Por Alexandre Eduardo (*)
As forças políticas, econômicas, jurídicas, midiáticas e militares que operaram o golpe de 2016 tinham e têm um programa político de dilapidação de direitos e naturalização da barbárie. Na área da educação, esse programa se expressou através do teto de gastos – e da consequente suspensão do piso constitucional das receitas vinculadas à educação –, mas também através do chamado Novo Ensino Médio (NEM), que não se tratou de uma proposta educacional inovadora vitimada por dificuldades de implementação, mas sim de um projeto de aprofundamento das desigualdades educacionais e consolidação da estratificação social.
O NEM impôs um teto de carga horária para os componentes curriculares que sintetizam o conhecimento acumulado pela humanidade nas diversas áreas do conhecimento, estabeleceu que apenas o ensino de língua portuguesa e de matemática seria obrigatório ao longo dos três anos do ensino médio, instituiu itinerários formativos desprovidos de diretrizes curriculares, fomentou a desescolarização ao possibilitar o aproveitamento de quaisquer experiências extraescolares para fins de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, estimulou o mercado da educação a distância e precarizou a educação profissional técnica de nível médio, terceirizando parte significativa da carga horária do ensino médio para instituições privadas.
A lógica do NEM deriva de uma velha ideologia das classes dominantes: para as massas das classes trabalhadoras, basta o aprendizado precário de português, matemática e de um ofício, a fim de que o conhecimento e consequentemente o poder permaneçam sob propriedade das elites.
O editor da reforma do ensino médio foi o então ministro da Educação do governo golpista de Michel Temer, Mendonça Filho. Quando da tramitação da reforma na forma de Medida Provisória, as bancadas do PT na Câmara e no Senado, em sintonia com o movimento juvenil que protagonizou a ocupação de mais de mil escolas em todo o país, travou o bom combate contra o NEM. Perdemos a votação, mas vencemos a disputa política quando o NEM se revelou um desastre programado.
Como não poderia deixar de ser, o governo Bolsonaro preservou o NEM, e a pandemia de Covid-19 se revelou o cenário ideal para que um laboratório de atividades de ensino mediado por tecnologias fosse colocado em operação através de plataformas privadas. A reforma do ensino médio tornou possível a transmutação do excepcional em novo normal.
A eleição de Lula em 2022 nos permitiu esperançar. A perspectiva política de reversão das reformas neoliberais, no entanto, necessita da combinação de luta institucional e luta social, dada a hegemonia conservadora no parlamento e a empreitada golpista da extrema-direita.
À frente do Ministério da Educação, o ministro Camilo Santana suspendeu o cronograma da reforma do ensino médio e deflagrou uma consulta pública para subsidiar a elaboração de uma nova proposta de ensino médio. O resultado desse processo foi o Projeto de Lei n° 5.230, de 2023, de iniciativa da Presidência da República.
Dada a conhecida hegemonia conservadora no parlamento, cabe-nos questionar por quais razões o MEC apresentou, de saída, uma proposição de conciliação. Cabe-nos questionar também se o governo adotou os esforços necessários para que Arthur Lira não fizesse o que fez: designar o ex-ministro do governo golpista de Michel Temer, Mendonça Filho (UNIÃO-PE), relator da proposição.
Uma proposição de conciliação, que buscava resgatar a carga horária de 2.400 horas para formação geral básica e reestabelecer os componentes curriculares outrora suprimidos, mas que possibilitava a redução da carga horária da formação geral básica quando articulada ao itinerário da formação técnica e profissional.
Uma proposição de conciliação, que reivindicava o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos como referência para o itinerário da formação técnica e profissional, mas mantinha aberta a janela para que esse itinerário fosse transformado em um mercado de cursos de qualificação profissional de curta duração e duvidosa qualidade.
Uma proposição de conciliação, que transformava os itinerários formativos em percursos de aprofundamento nas áreas de conhecimento integrantes da formação geral básica, prevendo diretrizes nacionais para esses percursos, mas preservava a possibilidade de reconhecimento de experiências extraescolares diversas para fins de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio.
Sob a relatoria de Mendonça Filho, o texto foi extremamente piorado, de modo a manter intactos os pilares da reforma instituída em 2017, mas a pressão de entidades e movimentos sociais do campo educacional, a atuação das bancadas da esquerda e os esforços empreendidos pelo MEC possibilitaram a aprovação, na Câmara dos Deputados, de uma proposição mediana, que, especialmente por transformar os itinerários formativos em percursos de aprofundamento nas áreas de conhecimento integrantes da formação geral básica, em detrimento da lógica de itinerários formativos desconexos e desprovidos de diretrizes curriculares, representou um avanço.
No Senado Federal, a senadora professora Dorinha Seabra (UNIÃO-TO) foi designada relatora da proposição. A pressão das entidades e movimentos sociais do campo educacional, a atuação das bancadas da esquerda e os esforços empreendidos pelo MEC foram mais uma vez fundamentais para o que texto aprovado no Senado por unanimidade trouxesse inúmeros avanços em relação ao texto aprovado na Câmara.
Dentre os avanços, merecem destaque:
-supressão do reconhecimento de diversas experiências extraescolares para fins de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, limitando-se ao reconhecimento de estágio, aprendizagem profissional, projetos de extensão universitária e de iniciação científica;
-resgate da língua espanhola como componente curricular obrigatório do ensino médio;
-supressão do dispositivo que contemplava as diretrizes nacionais de aprofundamento das áreas do conhecimento nos processos seletivos de acesso ao ensino superior;
-revogação dos arts. 12 a 20 da Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (reforma do ensino médio);
-previsão de que, a partir de 2029, mesmo quando a formação geral básica for articulada a cursos técnicos constantes no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, a carga horária mínima da formação geral básica será de 2.400 horas, com ampliação da carga horária mínima total de 3.000 para 3.200, 3.400 ou 3.600 horas, de acordo com a carga horária do curso técnico;
-definição de que o itinerário da formação técnica e profissional será constituído de cursos do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, em detrimento dos cursos de qualificação de curta duração e pouca qualidade.
O texto aprovado no Senado, ainda que preservasse aspectos negativos relativos a prazos e à possibilidade de privatização da formação técnica e profissional, poderia ser lido como uma revogação, de fato, do NEM. Mas a proposição retornou à Câmara e, sob a relatoria do Mendonça Filho, os avanços aprovados no Senado foram anulados, em uma sessão marcada pelo autoritarismo.
A derrota das forças progressistas começou a se desenhar imediatamente após a aprovação do PL 5230/2023 no Senado, quando o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), defendeu publicamente o acordo feito com Mendonça Filho quando da primeira votação da matéria na Câmara dos Deputados, ou seja, a rejeição dos avanços aprovados no Senado em benefício do texto aprovado na Câmara. Dificilmente Guimarães fez isso sem o aval do ministro Camilo Santana.
Em síntese, primeiramente fomos derrotados por nós mesmos e depois fomos derrotados pelo método Lira, que impediu a votação nominal das mudanças feitas no Senado e rejeitadas por Mendonça Filho, uma vez que o próprio líder do governo defendeu o texto acordado quando da primeira votação da matéria na Câmara.
A pior derrota não é aquela que nos é imposta pelos nossos inimigos de classe, mas sim aquela que construímos com nossas ações e omissões – a derrota consentida.
(*) Alexandre Eduardo é militante do PT SP.