Por Mateus Santos*
“Donatários, bandeirantes, senhores e mestres do açúcar, canoeiros e tropeiros, com suas mulheres e famílias, fizeram o Brasil. Só um povo empreendedor constrói um país dessas dimensões que segue o destino manifesto de ser a maior democracia liberal do Hemisfério Sul”. Com essas palavras, Hamilton Mourão proporcionou bastante polêmica em meados do mês de setembro. O atual vice-presidente, de forma quase que providencial, construiu uma breve narrativa sobre a trajetória de formação de nosso país, enfatizando a ação de determinados agentes específicos no desenvolvimento de um projeto político e social supostamente exitoso.
Afirmações históricas como essa, estão fazendo parte do repertório político desse ciclo. Como não se lembrar, por exemplo, das polêmicas envolvendo as interpretações de Jair Bolsonaro sobre a Ditadura Militar ou mesmo seus comentários sobre a escravidão? É diante disso que se faz necessário pensar o lugar e os usos do passado nas lutas políticas da atualidade. Em meio à polarização política e ao enfrentamento de distintos projetos de país, os debates sobre a História se encontram, cada vez mais, num grau de importância que ultrapassa os tradicionais centros de produção e difusão de conhecimento, alcançando diferentes segmentos da sociedade.
As relações entre a História (com H maiúsculo) e a Política se encontram na essência do desenvolvimento da disciplina em nosso país. Ao olharmos essa trajetória, especialmente durante o século XIX, observamos a importância da realização de releituras acerca de nosso passado. Foi no interior dos Institutos Históricos e Geográficos (Nacional e suas versões provinciais) que uma narrativa de Brasil foi desenvolvida. A mais conhecida, que concebe a formação do Brasil a partir de três agentes (brancos, negros e índios), consagrada inicialmente por Von Martius e Vanhagen, falava bem mais do seu presente do que em relação ao passado em si. Isto se verifica diante dos desafios colocados à formação do Estado e da Nação naquele contexto. Diante de um país em debate acerca de suas identidades e dos questionamentos colocados à própria organização e existência de um Estado centralizado, coube a História também contribuir para o que podemos considerar como um esforço de promoção da coesão social e política, ao justificar um projeto de Estado nacional por meio da própria trajetória de seu território.
Do louvor à mestiçagem, empreendido por Gilberto Freyre, passando pela leitura de Caio Prado Júnior sobre a famosa “Formação do Brasil Contemporâneo”, releituras sobre a trajetória do país continuavam a ser desenvolvidas durante o século XX. Mesmo diante das divergentes interpretações fornecidas, a relação entre História e identidade continuava a exercer um protagonismo significativo no esforço de compreensão do Brasil. Identidade essa que não se limitava apenas às questões culturais, mas, ao menos em determinados autores, centrava-se também sobre o lugar social, político e econômico ocupado pelo país ao longo dessas narrativas.
E o hoje? A prática de interpretação do Brasil perdeu importância no interior das produções historiográficas. Poucos são os grandes nomes da intelectualidade brasileira que ainda se dedicam a isso. Exemplos como Jessé Souza e Lilian Schwartz são alguns dos mais paradigmáticos na atualidade. Contudo, as releituras de nossa história tomaram um sentido bastante preocupante para os historiadores de ofício e para as forças progressistas. O avanço reacionário no Brasil se traduziu na nova arena de debates sobre nosso passado. Além das polêmicas declarações de diversos políticos na atualidade, somam-se aos esforços de reconstrução de nossa trajetória veículos como “O Brasil Paralelo”, canal de grande acesso na internet e destinado, entre outras coisas, a abordagem sobre a História do Brasil.
A difusão do conhecimento histórico, o aumento dos debates acerca da trajetória do país, seria saudada por nós historiadores se este processo acompanhasse também a ampliação da crítica aos conteúdos e a busca pelo aprofundamento dos conhecimentos. Constata-se na atualidade exatamente o contrário. A História enquanto ciência passa por um grande processo de perda de sua legitimidade na sociedade, ao ser taxada supostamente como mecanismo de doutrinação. Assim, é muito significativa a resposta de Bolsonaro ao questionamento da equipe do Jornal Nacional sobre a negação da ditadura militar. Disse o atual presidente que, em defesa da sua posição, nós deveríamos “deixar os historiadores para lá”, num claro movimento de atribuição de novos lugares na produção de reflexão sobre o passado, completamente desprovido de método e dissociado de seriedade.
Em meio aos revisionismos e negações sobre processos históricos consagrados nas análises de estudiosos das mais diferentes matrizes ideológicas, a história da História passa por um difícil momento no país. Há alternativas para a superação desse cenário? Certamente, mas os caminhos ainda precisam ser discutidos. Um deles é, em verdade, a continuidade no reconhecimento das nossas dificuldades em atingir públicos mais amplos. A produção historiográfica, na grande maioria dos casos, é restrita ao debate entre os pares, não chegando a ser difundida entre setores mais amplos da sociedade. Uma consequência disso, de forma bastante evidente, são as distâncias existentes na produção de material didático e o desenvolvimento da historiografia. As leituras de História do Brasil nos livros para o ensino básico são um prato cheio para verificarmos esse distanciamento. As mudanças passadas pelos olhares sobre a trajetória do país, em muitos casos, não se fazem visíveis nas páginas dos manuais escolares, o que culmina na permanência de análises e narrativas presas às concepções que já passaram por amplo debate entre os historiadores ou mesmo por atualizações ao longo das últimas décadas.
Quando se pensa ainda sobre o ensino de História, não é mera coincidência o fato de que este foi duramente atacado com o golpe de 2016. A diminuição dos recursos para a formação de professores, a retirada de sua obrigatoriedade no Ensino Médio por meio da reforma e o quase desmantelamento do processo de análise do livro didático são algumas das medidas que representam retrocessos históricos para o exercício desse ofício no país. Não há dúvidas de que a legitimação de um projeto de país em que a ignorância sobre nosso passado se torne regra passa necessariamente pela eliminação acadêmica e social dos historiadores. Há tempos não se via um cenário pelo qual nossa sobrevivência no interior da sociedade é colocada em jogo.
Os desafios para a alteração no quadro dramático da atualidade não se encerram por aqui. Outro caminho fundamental é a recuperação da notoriedade no interior da opinião pública. Para isso, é preciso sairmos de nossas “casinhas”. E tal movimento, ao contrário do que foi pensado e gritado durante o último ciclo, não é meramente abrir a universidade para a sociedade. O que precisamos é de um reencontro, no qual parta de nós a iniciativa de aproximação. Para isso, “redefinir” o Brasil é uma via a ser seguida. Reler o país a partir de leituras mais amplas é uma tarefa de ordem, apresentando não só um sentido de nosso trabalho para uma população cada vez mais carente de conteúdo histórico, como também demonstrando encadeamentos possíveis para a compreensão do que é o país. É sair do mito da “especialidade”, isto é, a crença de que não é mais possível fazer análises que dialoguem com quadros amplos.
O historiador é um militante, no sentido mais profundo do termo. Seu ofício é a desestabilização, o questionamento e a problematização. Seu horizonte é levar a crítica histórica para os seus espaços de atuação. Em um quadro de luta pela sobrevivência, precisamos pegar nossas “armas” e lutar. A mais potente é o conhecimento, ou melhor, a capacidade de construção deste. Nessa arena adversa, precisamos ocupar os espaços de construção da opinião pública, indo além de nossos departamentos, conferências e congressos, para fazer das ruas, das redes e das salas de aula, nosso espaço de resistência e difusão de uma História séria, capaz de mobilizar a sociedade em prol de uma ação mais crítica diante de tantos equívocos e leituras completamente sem sentido.
*Mateus Santos é militante da JAE-BA e graduando em História/ UFBA