Por Yanis Varoufakis
Pulicado em português pela Fundação Lauro Campos
Chegou-se a isto: Ken Loach está sendo submetido a uma campanha de difamação encorajada por aqueles que não vão parar por nada para proteger as políticas do apartheid de Israel. A mensagem a ser enviada às pessoas de boa consciência é simples: se você não quer ser tachado de antissemita, fique calado sobre crimes contra a humanidade e ataques aos direitos humanos em terras palestinas. Eles nos avisam: se pudermos fazer isso a Ken Loach, um homem que passou sua vida lutando em favor das vítimas da opressão, do racismo e da discriminação, imagine o que faremos com você. Se você se atrever a apoiar os direitos humanos dos palestinos, afirmaremos que odeia os judeus.
A arte de manchar o perfil de alguém de esquerda se tornou ainda mais refinada nos últimos tempos. Quando fui chamado de “motorista marxista” pelo Financial Times, confessei de bom grado minha culpa. Me chamar de estalinista, como fazem alguns direitistas pouco sofisticados, também não consegue desencadear uma crise existencialista em minha alma, pois sei perfeitamente que seria um bom candidato para o gulag sob qualquer regime estalinista. Mas se me chamam de misógino ou anti-semita, a dor é imediata. Por quê? Porque sabendo até que ponto estamos todos imbuídos nas sociedades ocidentais de patriarcalismo, antissemitismo e outras formas de racismo, tais acusações atingem um ponto nevrálgico.
Portanto, é uma deliciosa ironia que aqueles de nós que fizeram os maiores esforços para livrar nossas almas da misoginia, do antissemitismo e de outras formas de racismo sejam os que mais sofrem ao serem acusados desses preconceitos. Estamos bem cientes da facilidade com que o antissemitismo pode se espalhar para pessoas que não são de outra forma racistas. Entendemos bem sua astúcia e sua força, o fato, por exemplo, de que os judeus são as únicas pessoas acusadas de serem tanto capitalistas quanto revolucionários de esquerda. É por isso que a acusação estratégica de antissemitismo, cujo objetivo é silenciar e ostracizar aqueles que discordam, nos causa uma turbulência interior. E isto é o que está por trás do sucesso desmedido destas campanhas de vilipêndio contra amigos meus como Jeremy Corbyn, Bernie Sanders, Brian Eno, Roger Waters e agora Ken Loach.
Não é a sua crítica exclusiva a Israel um sintoma de antissemitismo?” nos perguntam frequentemente. Deixando de lado o ridículo da afirmação de que nos dedicamos a criticar Israel exclusivamente, a crítica a Israel não é e nunca poderá ser crítica aos judeus, assim como a crítica ao Estado grego ou ao imperialismo americano não é crítica aos gregos ou aos americanos. O mesmo se aplica quando se trata de questionar a sabedoria de ter criado um estado especificamente étnico. Quando pessoas notáveis, como meus heróis como Hannah Arendt e Albert Einstein, questionaram o projeto sionista de um Estado judeu na Palestina, é ofensivo afirmar que debater a existência de Israel significa ser antissemita. A questão não é se Arendt e Einstein estavam certos ou errados. A questão é se questionar ou não a sabedoria de um Estado judeu na terra da Palestina é antissemita. Claramente, enquanto os anti-semitas se opuseram à fundação do Estado de Israel, não se segue que apenas os anti-semitas se opuseram à fundação de um Estado judaico na Palestina.
Para trazer uma nota pessoal, em 2015, enquanto eu servia como ministro das finanças da Grécia, um jornal pró-Troika grego pensou que poderia me fazer menor, retratando-me com a figura de Shylock. O que esses idiotas não perceberam é que manchar minha imagem ao me comparar com um judeu era e ainda é um distintivo de honra. Falando também em nome dos amigos acima mencionados vilipendiados como antissemitas, nos sentimos profundamente lisonjeados quando um antissemita nos coloca com um povo que há tanto tempo tem resistido tão valentemente ao racismo. Enquanto um único judeu se sentir ameaçado pelo antissemitismo, colocaremos a Estrela de Davi no peito, prontos e dispostos a ser contados como judeus solidários, mesmo que não sejamos judeus. Ao mesmo tempo, usamos o estandarte palestino como símbolo de solidariedade com um povo que vive em um estado de apartheid construído por israelenses reacionários, o que fere meus irmãos e irmãs judeus e árabes, e alimenta as chamas do racismo que, ironicamente, sempre forjam uma variedade mais áspera de antissemitismo.
Voltando a Ken Loach, nenhuma campanha de calúnia contra ele pode, felizmente, ter sucesso. Não só porque o trabalho e a vida de Ken são prova do absurdo da acusação, mas também por causa dos israelenses corajosos que correm riscos terríveis ao defender o direito dos judeus e não-judeus de criticar Israel. Tomemos, por exemplo, o grupo de estudiosos acadêmicos que desconstruíram metodicamente a indefensável definição de antissemitismo da IHRA, equiparando-a às críticas legítimas compartilhadas por muitos israelenses progressistas. Ou as pessoas maravilhosas que trabalham com a ONG israelense de direitos humanos B’TSELEM para resistir às políticas do apartheid dos sucessivos governos israelenses. Sinto-me tão grato a eles como sinto ao meu amigo e mentor Ken Loach.
(*) Yanis Varoufákis é economista. Foi ministro das Finanças do Governo Tsipras em 2015.