Por Luiz Sérgio Canário (*)
Fernando Haddad iniciou sua colaboração com a Folha de São Paulo em 4 de maio de 2019, já no governo de Bozo. Semanalmente a partir de então escreveu uma coluna para o jornal. A última foi publicada em 8 de janeiro de 2021, ainda no governo de Bozo. Foram 20 meses de colaboração.
Na sua primeira coluna ele falava:
“A democracia exige oposição. O que é saudável e necessita ser visto até pelos apoiadores do governo como um direito legítimo de contar com forças sociais que ampliam o repertório para testar convicções, a depender da qualidade dos argumentos. Uma das contribuições que posso dar, nesse sentido, é tentar mostrar as conexões das partes com o todo e explorar alternativas.”
Em maio de 2019, cinco meses após a posse, já havia sinais de desconfiança do jornal com Bozo.
Na sua última coluna ele disse:
“Quando fui convidado para ser colunista da Folha, relutei em aceitar. Na época, me incomodava o posicionamento do jornal no segundo turno das eleições de 2018.
Pareceu-me uma falsificação inaceitável um órgão de imprensa que apoiou o golpe militar de 1964 equiparar, em editorial, um professor de teoria democrática a uma aberração saída dos porões da ditadura.”
“Aceitei o convite, no entanto, porque intuía que o governo Bolsonaro traria graves consequências ao país, o que exigia da parte de todos uma disposição ainda maior ao diálogo.”
“O jornal tem méritos que não desconsidero, mas não vejo como manter uma colaboração permanente com este veículo.
Por fim, a julgar pelo histórico dos políticos que a Folha veladamente tem apoiado, penso que ela deveria redobrar os cuidados antes de pretender deslegitimar alguém.”
O que eram sinais passaram a ser pesadas críticas e duros editoriais. A Folha não passa dia sem detonar o governo em algum aspecto. Mas sem nunca chegar ao que fez nos anos de governo do PT. Especialmente na construção e execução do golpe de 2016. Mas sem nunca esquecer de bater no seu adversário maior: o PT e Lula. Bater por um lado e ignorar pelo outro. Com todos os problemas da pandemia nenhum dos ex-ministros da saúde do PT foi chamado a se pronunciar.
Essa é a mesma Folha que nos anos de chumbo deu suporte político e material a um dos maiores centros de tortura da ditadura: a OBAN. A ponto de ter veículos com o logo do jornal, que eram usados em operações da OBAN, incendiados pela ALN, uma das organizações de esquerda daquele tempo. A Folha sempre teve lado. E nunca foi o da classe trabalhadora e do povo.
Durante todos os 20 meses da colaboração entre Haddad e a Folha cada um seguiu sendo o que sempre foi. Haddad escreveu colunas sobre variados temas, expondo as suas opiniões. Que quase sempre representaram uma visão mais palatável e menos radical, servindo ao compromisso de “mostrar as conexões das partes com o todo e explorar alternativas”, sem ofender ou criar embaraços com os donos da casa. As alternativas estavam quase sempre circunscritas aos domínios de uma teórica busca de diálogo com o leitor da folha, mas sem assustá-lo.
No que pese todos os meses convivendo com a Folha sendo a Folha, o estopim que detonou a colaboração foi o editorial do jornal de segunda-feira, 4/01, que dizia:
“Fernando Haddad assumiu o papel de poste e a chapa surfou nos votos que Lula ainda era capaz de amealhar, sendo derrotada por Jair Bolsonaro no segundo turno sem conseguir apoios expressivos.
Talvez esperançoso por uma nova chance, Haddad lançou no fim do ano passado a candidatura do ex-chefe em 2022, algo que depende de um complexo arranjo legal.”
Mais uma das tantas pancadas dirigidas ao partido ao longo dos 20 meses. Mas dessa vez era dirigida diretamente a ele. Em um texto duro e bem construído, intitulado “Despedida” ele rompe com a colaboração com o jornal. Deixa claro as razões que o levaram a isso e também uma crítica ao modo Folha de operar.
Olhando de longe esse episódio e a novela da eleição da Câmara de Deputados não têm nada em comum. Olhando perto, e nem precisa ser assim tão de perto, fica evidente que os dois episódios estão conectados pelo fio da tática e estratégia de buscar uma aproximação e algum tipo de convivência pacífica com as classes dominantes. Há relação política entre o que levou a bancada e a direção a Baleia e o que levou Haddad a Folha. Em ambas as situações mostrar um PT que se acomoda ao jogo institucional, que pode ser domesticado e ser um parceiro confiável. Aparam-se algumas arestas, faz-se de um lado, o nosso, grandes concessões, e do outro abre-se mão de pequenos pontos que não modificam o conjunto da obra e está feita a mágica. Mas, como se diz, só que não! A classe dominante, em pleno curso do golpe para acabar com o PT, Lula e a esquerda que representa algum perigo, não está disposta a isso. A Folha mostrou a Haddad o que realmente pensa dele. E por tabela deixou claro a importância de tê-lo nos seus quadros: nenhuma. As últimas declarações de Baleia Rossi e Rodrigo Maia mostram o que eles estão dispostos a ceder em acordos com o PT e a esquerda: nada de importante.
Não há por que se testar os limites das concessões que as classes dominantes estão dispostas a chegar. Basta dessas tentativas de se aproximar e buscar composição com quem tem por foco a nossa destruição. E as bases do partido mais uma vez mostraram que estão dispostas a pressionar a direção e mudar as regras do jogo. Toda a confusão que a questão da mesa gerou e a resistência interna a posição da direção levou a uma decisão por maioria muito apertada na bancada. Um pouco mais de pressão teria dado outro resultado. E esse outro resultado ainda não está fora de questão.
Resta agora a Gleisi seguir o exemplo de Haddad e produzir um documento, com o mesmo título, se desligando do tal “bloco de Maia” e construindo o bloco do PT, atraindo toda a esquerda e centro esquerda insatisfeitas com os rumos dessa disputa. Haddad pode ajudá-la a produzir um documento duro e bem construído, mas sem ofender ninguém!
Se podemos dar parabéns nesse momento a Haddad peça posição assumida, esperamos poder fazer o mesmo com Gleisi ao anunciar a saída do “bloco de Maia” para construir algo melhor!
(*) Luiz Sérgio Canário é militante petista em São Paulo-SP