estado de um governo encabeçado por petistas, com sua trajetória de lutas pelo direito à saúde, ao se valer de argumentos do senso comum de que não há diferença se o serviço é prestado por um serviço próprio, privado ou filantrópico, assim como comparar o INAMPS aos serviços públicos atualmente existentes àquele modelo sabidamente superado nessa altura da história de mais de 30 anos de SUS, age com menosprezo à nossa inteligência.
Num governo que afirma como “marca” a participação social, também é lamentável o desprezo pelas deliberações da XVII Conferencia Nacional de Saúde, que apontaram expressamente um caminho em sentido oposto, pelo fortalecimento dos serviços públicos e rechaçando todas as formas de privatização do SUS, como as famigeradas terceirizações.
As medidas propostas pelo programa contribuem para precipitar o fim do sonho do SUS universal, equânime e integral. Esse paciente gravemente enfermo terá, na melhor das hipóteses, se tudo correr como planejado, uma melhora temporária da febre e das dores, mas o câncer da privatização e do equivocado modelo de atenção que o devasta, continuará a corroê-lo por dentro e logo voltará de forma mais violenta e impiedosa. Operando na lógica do mercado e do lucro, o setor privado exigirá cada vez mais; foram, são e serão sempre insaciáveis, e chegaremos num ponto em que fatalmente não haverá recurso suficiente para financiar a festa. Impressiona como alguns atores políticos importantes, inclusive quadros históricos do SUS, não percebem o óbvio!
O plano das elites, secundado por alguns destes atores, se não for detido, terá o seguinte desfecho: inviabilizado técnica, política e financeiramente, o SUS se tornará aquele sistema que terá uma cesta básica para os pobres enquanto os procedimentos especializados, todos disponibilizados pelos “parceiros privados”, serão ofertados, desde que o usuário pague a sua contrapartida. E a contrapartida será paga pelo usuário via impostos, não para manter um setor público e eficiente, mas para engordar os lucros e o poder do setor privado.
Esse é o pano de fundo, esse é o plano. A nós petistas cabe ter em evidência o que está em jogo, explicitar quais perspectivas defendemos para que os revisionistas não possam dizer que contaram com nossa omissão e conseguiram nos vencer a todos que sempre defendemos o SUS e a Reforma Sanitária.
*Farmacêutico do SUS no Rio Grande do Norte, ex presidente do Conselho Nacional de Saúde.
**Educadora popular em saúde, militante do Movimento Popular de Saúde (MOPS) Campinas, ex-presidenta do Conselho Municipal de Saúde de Campinas, aposentada com 20 anos de trabalho na Secretaria de Saúde de Campinas.
***Advogado popular e militante LGBTQIAPN+, do MOPS Campinas e Presidente do Conselho Municipal de Saúde de Campinas.
****Médico pediatra, sanitarista com mestrado em Saúde Pública e aposentado após mais de 40 anos nos serviços de Saúde (antigo INAMPS e SUS).