Contra a ignorância, em defesa da reforma agrária

Por Bruno Traesel Schreiner e Mateus Lazzaretti*

Não é de hoje que organizações neoliberais prestam um verdadeiro desserviço à população brasileira. São instrumentos da burguesia que agem no sentido de disseminar desinformação, esvaziar os debates, criar confusão e (re)produzir os discursos dominantes como sendo os interesses de toda a sociedade. Recentemente, uma dessas organizações, o Clube Farroupilha, que tem ganhado notoriedade pelo seu desempenho em disseminar as ideias neoliberais entre a juventude, publicou o texto denominado “Qual reforma agrária pode ser uma ferramenta de desenvolvimento social?”, onde se pretende argumentar sobre como a ideia de reforma agrária defendida por “socialistas”, pelo MST e pelas milhares de famílias sem-terra, não passa de uma estratégia política populista.

Primeiramente, é importante fazermos algumas observações sobre como se estrutura a argumentação neoliberal num geral: monta-se sempre uma narrativa a-histórica, isto é, que ignora o tempo histórico e seu processo, até mesmo cronológico, além da ampla utilização de jargões econômicos, generalizações e um sem-fim de malabarismos teóricos, conceituais e de dados. Compreendendo isso, é possível analisar o texto referido. O texto, que em seu título promete fazer um debate sobre “Qual reforma agrária pode ser uma ferramenta de desenvolvimento social?”, pouco faz o debate de propostas, e acaba expondo, nas entrelinhas (e por vezes mais diretamente), o que pensam os liberais brasileiros: a reforma agrária não deve ocorrer.

Em segundo lugar, ao invés de analisar e criticar o que os movimentos sociais do campo – como o MST – já produziram em conteúdo acerca do projeto de reforma agrária, apontar suas possíveis falhas, e contrapor uma proposta (afinal é isso que indica o título), o texto apresenta uma série de generalizações, reduções e simplificações que não fazem outra coisa se não rebaixar o debate, reduzindo por exemplo a luta por reforma agrária como uma simples “redistribuição de terras”, ou apenas uma “luta contra o latifúndio”.

Ora, a reforma agrária defendida por esses movimentos é isso, mas também é muito mais. Lembremos de nossa história: a propriedade da terra no Brasil tem raízes extremamente desiguais e que se mantém até hoje, ou seja, é apropriação indevida de terras indígenas (capitanias hereditárias, sesmarias), a privatização de terras públicas para impedir que os escravizados libertos tivessem acesso a elas (Lei de Terras de 1850), a entrega, doação e/ou venda por baixos preços pelo Estado (que nunca teve e nem nunca terá um caráter neutro, sendo historicamente controlado pelos interesses das classes dominantes locais e internacionais), como no período JK ou durante a Ditadura Civil-Militar, para ficarmos em poucos exemplos.

A defesa da reforma agrária não tem por objetivo “empregar capital em um sistema produtivo com a finalidade de geração de lucros”, mas sim garantir a dignidade humana, o acesso a um bem que deve ser de todos e todas, ao trabalho, ao auto-sustento, à outra relação com a natureza, ao bem viver, podendo sim se investir na produção de alimentos, como ocorre inclusive no Brasil, onde mesmo dispondo da menor extensão de terra (em relação ao agronegócio), a agricultura familiar produz as maiores parcelas dos principais gêneros alimentícios consumidos pela população brasileira. É sobre nossa história e nossa realidade que devemos nos debruçar para formular qualquer proposta de mudança social. Há um distanciamento enorme entre a teoria e a prática entre os liberais.

Retornando ao texto, em seguida afirmam que “todos os movimentos e instituições criados em torno da pauta foram encabeçados ou apoiados pelo crescente lulopetismo dos anos 2000”. Mais uma vez ignoram a história e tentam produzir falsas narrativas. Os movimentos que tocam centralmente a pauta da reforma agrária surgem a partir de uma demanda concreta (a redistribuição e desconcentração das terras no Brasil, terra para trabalhar, viver, etc.), embasada na análise da realidade material, histórica e dialética (o Brasil é marcado pela concentração desigual de terras, etc.).

Aqui, não se sabe se por descuido ou má vontade, ignora-se (ou se desconhece) como surgiu o Partido dos/as Trabalhadores/as e o que representou: sendo a união de diferentes movimentos sociais e populares, dentre eles o MST, que luta pela reforma agrária, os sindicatos de trabalhadores rurais e trabalhadores da agricultura familiar, que se organizaram pela demanda por mais investimentos e melhores condições para agricultura familiar. Ou seja, utiliza-se de um jargão raso como um pires para se referir a um momento em que a luta popular, de organizações da classe trabalhadora, passa a ganhar tanto destaque a ponto de se tornar alternativa de governo, com tamanha expressão que conseguiu arrebanhar setores do capital produtivo nacional numa coalizão que tentasse frear a financeirização da economia brasileira.

O que apontam em seguida como uma suposta “incoerência”, é na verdade uma das contradições e fragilidades que há tempos apontamos nessa estratégia adotada majoritariamente pelo PT desde os anos 1990: não enxergar os limites dessa coalizão e acabar por se tornar refém desses setores da burguesia “interna”. Os liberais resumem o fato de os governos encabeçados pelo PT terem investido na indústria e agropecuária brasileiras como “transferiram dinheiro dos pagadores de impostos para os mais ricos”, ignorando os avanços sociais obtidos durante os mesmos.

Além disso, não é de hoje que teóricos de esquerda e movimentos do campo analisam com criticidade os projetos de reforma agrária aplicados em território brasileiro, em especial pelos governos FHC e Lula. Em ambos ocorreu praticamente o mesmo número de famílias assentadas, a diferença é que os governos Lula condicionaram aos/as agricultores/as políticas públicas para que estes/as se mantivessem no campo, medida mínima mas que salvou muitas famílias. Aqui, surge a primeira contradição, a expansão do PRONAF (política criada nos governos FHC, no auge das mobilizações populares no campo), essa política, preza por crédito para financiamento, em agências bancárias obviamente, logo, gera lucro a quem já detém muito (banqueiros).

Pois bem, em nossa análise Lula e seus governos se caracterizaram como conciliatórios e reformistas, não socialistas como os liberais insistem em definir. Nossa análise se subsidia na principal contradição que os governos Lula apresentaram, se por um lado a reforma agrária e as políticas públicas para o campo cresceram, por outro, nunca exportou-se tanta matéria prima, “commodities”, ao exterior, fazendo o PIB nacional crescer, e expandindo um cenário de monoculturas no campo brasileiro, os setores do empresariado nunca lucraram tanto, foi o mesmo setor que realizou o golpe político, parlamentar e machista de 2016, sobre Dilma Rousseff, através da Bancada Ruralista. Afinal, por que o golpe, se ganhavam tanto? Privilégios e mais privilégios.

Para Mitidiero Jr. e Feliciano (2018) o golpe de 2016, é resultado da cristalização de uma estratégia desesperada do capital em crise de retomar o processo de acumulação, alicerçado principalmente pela expansão do agronegócio, mas também da mineração, exploração da água, ar, etc.. “A manutenção dessa situação decorre do papel desempenhado pelo Estado, pelo capital bancário e particularmente pelos monopólios de comercialização” (OLIVEIRA, 1986, p. 12). É com isso que a colocação do Clube Farroupilha: “não há relação causal objetiva entre a miséria de alguns e a concentração de terra de outros”, não se fundamenta. Pelo simples fato de que não é possível acabar com a miséria sem mexermos com as estruturas dos problemas, estruturas estas que se mantêm organizadas inclusive em grupos como o Clube Farroupilha para legitimar os ideais liberais e manterem a ordem do capitalismo, apresentando uma falsa ideia de liberdade.

Em seguida, surge no texto a seguinte afirmação: “Na prática, a redistribuição de terras possui 3 efeitos diretos […] o primeiro efeito é a diminuição do potencial produtivo da terra, o segundo é o estímulo a política de privilégios e o terceiro é o aumento do preço-base de todos os alimentos produzidos nacionalmente”. Segundo o texto, o potencial produtivo é diminuído “porque as mesmas não estarão sendo redistribuídas para pessoas com comprovado conhecimento produtivo, o que fará com que a terra sofra com as primeiras safras e perca seu valor de mercado original”.

Perceba a lógica sobre a qual tal argumento está estruturado, e o quão raso ele é: 1) “pessoas sem comprovado conhecimento produtivo”, ou seja, quem é sem-terra, quem é pobre, quem nunca pode ter acesso a terra porque existe concentração na mão de poucos, terá de se contentar eternamente a essa condição, afinal, como história e tempo não existem na narrativa neoliberal, estas pessoas nunca poderão possuir “comprovado conhecimento produtivo”;

2) na segunda parte do argumento, fala da “perda de valor de mercado” da terra. A quem interessa que a terra tenha valor de mercado? O fundamental de uma reforma agrária popular é terra pro povo morar, trabalhar e produzir, sobreviver, não vendê-la ou valorizá-la no mercado. O MST, em seu projeto de reforma agrária não ignora o fato de que – por inúmeros motivos – nem todas as pessoas possuem os conhecimentos técnico-práticos sobre a terra, mas entende que isso não é limitador permanente, portanto trabalha no sentido da educação do campo. Merecem destaque, ainda, as ações de valorização da agricultura familiar e estruturação dos assentamentos durante os governos petistas, e construída com esses movimentos, entendendo que reforma agrária não se trata simplesmente de distribuir terras, mas uma série de investimentos em educação, saúde, técnicos, etc.

3) a agroecologia e a necessidade da reforma agrária tem como uma das principais preocupações a relação do ser humano com a terra, com recuperá-la da degradação e destruição de séculos de exploração desmedida, em especial o intensivo uso de agrotóxicos em nossa história recente. “Em relação à política de privilégios, ela ocorre porque se deslegitima a propriedade privada, aumentando-se a insegurança jurídica no país. Isso mostra que em solo tupiniquim só crescem as plantas que o governo quiser que cresçam.” Aqui talvez revelem o principal motivo pelo qual são contra a reforma agrária: mexe – mesmo que não na estrutura, mas na distribuição – na propriedade privada. Gera insegurança jurídica para quem? Para a elite e as multinacionais do agronegócio e da mineração, detentoras de grandes extensões de terra. Novamente, criam uma falsa oposição entre o mercado e quem rege o Estado (governo). O terceiro argumento demonstra e os limites de sua visão a-histórica, afinal a reforma agrária popular presume não só a desapropriação de terras para redistribuí-las, mas sim um movimento articulado a uma transformação social profunda.

Sobre a colocação do Clube Farroupilha que o Estado brasileiro detém 47% das terras e que isso seria suficiente para realizar reforma agrária, é necessário colocar o seguinte: são terras públicas, que deveriam pertencer à União, e dentre elas estão os territórios indígenas, quilombolas, assentamentos de reforma agrária e áreas de preservação; são nestas áreas que o agronegócio tem expandido suas fronteiras, a partir da grilagem de terras (a exemplo temos o Projeto de Lei 2.592/2015, a “PL da Grilagem” aprovado por Michel Temer em 2017, legalizando milhões de hectares de terras a grileiros), as queimadas da Amazônia têm sido consequência disso; não é ampliando a área de produção agrícola que acabaremos com as desigualdades, mas sim, redistribuindo-as de forma justa e popular.

Por fim, é fundamental uma análise mais crítica e pautada na realidade quando se discute um tema central ao Brasil como é a Reforma Agrária, diferente do que fazem essas organizações neoliberais cuja razão de existirem é para manter dominante a sua ideologia. Mais do que nunca, é necessário pensarmos novas formas de desenvolvimento, para além do individualismo capitalista, o Agronegócio não é o único modelo para desenvolver o campo brasileiro.

Florestan Fernandes já colocava que a reforma agrária é um importante ponto de partida para pensarmos as transformações democráticas, demográficas e urbanas, e solucionarmos inclusive problemas referentes a nossa soberania alimentar. É necessária uma Reforma Agrária popular e agroecológica, incentivos e garantias às pequenas produções, à agricultura familiar, para que possam manter os diversos cultivos, afim também de preservarmos nossa biodiversidade e não tornarmos o Brasil um grande deserto. E para que isso aconteça, é necessária uma consciência geral da sociedade, e é este nosso principal objetivo com este texto, buscar expor as constantes contradições, e a partir da dialética compreende-las a fim de pensarmos novos projetos de desenvolvimento e de vida.

Reforma agrária popular já!

 

Bibliografias:

FERNANDES, Florestan. O que é revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2018. 130 p.

MITIDIERO JR., Marco Antonio; FELICIANO, Carlos Alberto. A Violência no Campo Brasileiro em Tempos de Golpe e a Acumulação Primitiva de Capital. Dossiê Michel Temer e a Questão Agrária. OKARA: Geografia em Debate, João Pessoa, v. 12, n. 2, p.220-240, ago. 2018.

Atlas do Agronegócio: Fatos e números sobre as corporações que controlam o que comemos. In: FUNDAÇÃO HEINRICH BÖLL e FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO (Brasil). Rio de Janeiro: Atlas Manufaktur, 2018. p. 20-21.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. Modo Capitalista de Produção e Agricultura. São Paulo: Série Princípios, 1986. 88 p.

 

*Bruno Traesel Schreiner e Mateus Lazzaretti são militantes da Juventude da Articulação de Esquerda

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