Por Ion de Andrade (*)
Nossas cidades são o palco em que se desenhou ao longo dos séculos o apartheid social à brasileira com fundas raízes na escravidão.
De um lado essas cidades moldaram uma modernidade contemporânea ao que o mundo de hoje é.
Do outro lado os setores sociais que sobrevivem precariamente sob todos os aspectos da civilidade, se distribuem numa incrível outra partitura que vai, nos extremos, desde quem não tem teto e vive na rua até os idosos obrigados a sobreviver sem cuidados em casa pela obrigação das famílias de ter que ir trabalhar para gerar uma renda minguada sem a qual ninguém na família sobreviveria.
No meio da partitura, entre esses extremos, há gente que vive comumente sem creches para os seus filhos e que, na sequência da vida, deve inscrevê-los em escolas precárias e muitas vezes distantes de casa, gente que convive com itinerários massacrantes até os locais onde trabalham, fazendo longos caminhos a pé ou de bicicleta para economizar, pois as jornadas extenuantes lhes pagam menos do que o necessário para sobreviver…
Essa gente vê a sua juventude sem acesso ao esporte ou à cultura no contraturno de escolas de tempo parcial, momento em que como presas que são, estão continuamente espreitadas por redes sociais escravizadoras ou perversas, pelo tédio de vidas sem oportunidade, pela drogadição, pela criminalidade e… pela polícia.
Gente que não tem espaços públicos para o lazer familiar dos domingos e que ao perder seus entes queridos encontram cemitérios quase sem vagas, sendo acossados pela adversidade até mesmo para enterrar os seus mortos.
Se pusermos essas comunidades para falar sobre as suas necessidades livremente, falarão de tudo isso, se pudessem planejar o seu futuro resolveriam esses problemas.
Onde estão conjugados esses problemas como uma totalidade a resolver na agenda dos candidatos?
Em que programa de governo as rodas de conversa com as comunidades figuram como estratégicas ou germinais para o planejamento das políticas públicas municipais?
A campanha eleitoral se tivesse foco no projeto de sociedade não teria mais do que falar além de como enfrentar e resolver essa gigantesca escara social. Não é o que vemos.
Construir o acesso universal à contemporaneidade, o que poderíamos chamar de inclusão ou bem estar social é o papel constitucional do Estado de direito pelo qual todos lutamos.
E a cada ventania a democracia balança, porque não se percebe que essa construção do acesso à inclusão social é a própria construção democracia.
Deixamos propositadamente o povo à míngua, com melhorias cosméticas que não fazem mais do que atualizar a sua exclusão social às necessidades do mercado. A prioridade na agenda eleitoral em saúde/educação & segurança (todas precárias) é o discurso homogêneo da promessa de todos os programas eleitorais. Ele consagra, na verdade, a falta de direito do povo a mais do que isso engaiolando-o no mal estar social e na exclusão onde o pouco que tem não resolve tudo e é ruim.
O campo progressista deveria ter uma leitura totalizadora dessa realidade para enfrentar e resolver, junto com essas comunidades excluídas, os problemas que elas enunciassem como prioritários e na ordem de prioridade apontada por elas.
Elas são resilientes e continuam, com inacreditável esperança votando majoritariamente nos setores que lhe retornam menos do que aos setores médios. Uma recente pesquisa mostrou que as classes D e E (o povo) são os que menos se beneficiaram dos avanços econômicos ocorridos mais ultimamente, mas é de lá que provêm a maioria dos votos. São uma Geni dos anos de 2020.
Entendo que aqueles que se investem da responsabilidade de serem candidatos mas não almejam, sequer nos discursos, enfrentar para resolver essas mazelas de forma integrada e totalizante devem se reposicionar pois quanto mais sabem mais culpados são.
Sim, há método para enfrentar o apartheid em que vivemos: o planejamento local, a partir da vontade coletiva das comunidades, a territorialização que permite o acesso universal ao bem estar aos que mais precisam distribuindo as conquistas no território (como faz o SUS) e investimentos públicos focados nessas necessidades e assegurando a implantação de novos equipamentos públicos e políticas que podem ir desde a pista de skate para a juventude ao centro dia de idosos, conforme dignamente escolha, não o candidato que se envergonha dessa agenda, mas a comunidade.
Decifra-me ou te devoro.
É inevitável constatar que chegou a hora de pagar a conta porque quem espreita o abandono com que o nosso povo é tratado hoje é o fascismo, não porque esse fascismo traga respostas, mas porque pode encarnar de forma doentia uma vingança cega contra promessas de inclusão nunca honradas.
Sim, chegou a hora de pagar a conta da inclusão social e os que têm a virtude de querer representar o povo devem começar a calcular os custos de iniciar esse novo ciclo de investimentos públicos contra o apartheid.
De fato, se não servir para isso, a campanha eleitoral só servirá como uma disputa entre Projetos de Poder e é claro, mesmo aí devemos ter lado.
Entretanto, não será difícil prever que em decorrência do descompromisso histórico de uns com os de baixo ou da falta de visão e covardia política de outros, a cidade que nos será devolvida em quatro anos dificilmente terá começado a romper de forma sistemática os grilhões do apartheid social, pois essa ideia necessária, estratégica e inadiável não está na agenda de ninguém.
Ainda há tempo.
(*) Ion de Andrade é militante petista do Rio Grande do Norte