Por Nátali Di Domenico Santos (*)
O ano de 2023 já começou turbulento para a classe trabalhadora na Europa. A crise econômica do capital, que vem impiedosamente atropelando os trabalhadores no último período, tem se agravado ante às novas condições postas à mesa, todas elas frutos de um acúmulo e agravamento das condições de vida dos trabalhadores, um oferecimento da crise do capital e do fascismo europeu.
Inflação; alta dos preços de energia; corte de insumos; crise de abastecimento. Isso é só o começo. Mas devemos dar um passo para trás para analisarmos o quadro de terror pintado, que está em exibição em todas as galerias europeias.
A inflação gerou um efeito dominó agravado que expôs a incapacidade latente dos governos de controlar a crise do capital, o que, para surpresa de ninguém, é o desdobramento cíclico do capitalismo, com suas crises que aniquilam a moral da classe trabalhadora. Desde Portugal até a Alemanha, a insatisfação e o medo do porvir se espalharam e a classe trabalhadora se pergunta até onde irão os golpes na sua autonomia, até quando os trabalhadores sofrerão o golpe da recessão econômica. O fantasma da guerra colocava ainda mais dúvidas.
No entanto, existe o contraponto a esta condição, a classe trabalhadora não está passiva em relação à alarmante situação econômica e social. Há uma forte resposta nas ruas de muitos países da Europa continental. E a resposta a todas as perguntas referentes às condições de vida dos trabalhadores, a resposta que tem se espalhado de norte a sul é: “Greve!” O movimento grevista tem se alastrado como fogo de palha, rápido e englobador. Pautas nacionais e irrestritas e em diversas frentes, no campo e cidade.
No Reino Unido, um dos setores que mais tem marcado presença é o setor ferroviário; em cidades grandes, como a capital Londres, houve paralisação total de trens (para outras partes do Reino Unido e para a Europa continental) e, em períodos alternados, paralisação total e parcial das linhas de metrô. O que demonstrou a força do setor! Mas cabe destacar que as greves no Reino Unido possuem características diversas daquelas do Brasil — parecem algumas vezes ocupar um papel de formalidade e não de forte contestação à ordem; não por parte dos grevistas, mas sim pelo cerceamento que a burocracia inflige aos atos de greve, impondo limites e datas agendadas. Inclusive a palavra strike é rara, utiliza-se industrial action, o que acaba dando sentido ambíguo e deixando a parcela da população não envolvida sem saber o que se passa de fato e muitas vezes causando incompreensão, pois, além do cerceamento, há pouco diálogo com os setores populares. E, claro, quando não há diálogo, há insatisfação. Esse sentimento cresce exponencialmente quando se vive com salário abaixo da inflação, crises de abastecimento, e se agrava com a chegada no inverno.
Com a chegada do inverno no hemisfério norte, o custo de vida se acentuou profundamente. Os últimos dias de verão trouxeram consigo, na mala de garupa, a pesada nuvem de preocupações e o soco da realidade à espreita. O turbilhão de notícias anunciando o caos não poupou o trabalhador de esperar pelo pior. O pensamento que mais fez morada na cabeça dos trabalhadores foi: “como vou fazer para sobreviver este inverno?”
O inverno europeu é conhecido por ser severo e impiedoso, com ondas de temperaturas negativas e um clima inóspito, o que historicamente forçou as populações a explorarem recursos naturais para suportar os difíceis meses de frio e rigor, além da baixa da produção alimentícia. Historicamente, as casas europeias foram construídas para suportar o rigor do inverno, mesmo assim, o uso de gás natural para aquecimento das residências é essencial. E, por falar em gás natural, temos a Rússia como o seu maior exportador. Os últimos invernos, do ponto de vista da classe trabalhadora, foram gradualmente ficando mais caros, sendo o inverno de 2022 a causa do pesadelo de muitos.
Com a inflação galopante e a living crisis, os trabalhadores sabiam que as consequências da guerra na Ucrânia iriam vir cedo ou tarde, e a conta acabou chegando, literalmente. No Reino Unido, os preços de energia tiveram uma alta de 66,7% e o preço do gás teve um aumento de mais de 129,4%, isso nos últimos 12 meses, até fevereiro de 2023, o que fez com que mais de 54% da população adulta escolhesse (escolha de revés) utilizar o mínimo possível o sistema de aquecimento central e a energia elétrica. Não são raros os relatos de famílias vivendo à luz de velas, uma trágica realidade para o país dito de primeiro mundo.
A vida já estava difícil e, sim, piorou extremamente. Como o aumento dos preços de gás e energia, o aumento do preço dos aluguéis igualmente ofende a classe trabalhadora. Viver tornou-se impossível. Sobreviver, necessário. Nesse período, foi criado um programa do governo para subsidiar o preço do gás nas residências e congelar os preços dos aluguéis, uma pequena esmola. Infelizmente, a organização de muitas famílias foi alterada e muitos tiveram que abandonar as suas cidades, voltar a morar com seus pais e, em muitos casos, retornar a seus países de origem.
Vale aqui pincelar sobre o cenário que vem se desdobrando na França, país vizinho da ilha britânica, mas que tem uma abordagem completamente diferente e radical da do Reino Unido. Os trabalhadores franceses demandam reajuste salarial e protestam contra o bárbaro projeto de Emmanuel Macron, presidente francês, de aumentar a idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos. O governo quer impor a Reforma sem votação pela Assembleia Nacional. Golpe atrás de golpe, o governo de retrocesso quer controlar e cercear. As greves nacionais continuam e há previsão de que dure mais de 20 dias. Multidões estão indo para as ruas, os movimentos ganham cada vez mais força e a pressão sob o governo aumenta. As paralisações na França, diferentemente das dos outros países do continente, pararam o país.
Mas com o acirramento da luta de classes e a crise chegando a um ponto crítico, ventos de mudança sopram junto com a chegada da primavera. Alguns raios de esperança começam a se espalhar pelo céu pesado, e o exemplo da França, que não poupa movimentos impressionantes, tem demonstrado a força da classe trabalhadora, que, depois de três longos anos de pandemia, revelou que muitas estruturas foram mudadas e que muito do que piamente foi aceito no passado já não tem mais espaço num mundo pós-pandemia. Muitos valores acabaram sendo substituídos por crenças de que a qualidade de vida é substancial e que o ritmo insano do mundo globalizado só nos adoece. Entretanto, depois da pandemia, houve um sentimento muito comum de que era preciso aceitar qualquer tipo de trabalho, sob praticamente qualquer condição, haja vista que a demissão em massa, principalmente no setor de hospitalidade (bares, restaurantes, cafés, hotéis), colocou muitos trabalhadores em uma situação delicada, onde cada libra contava, e os auxílios do governo, além de requererem uma série de comprovações, não eram suficientes. Conseguir um trabalho na pandemia era praticamente impossível e, hoje, para surpresa de ninguém, não há quem queira trabalhar no setor de hospitalidade, haja vista que é um setor que não apetece os britânicos, e, com o BREXIT, muitos europeus debandaram.
Os desdobramentos destes últimos anos, que ainda estamos analisando, servirão como base para os movimentos sociais do futuro não tão distante. A juventude, que logo foi inserida no mercado de trabalho, numa crise profunda e pandemia mundial, sabe que é possível viver, e quer viver, geração esta que tem potencial para colocar fogo nas estruturas arcaicas. Há esperança, e ela é vermelha.
(*) Nátali Di Domenico Santos é militante do PT.