“Democracia” na “América”

Por Lucas Arieh (*)

Depois de viajar para os Estados Unidos da América, em idos dos anos 1830, Alexis de Tocqueville escreveu a respeito da experiência democrática e participativa que ocorria nos condados da nascente nação estadunidense, elogiando-a como exemplo de concretização do ideário das revoluções liberais-burguesas, com uma sociedade baseada na igualdade de condições e na soberania popular (escolha direta dos representantes locais), infensa, portanto, à dominação elitista do aparelho do Estado.

Poucas décadas depois, a era dos Robber Barons ou Barões Ladrões, ao final do século XIX, consolidando um capitalismo de livre-mercado em que a classe dominante se constituía com vigor notável e, correspondentemente, uma implacável força perante o conjunto da sociedade, já punha por terra o experimento igualitário reportado por Tocqueville.

Já nesse período histórico, a relação estrutural de dependência entre Estado e grande capital, com este utilizando aquele como instrumento de favorecimento das condições de acumulação (que ganhava expressão concreta na dinâmica política pela captura da elite política por parte dos grandes capitalistas de setores como bancário e petrolífero), evidenciava ser a tendência dominante da sociedade capitalista num dos principais países do centro do capitalismo, ainda não dominante mundo afora.

Por isso, mesmo períodos progressivos da história estadunidense, como durante a Era do New Deal, um acordo social relativo (porque excludente da classe trabalhadora negra) interclassista levado a efeito com políticas keynesianas pela liderança democrata (até então, um partido representante da grande burguesia agrária), conviveram com a necessidade estatal de concretizar, em maior ou menor medida, os interesses dos grandes capitalistas[1].

Aquela nascente democracia sofrera, então, um duro golpe de morte por parte da dinâmica capitalista e do ethos de acumulação predatória, para a classe dominante, e consumismo desenfreado, para as classes médias, que – estes sim – fincaram raízes no tecido social norte-americano, muito mais do que qualquer sentimento moral de solidariedade e igualdade.

Prova contundente disso foi a decisão, de 2010, da Suprema Corte dos Estados Unidos que, julgando uma querela entre um comitê de campanha conservador (Citizens United) e a Comissão Federal Eleitoral dos EUA, basicamente, legalizou a corrupção político-empresarial, aceitando que doações (ilimitadas) de corporações poderiam ser contraface de interesses diretos do empresariado, desde que não haja “exemplos diretos de votos sendo trocados por… gastos”[2], como declarou o Ministro McConnel, cujo voto conduziu a maioria.

Toma lá, dá cá.

No Brasil, a corrupção é vista com olhos moralistas.

Seríamos, na visão dessa turma, o país do jeitinho, do “capitalismo de laços”[3], do amiguismo, do familismo. Um país que precisaria de um choque de modernidade capitalista para que a eficiência contratual impessoal se tornasse o vetor único das escolhas econômicas, tal como seria na “Democracia” na “América”.

Curiosamente, os mesmos apologetas do sistema político bipartidário e indireto, com ampla corrupção político-empresarial, não parecem se escandalizar com o ápice plutocrático que se anuncia para a administração Trump II.

A tabela abaixo, uma pequena amostra compilada a partir de fontes abertas, dá uma noção da desavergonhada dominação capitalista corrupta armada por Trump e Elon Musk para assumir diretamente o controle de classe do aparelho estatal estadunidense:

Doador Cargo/Função Indicado Valor Doado (aprox., em mi de USD) Empresa Possíveis Interesses
Elon Musk Co-líder de Iniciativa de Eficiência Governamental 260 Tesla (carros elétricos), SpaceX (setor aeroespacial) Promover políticas que beneficiem a SpaceX e Tesla, como contratos governamentais (que já possui aos bilhões) e regulamentações favoráveis. Para a NASA, Trump nomeou parceiro de Musk, Jared Isaacman.
Linda McMahon Secretária da Educação 21 WWE (entretenimento) Influenciar políticas educacionais que possam beneficiar instituições privadas ou programas ligados ao entretenimento.
Howard Lutnick Secretário do Comércio 9 Cantor Fitzgerald (financeira) Facilitar acordos comerciais e políticas que beneficiem o setor financeiro.
Scott Bessent Secretário do Tesouro (equivalente ao Ministro da Fazenda brasileiro) 3 Key Square Group (financeira) Influenciar políticas fiscais e monetárias que beneficiem o capital financeiro.
Warren Stephens Embaixador no Reino Unido 3 Stephens Inc. (banco de investimento) Facilitar acordos comerciais e investimentos que beneficiem o setor bancário e de private equity.

Aqui, o total doado à campanha, com enorme preponderância de grandes “contribuintes”, gerando o total de – apenas para a campanha de Trump – cerca de U$ 1,5bi, quase a totalidade do fundo público eleitoral brasileiro[4]:

Diante desse cenário de acentuação da tendência plutocrática do Estado capitalista estadunidense, qualquer análise, mais do que nunca, precisa se voltar para os interesses materiais das grandes empresas do Império.

Do lado sul do globo, desconstruir a visão moralista da corrupção, estudando e denunciando exemplos como esses, e situar a questão da corrupção no campo dos interesses que exsurgem da dimensão econômico-política da sociedade de classes é uma tarefa pedagógica para todo e qualquer militante político brasileiro.

Isso porque compreendê-la é condição indispensável para construirmos a compreensão programática de que o desenvolvimento exige, na atual quadra histórica, uma orientação socialista brasileira, considerando as peculiaridades da consciência do nosso povo, mas cuja premissa central não pode ser outra que não a de que as forças econômicas devem se sujeitar – e não assujeitar – ao projeto de país encabeçado por uma vanguarda política legitimada popularmente.

(*) Lucas Arieh é militante do PT, membro da DEAE/RN, advogado (UFRN) e mestre em direito penal e criminologia (USP).


[1] Sobre a corrupção nos EUA, ver principalmente o maravilhoso livro de Zephyr Teachout: TEACHOUT, Zephyr. Corruption in America: from Benjamin Franklin’s snuff box to Citizens United. Harvard University Press, 2014.

[2] Tradução livre. Disponível em <U.S. Reports: Citizens United v. Federal Election Comm’n, 558 U.S. 310 (2010).>.

[3] Refiro-me ao interessante livro aclamado pelo liberalato brasileiro – a intelligentsia neoliberal – de Sérgio Lazzarini: Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Elsevier, 2011.

[4] Vide: Summary data for Donald Trump, 2024 cycle • OpenSecrets

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