Por Silvio Queiroz (*)
Bombeiros tentam apagar focos de incêndio em prédio do consulado iraniano em Damasco — Foto: LOUAI BESHARA / AFP
O conflito em escalada no Oriente Médio subiu a um patamar mais elevado – e perigoso – com o inédito contra-ataque lançado pelo Irã contra Israel, na noite de 13 de abril. Pela primeira vez, o regime islâmico disparou mísseis e drones de seu território contra o do Estado sionista, como resposta ao bombardeio do dia 1ª contra sua embaixada em Damasco, na Síria.
Já no dia seguinte, o episódio foi discutido no Conselho de Segurança das Nações Unidas, convocado em caráter extraordinário a pedido da delegação israelense. Durante o debate, o embaixador sionista reclamou a imposição de “todas as sanções” contra o Irã. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou a decisão de revidar “a agressão inédita”, que confirmaria a condição do regime islâmico como “ameaça para o mundo inteiro”.
Mais que a previsível reação israelense, merecem atenção as declarações de seus aliados – os de hoje e os de sempre. Estados Unidos e União Europeia (UE) puxaram o coro da condenação ao “ataque irresponsável e injustificável” do Irã. Curiosamente, os mesmos governos e “atores globais” silenciaram com eloquência diante da agressão sionista contra uma representação diplomática – que, como definem as Convenções de Viena, são consideradas território soberano do país representado e, como tal, cobertas por imunidade. Nenhuma palavra, tampouco, sobre o “direito de autodefesa”, definido no Artigo 51 da Carta das Nações Unidas e invocado com insistência pelos mesmos juízes autoproclamados da ordem mundial para justificar o genocídio perpetrado há seis meses pelo regime sionista contra o povo palestino na Faixa de Gaza.
O começo da Hstória
Oportuno, por sinal, trazer o massacre de Gaza à mesa na discussão da escalada entre Israel e Irã. Não apenas pelo cinismo com que o imperialismo ianque e seus aliados – e acólitos – exercem a prática de tratar cada caso com os pesos e medidas que lhes convêm.
Em ambas as situações, o regime sionista e seus guarda-costas simulam sofrer de uma espécie de amnésia histórica. Quanto a Gaza, invocam um direito sacrossanto de “autodefesa”, como resposta ao ataque lançado contra Israel pelo Hamas, em 7 de outubro de 2023, com saldo de cerca de 1.200 mortos e a caputura de algo mais que 200 reféns. Desde então, o revide custou a vida de mais de 33 mil palestinos, quase metade crianças.
É como se a história da humanidade tivesse começado há seis meses.
De maneira análoga, o contra-ataque iraniano é apresentado como se, no sábado 13 de abril, a liderança do regime islâmico tivesse acordado de mau humor – já que a ressaca parece improvável em um país onde é proibido o consumo de álcool – e decidido bombardear Israel para desopilar o fígado ou melhorar o astral.
Oficialmente, o calendário judaico está no ano 5784, contagem iniciada com a Criação, segundo a Bíblia. Mas esqueça o Livro de Gênesis: conforme a conveniência, tudo começou há seis meses ou no último fim de semana. O universo foi criado por D’us – o judaísmo pune como blasfêmia a menção ao nome do Criador – não com o “fiat lux”, mas com “fiat Hamas” ou “fiat Irã”.
Esqueça Adão e Eva.
Lei de Talião
Hipocrisias e heresias à parte, o importante, na situação perigosa em que o Estado sionista e seus cúmplices precipitam o mundo – eles, não seus adversários -, é entender as razões de fundo que alimentam os conflitos contemporâneos do Oriente Médio há um século. Pode-se tomar como marco o fim da 1ª Guerra Mundial, em 1914, e o desmembramento do Império Otomano (turco).
Especialmente significativa é a herança do princípio ancestral de “olho por olho, dente por dente”, conhecido como a Lei de Talião. Mais do que mero exercício de vingança, trata-se de um mecanismo de sobrevivência, em um ambiente no qual, ainda hoje, é vital saber mostrar os dentes – e usá-los, quando necessário.
Em tempo mais recente, o jornalista Thomas Friedman, editorialista do The New York Times, cunhou o termo “leis de Hama”, em seu livro ‘De Beirute a Jerusalém’. Friedman se referia à cidade de Hama, na Síria, que em 1982 foi palco de uma rebelião da Irmandade Muçulmana contra o regime laico liderado, então, por Hafez Assad – pai do atual presidente, Bashar. Seu clã pertence à seita muçulmana alauíta, minoritária e julgada herética pelos fundamentalistas da corrente majoritária sunita, como a Irmandade.
Hafez sufocou a revolta de Hama em sangue. Deixou para trás milhares de mortos e uma cidade reduzida a escombros. Segundo as “leis de Hama”, é vital que todos saibam o preço de erguer a mão contra você, tanto mais quando se é a minoria.
Foi essa a lógica que colocou o regime islâmico iraniano diante de um dilema, após o bombardeio israelense à embaixada em Damasco. Na qualidade de liderança de uma nação milenar, os estrategistas de Teerã buscaram uma resposta calibrada, de maneira a dar o recado sem dar a Netanyahu pretexto para declarar uma guerra aberta e frontal, que certamente envolveria diretamente o imperialismo ianque.
Esta, por sinal, parece a jogada central do regime sionista: arrastar para a briga o “irmão mais velho”, outra tática usual no Oriente Médio. Não por acaso, o contra-ataque iraniano foi deliberadamente anunciado – inclusive perante a ONU, formalmente. A opção pelo lançamento de drones, detectados pelos radares duas horas antes de chegarem a Israel, configura claramente o objetivo de mandar o recado de maneira a que o o alvo tivesse todas as condições para defender-se a contento.
O desafio diante das forças que procuram honestamente caminhos para evitar o precipício de uma guerra generalizada no Oriente Médio – como bem exemplifica a reação da diplomacia brasileira e do governo Lula – é a incógnita sobre como Israel aplicará as “leis de Hama”.
Ao contrário do regime islâmico, que exerceu o revide com transparência, os sionistas jamais assumiram a responsabilidade pelo bombardeio de 1º de abril em Damasco. Como é seu padrão de conduta, deixaram as impresões digitais, de maneira que não restassem dúvidas quanto à autoria, mas se esquivam de prestar contas por suas ações. A mesma ambiguidade que mantêm como o único país da região que dispõe de arsenal nuclear – cerca de 200 ogivas e mísses capazes de levá-las, por exemplo, até o Irã. Ainda assim, apresentam o regime islâmico como “ameaça existencial”, comparável ao Holocausto nazista.
Netanyahu se agarra à guerra em nome da sobrevivência política, até porque tem a Justiça à sua espera quando deixar o poder. Justamente por isso, representa – ele sim – perigo para o mundo inteiro. Parafraseando o velho Marx e o parceiro Engels, não tem propriamente um mundo a ganhar. Mas tem quase nada a perder.
(*) Silvio Queiroz é diretor do Sindicato dos Jornalistas do DF e militante do PT