Por Francisco Batista Júnior (*)
Mesmo levando em consideração a conquista histórica que significa o Sistema Único de Saúde (SUS) do nosso país, devemos ter muito claro as enormes dificuldades que significam a sua implementação dado a nossa história de tratamento do Estado com relações de fisiologismo, clientelismo, patrimonialismo, loteamento e privatização por grupos e corporações organizadas, como também de um financiamento insuficiente e equivocado e um modelo de atenção distorcido.
Assim, se por um lado temos um sistema com significativos avanços e que tem sido de uma importância incomensurável para toda a população brasileira, de outro, há ainda gargalos que são produtos de toda essa nossa cultura e que necessitam de um tratamento correto e sintonizado com os princípios da Reforma Sanitária.
Neste artigo, dividido em três partes, faço considerações sobre aspectos estratégicos da gestão do SUS, derivadas de análises e reflexões que venho compartilhando com profissionais de saúde do SUS, em fóruns sindicais e espaços de elaboração política, como conferências e conselhos de saúde, realizados em diferentes regiões do Brasil. Nesta Parte 1, abordo o modelo de atenção e o financiamento do nosso sistema universal de saúde, as relações público-privado na saúde, as relações de trabalho no SUS. Na Parte 2, estarão contemplados temas relacionados com as formas de organização que vêm sendo propostas para o SUS, como a fundação “estatal” de direito privado, o serviço social autônomo e a empresa pública, como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Nessa parte, analisarei também o caso dos hospitais federais do Rio de Janeiro. Concluo o artigo analisando, na Parte 3, os conflitos derivados do que propôs historicamente o movimento da Reforma Sanitária, a realidade atual da gestão do SUS e as alternativas legais e compatíveis com a Reforma Sanitária para recolocar o SUS no caminho de onde não deveria ter sido desviado.
Parte 1
Modelo de atenção e financiamento
A nossa prática corrente tem sido do tratamento da doença em detrimento de ações que possibilitem a promoção efetiva da saúde. Quando analisamos o SUS, nos seus 34 anos, após a regulamentação pelas leis 8.080 e 8.142, percebemos que, apesar de importantes avanços pontuais e de relevância e impacto no contexto socioepidemiológico, continuamos presos a uma lógica focada nos medicamentos, nos leitos hospitalares, medicocêntrica e, mais recentemente, nos exames de alto custo.
O descompromisso com uma efetiva e agressiva prática de promoção da saúde, inclusive com ações intersetoriais perenes e coordenadas, tem significado a manutenção de um quadro típico de países miseráveis com incidência de moléstias que há muito não mais fazem parte do mundo civilizado, onde a dengue, tuberculose e outros são exemplos clássicos. Ao mesmo tempo, isso tem gerado também uma demanda cada vez mais crescente por tratamentos cada vez mais especializados e de custos cada vez mais elevados, colocando em xeque não só a capacidade de financiamento, mas o próprio sistema como um todo.
Não temos programas que possibilitem diagnóstico precoce e um acompanhamento racional e integral de diabetes, hipertensão, oftalmologia, saúde mental, assistência farmacêutica, oncologia, saúde bucal e outros e somos obrigados, em consequência, a arcar com os desumanos e insustentáveis tratamentos de hemodiálise, procedimentos cirúrgicos, transplantes, intoxicações e câncer, só para citar alguns.
Em função disso, é também fundamental alterar a forma de financiamento global do sistema, superando a contraproducente lógica verticalizada e de pagamentos por procedimentos – que estimula a mercantilização e a corrupção – onde a tabela de procedimentos é o símbolo maior, passando-se a definir a proposta orçamentária de acordo com as necessidades de cada local referenciado, pactuando-se metas a serem atingidas e definindo os correspondentes e permanentes processos de acompanhamento e avaliação.
Para isso, a extinção das famigeradas emendas parlamentares, poderoso instrumento de coerção, cooptação e clientelismo político eleitoreiro nunca sintonizadas com os Planos de Saúde e as reais e imediatas necessidades do Sistema e da população, é absolutamente fundamental.
Assim sendo, uma agressiva política de prevenção de doenças e promoção da saúde, de ações intersetoriais que contemplem as áreas de segurança, transporte, educação, emprego e renda e violência em suas mais variadas faces são fundamentais, objetivando a construção de um novo modelo de saúde coerente e sintonizado com os ditames conceituais do nosso Sistema.
Concomitante e paralelamente, a estruturação da Atenção Básica em todos os municípios do país com a equipe multiprofissional plenamente valorizada, serviços de referência para atender a demanda por ações especializadas e uma rede pública regionalizada e hierarquizada propiciará as condições necessárias para alcançar a universalidade, integralidade e resolutividade desejadas.
Relação público/privado e principal x complementar
O Estado brasileiro sempre teve a prática recorrente de disponibilizar o serviço de saúde ao cliente através da contratação de terceiros, ao invés de estruturar a sua própria rede de serviços. Esse processo, que torna a saúde a exploração de um dos maiores negócios econômicos do país e que movimenta anualmente bilhões de reais, foi largamente intensificado durante o período de implantação do SUS. Isso se deveu ou porque a lógica de financiamento estabelecida via pagamento por procedimentos comprados tornava essa opção politicamente mais rentável e rápida, ou porque o gestor mantinha alguma relação direta com prestadores de serviços do setor privado, uma situação que sabemos bastante comum no Sistema.
Na medida em que o Poder Público desestruturava seus serviços especializados, criados no início do SUS, substituindo-os por serviços privados contratados, produzia o caldo de cultura e as condições necessárias para o estabelecimento e desenvolvimento da saúde suplementar que tem crescido em níveis bem acima do crescimento geral do país, beneficiada também pelo incremento da população.
Ao mesmo tempo e num processo de autoflagelação, o SUS estimula e drena seus recursos e profissionais especialistas para esse mesmo setor privado que se alavanca às suas custas, seja diretamente através do seu financiamento ou indiretamente por meio do estímulo à estruturação de serviços e da imunidade ou isenção tributária.
Esses trabalhadores especializados passaram, então, a dispor de um leque bem mais ampliado e variado de opções para seu exercício profissional e a terem outra rotina de trabalho baseada numa remuneração diferenciada, individualizada, mercantilizada e por procedimento realizado, e não mais na atividade laboral em jornadas com expedientes e plantões predeterminados.
Por essa razão, esses profissionais têm ignorado, e a continuar a atual lógica continuarão sempre a ignorar o SUS, que será por eles utilizado exclusivamente como instrumento de formação e afirmação profissional e de rápido retorno financeiro. Por isso, têm deixado reféns o SUS e a população brasileira, se negando, em muitos casos, a prestar serviços de maneira formal e de acordo com as regras estabelecidas para a força de trabalho do Sistema.
Profissionais que deveriam se formar para servirem a população optam por servirem-se dela. Preferem se organizar por meio de instrumentos de intermediação de mão de obra ou como Pessoa Jurídica para, através deles, auferirem remuneração bastante diferenciada e com frequência acima dos valores praticados pelo mercado. Um mercado, diga-se, que o próprio SUS fomenta, estimula e alimenta.
Dessa forma, dramaticamente, o SUS retroalimenta diretamente a carência de determinados profissionais na sua rede própria, enquanto se dispõe a financiar a remuneração de forma bastante diferenciada desses mesmos profissionais através dos serviços por eles prestados na rede privada contratada e conveniada.
Essa opção político/econômica/ideológica tornou a população brasileira dependente e em muitos casos totalmente refém do setor privado/contratado, principalmente nos serviços de referência e especializados.
Isso significa, na prática, o gestor admitir uma prestação de serviços que tem como norma o estabelecimento de um limite de procedimentos a ser disponibilizado pelo prestador, que, por sua vez, tem relação direta com a cada vez mais limitada capacidade de financiamento público. Numa lógica de mercado, portanto de um interminável debate de valores a serem praticados e honrados pelo ente público, e de um subfinanciamento que é a regra, a população é submetida a uma crise praticamente ininterrupta, traduzida no não-atendimento da demanda crescentemente reprimida (em função da conjunção perversa da falta de prevenção com os limites e tetos financeiros estabelecidos) e das constantes interrupções nos atendimentos, motivadas pela disputa de valores e de poder.
Portanto, cumpre-nos, e é lícito afirmar, que o crescimento do setor privado da saúde além dos limites da complementariedade estabelecidos pela Constituição Federal é incompatível com a plena afirmação e consolidação do SUS. É impossível termos determinados profissionais à disposição do Sistema uma vez que eles preferirão sempre a relação mais cômoda e mercantilizada com o setor privado, bem como também jamais teremos orçamento suficiente para financiar a compra de serviços na insustentável lógica de mercado.
Relações de trabalho
Com o processo de municipalização deflagrado a partir da década de 90, os estados da Federação e o governo federal praticaram uma política de absoluta desresponsabilização com a contratação e valorização dos trabalhadores para a rede SUS. Ao mesmo tempo, a “Reestruturação Produtiva” estimulou a precarização nas relações de trabalho através dos baixos salários, da multiplicação de gratificações e do culto à mercantilização e da múltipla militância, ou seja, o exercício do trabalho em vários locais e instituições, gerando a desvinculação profissional com o serviço.
Os municípios ficaram sobrecarregados com a tarefa de contratação dos trabalhadores e submetidos, em consequência, a situações insustentáveis. Com as limitações financeiras e a lógica prevalente no plano federal, passaram a estabelecer relações de trabalho totalmente precarizadas como contratos temporários, cooperativas, código 7, terceirizados, Pessoa Jurídica e outros.
Em consequência do processo de mercantilização estabelecido, os gestores passaram a instituir remunerações diferenciadas para os trabalhadores em geral, num processo que promoveu desestímulo e falta de compromisso bastante razoável de parte considerável do corpo de profissionais.
Ainda em consonância com a mercantilização instituída e com a demanda crescente pela especialização, os municípios ou foram obrigados ou simplesmente passaram a se submeter às exigências de corporações fortemente organizadas, principalmente em cooperativas.
Premidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal – no nosso entendimento, flagrantemente inconstitucional em relação à saúde – ou mesmo por opção político/ideológica, como muitas vezes ficou evidenciado, gestores realizaram um vigoroso processo de terceirização na contratação dos trabalhadores.
Por fim, também por opção político/ideológica e ferindo frontalmente os dispositivos constitucionais, foi deflagrado em todo o país o processo de privatização da Gestão e da Gerência dos serviços SUS, através das Organizações Sociais, OSCIPS, Fundações de Direito Privado, “Parceiros privados”, Serviços Sociais Autônomos, EBSERH e outras, que exercem seu papel com a mais ampla liberdade à revelia dos limites estabelecidos pela legislação da gestão direta bem como dos princípios do SUS.
Ressalte-se que a contratação de mão de obra através de “cooperativas” bem como a entrega de serviços públicos a administração de empresas privadas como Organizações Sociais, OSCIPS e outros “parceiros” são apresentadas como formas legais de cumprimento da legislação do SUS no quesito referente à complementariedade privada.
Na verdade, o que acontece, se não for por má-fé, é uma equivocada interpretação do Art. 24 da lei 8.080/90 que, de forma absolutamente clara, estabelece que “Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada”.
É impossível entendermos a intermediação de mão de obra e a terceirização da administração dos serviços do próprio SUS, que dentre outras coisas burlam violentamente o dispositivo constitucional do concurso o público como única forma de acesso ao serviço público, como efetivos serviços assistenciais complementares.
De maneira insofismável, cooperativa de trabalhador é mão de obra, força de trabalho que deve ser contratada via concurso público, seleção pública provisória ou contratos temporários com prazo pré-determinado como manda a legislação. Organizações Sociais, OSCIPS e outros “parceiros privados” como administradores de bens públicos são gerentes/gestores que precarizam a força de trabalho e não serviços assistenciais de saúde complementares disponibilizados no atendimento da população, disso não há dúvidas.
Sob esse aspecto, a mesma lei 8.080/90 estabelece nos seus artigos 17 e 18 a competência das direções estaduais e municipais do SUS de gerirem os serviços que estão sob sua esfera administrativa. Portanto, e é a lei orgânica do SUS que afirma isso, a gerência dos seus serviços não pode ser delegada a terceiros.
Temos, então, a conclusão de que, através de um processo pensado, coordenado e elaborado politicamente, o SUS foi paulatinamente desconstruído, sua legislação fartamente solapada e seus princípios violentamente desrespeitados, sempre com o discurso fácil e oportunista da necessidade de vencer a burocracia e de dar respostas rápidas e imediatas à população que, diziam e dizem, “não pode esperar”.
Na verdade, o que aconteceu, de fato, como sempre afirmamos e hoje constatamos com sobras, é que foi colocado em prática um projeto de transferência dos recursos financeiros e do patrimônio do SUS para grupos políticos e econômicos e corporações privadas, de acordo com a nossa cultura e a nossa história. Como resultado prático, e de concreto, temos o fato da quase totalidade dos casos de corrupção denunciados, apurados e comprovados no SUS acontecer exatamente nos contratos de terceirização com Organizações Sociais, OSCIPs e os ditos “parceiros privados” em geral.
Tudo ocorreu, diga-se, sob um assustador, constrangedor, vergonhoso e comprometedor silêncio daqueles que tinham, dentre outras, a tarefa de fiscalizar e acompanhar o sistema, zelando pelo respeito à legislação e às normas, particularmente o Ministério da Saúde, Ministério Público e o Poder Judiciário.
A contratação de Organizações Sociais, OSCIPs e congêneres, assim como das “cooperativas”, violentam os princípios constitucionais da legalidade, moralidade e impessoalidade, solapam o instrumento jurídico do concurso público como única forma de acesso ao serviço público, destratam as leis de licitação e de Responsabilidade Fiscal dentre outras e, mesmo assim, têm tido a conivência de vários Tribunais de Justiça pelo país afora.
Em 1998, o Partido dos Trabalhadores e o Partido Democrático Trabalhista entraram no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a Lei 9.673/1998 – das Organizações Sociais – e o inciso XXIV do artigo 24 da Lei 8.666/1993 – Lei das Licitações. Apresentando como relator Ayres Britto, teve sua tramitação iniciada em 1998 e foi suspensa em 19 de maio de 2011, em razão de um pedido de vistas de Marco Aurélio Mello.
Durante esse período de 13 longos anos, o processo de desconstrução do SUS e de consolidação das OS avançou em todo o país em governos dos mais variados matizes ideológicos. Afinal, diziam os gestores públicos, enquanto o Supremo Tribunal Federal não se manifestava em contrário, não poderiam ser acusados de estarem cometendo ilicitudes.
Por outro lado, o Ministério da Saúde financiava diretamente, ano após ano, a contratação de serviços privados em substituição à rede pública – invertendo o ditame constitucional da complementariedade privada e, portanto, descumprindo a lei – bem como a entrega de serviços públicos para a administração por empresas privadas.
Esse movimento pode ser interpretado como opção política, o que significou um grande equívoco tático e estratégico e desrespeito às decisões soberanas das Conferências e dos Conselhos de Saúde, e graves omissão e conivência com a ilegalidade.
A referida ADI só veio a ter seu desenlace definitivo em 2015, com o STF declarando as Organizações Sociais “parcialmente constitucionais”, desconsiderando todas as violências legais que encerram seus contratos, particularmente o acesso de servidores no serviço público sem concurso público e desobrigando-as do cumprimento da lei das licitações quando da aquisição de bens e insumos.
Importante frisar que, entre 1998, quando protocolou a ADI, e 2015, quando o STF se manifestou definitivamente, governos do PT aderiram ao processo de desconstrução conceitual do SUS adotando as Organizações Sociais como opção preferencial na gestão/gerência dos serviços da Rede SUS.
A verdade é que o SUS foi transformado no maior balcão de negócios envolvendo a coisa pública no nosso país, negócios privilegiados, com financiamento garantido e sem qualquer risco como são os casos dos contratos com Organizações Sociais, OSCIP, terceirizações em geral e outros “parceiros privados”. A cada novo prefeito ou governante que se elege, uma total e absurda rotatividade dos trabalhadores tem sido a regra de acordo com os interesses econômicos e políticos dos atores envolvidos.
Os milhares de pessoas que hoje sofrem nas filas de espera por um procedimento, que nem sempre é tão especializado assim, são vítimas desse irresponsável e ilegal processo de privatização do sistema que, está provado, é estatística, matemática e economicamente, absolutamente impossível de ser financiado em sua plenitude.
Aliás, e exatamente em função da inviabilidade de submeter a saúde à lógica de mercado, é que, nos últimos anos, e em consequência da demanda que cresceu significativamente, mesmo os Planos de Saúde, que diferentemente do SUS, sabemos bem, não se pautam pela universalidade nem pela integralidade no atendimento, estão enfrentando grandes dificuldades em arcar com as suas responsabilidades, aumentando em consequência cada vez mais os valores cobrados pelas mensalidades sempre acima dos índices de inflação e as exigências feitas aos seus segurados. De outro lado, com o crescimento da demanda, do SUS na lógica de mercado e da saúde privada, a saúde representa hoje o terceiro mais poderoso setor da economia, sendo superada apenas pelo ramo da energia e pelo sistema financeiro. Ou seja, com o SUS na lógica de mercado, a saúde se tornou uma das maiores áreas de negócios no Brasil.
Óbvio que, num quadro como esse, o Sistema Único de Saúde fica mortalmente ferido em pilares fundamentais, seu financiamento, sua força de trabalho e sua gestão, necessitando, portanto, de alterações que promovam a devida correção de rota.
Parte 2
Fundação “estatal” de direito privado, serviço social autônomo ou EBSERH no MEC
As propostas de fundação “estatal”, Serviço Social Autônomo e EBSERH são muito corajosas, para dizer o mínimo, quando recordamos o nefasto histórico de empreguismo, utilização político-partidária e de corrupção que caracterizam ferramentas semelhantes no Brasil, inclusive nas atuais, como nos mostra o noticiário frequente da mídia. Além disso, têm para nós um grave problema na sua origem: foram gestadas entre quatro paredes, sem que em nenhum momento os dois principais interessados – usuários do sistema e trabalhadores – fossem ouvidos. Em 2007, foi necessário que o Conselho Nacional de Saúde pautasse o tema das Fundações para que pudesse ser ouvido pelo governo. Num desrespeito flagrante, o governo enviou, à época, o Projeto de Lei (PL) para o Congresso Nacional, apesar de posição contrária do colegiado maior do Controle Social do SUS e das Conferências de Saúde.
Em função da ampla mobilização nacional deflagrada pelo Conselho Nacional de Saúde contra a proposta, o governo Lula sustou a tramitação do PL no último dia de mandato, mas, em outro momento profundamente infeliz, criou, vinculada ao Ministério da Educação e através de Medida Provisória, a fundação estatal de direito privado piorada, com o nome de Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) e, pasmem, como uma empresa do tipo sociedade anônima. Chama-nos a atenção, nesses processos políticos, o método autoritário praticado pelo governo em áreas tão vitais e com um importante histórico de participação popular e construção coletiva.
Sem entrar no mérito jurídico da proposta, onde há contestações em profusão, os defensores das fundações estatais de direito privado, do Serviço Social Autônomo e da EBSERH afirmam que “somente atividades próprias ou típicas do estado necessitam de determinadas proteções, como a da estabilidade, que resguarda o servidor de influências que o impeçam do exercício de suas funções públicas. O exercício de atividades que também o mundo privado se ocupa, as quais muitas vezes, até complementam os serviços públicos, como é o caso da saúde, não necessitam da mesma proteção como a fiscalização, regulamentação e controle” (texto publicado pelo Governo na época do PL das Fundações).
Os mesmos atores defendem que a fundação, o Serviço Social Autônomo e a EBSERH tenham total autonomia e isenção tributária, não se sujeitem aos limites de gastos com pessoal, impostos pela lei de Responsabilidade Fiscal, e não se submetam ao teto remuneratório. Um “coquetel” de boas promessas – umas nem tanto – sem antes, na opinião de juristas renomados, combinar com o texto constitucional. Portanto, teriam todas as possibilidades de “cooptar” determinados profissionais de acordo com os salários de mercado.
Escreveram o seguinte: “o conceito de postos profissionais, remunerados com base nos valores praticados no mercado concede maior eficácia e eficiência gerencial a essas organizações, além da possibilidade de cooptação e manutenção de quadros qualificados profissionais”. Sobre isso, afirmamos: pobre de um sistema de saúde que propõe “cooptar” profissionais, tendo como referência o mercado e não um processo mais amplo de valorização e de consequente convencimento!
No momento em que, com certeza, fazem inveja ao mais liberal pensador sobre relações de trabalho no setor público, eles praticam Planos de Cargos e Salários com distinção de remuneração e de tratamento entre categorias profissionais de um mesmo nível de formação, num gesto tão ousado que não teve nem nos arautos do neoliberalismo atores com coragem suficiente para verbalizá-lo, muito menos implantar.
Afirmam com toda a ênfase que o modelo público/estatal de gestão, “engessado e burocrático”, está morto. Perguntamos: a qual modelo de gestão se referem? Se é ao modelo majoritário e predominante sobre o qual não temos nenhuma ingerência ou participação e que contraria os princípios do SUS, se fundamenta no fisiologismo, na troca de favores políticos, na ocupação dos cargos a partir de interesses pessoais, corporativos e políticos, em detrimento da competência, da profissionalização e das relações compromissadas, nós concordamos. Aliás, sempre fomos contra e o denunciamos, uma vez que fere frontalmente as normas do SUS. Afinal, não é esse modelo que o SUS preconiza.
Por fim, ficam possessos quando reiteramos que a fundação de direito privado, o Serviço Social Autônomo e a EBSERH são processos de privatização. Dizem que “são instituições do Estado, públicas e controladas pelo governo”, como se privatização se resumisse ao conceito clássico de venda de uma empresa pública no mercado formal.
Na impossibilidade legal da privatização clássica, na saúde, historicamente, ela tem acontecido de maneira mais elaborada e perversa. O patrimônio continua sendo público, mas a sua administração e, literalmente, a sua exploração, econômica e política, é feita por grupos organizados que o gerenciam de acordo com os seus interesses e para atender as suas demandas políticas, particulares e do grupo correspondente. É para esse fim que, no Brasil, tem se constituído as fundações e, como dizemos, as congêneres.
Ressalte-se que mesmo as fundações de direito público, como de resto, e, para sermos honestos, basicamente toda a estrutura de serviços públicos no Brasil, independentemente de serem ou não fundações, são, em maior ou menor grau, privatizadas dessa maneira. É o modus operandi patrimonialista, que está na raiz de nossas misérias sociais, econômicas e políticas.
A questão que está em debate em relação às fundações estatais de direito privado e congêneres é que nessas – diferentemente das fundações de direito público –, sem a obediência aos ditames concebidos nos conceitos da Reforma Sanitária e dispondo de toda a autonomia que se desenha, o processo de espoliação política do patrimônio público torna-se mais farto, incontrolável e danoso ao interesse da população e do país. Disso a nossa experiência não deixa qualquer margem de dúvidas e essa tem sido, sim, na nossa história pregressa, a forma mais vil e desonesta de privatização do Estado brasileiro.
As nomeações clientelistas e indicações políticas são mantidas, aprofundadas e fortalecidas, os salários diferenciados para os privilegiados, garantidos, e os interesses patrimonialistas são plenamente atendidos pela gestão “autônoma e diferenciada” à margem do controle social.
A proposta de fundação estatal de direito privado e congêneres está, na verdade, tão desmoralizada, que até estados que a criaram através de leis ou não implementaram, ou implementaram e tiveram seus problemas aprofundados, ou simplesmente aderiram às Organizações Sociais, como são os casos do Rio de Janeiro e de Pernambuco e, surpresa maior para nós, a Bahia, que, entre outras excrescências, foi o primeiro estado brasileiro a adotar as famigeradas “parcerias público-privadas” na saúde. Isso porque seus defensores faziam a apologia das referidas “fundações estatais” como alternativa exatamente às Organizações Sociais, até então por eles consideradas ilegais e “desconstrutoras” do SUS.
Por enquanto, os Serviços Sociais Autônomos encontraram terreno fértil em Minas Gerais, onde em nada contribuíram para resolver as questões da saúde, e a EBSERH, com orçamento bilionário, implantada em praticamente todos os estados da federação com a promessa de resolver todos os problemas dos Hospitais Universitários, não somente não os resolveu como criou outros bem piores, como privilégios de castas dirigentes e assédio moral contra os trabalhadores como regra. Os problemas estruturais permanecem.
A verdade é que, criadas e implantadas por atores políticos que se afirmam identificados com a esquerda, com a defesa do SUS e com a Reforma Sanitária, as Fundações Estatais de Direito Privado, os Serviços Sociais Autônomos e a EBSERH constituem a opção ideológica pela criação de verdadeiros aparelhos e aparatos políticos, onde se lambuzam com o clientelismo, patrimonialismo e a ocupação do Estado através de grupos que exercitam as negociatas políticas em sua plenitude, ao mesmo tempo em que se locupletam com seus privilégios e supersalários, a privatização, enfim, mais perversa que há. E isso é, lembremos, tudo o que queremos extirpar do Estado e da administração pública brasileira, nunca fortalecer.
O Estado brasileiro e o SUS, em particular, são vítimas, portanto, dos piores inimigos que podem ter, atores travestidos de defensores do projeto apresentado pela Reforma Sanitária, verdadeiros revisionistas que de há muito abandonaram os princípios das transformações por ela – a reforma sanitária – preconizados, caindo nos braços da histórica e pregressa fundada no clientelismo, no fisiologismo, no patrimonialismo e no assalto às estruturas e instituições de Poder no país. Deslumbrados com esse (provisório) Poder, exercitam o autoritarismo e a truculência de forma plena, não veem qualquer problema no fato de a saúde ser um produto do mercado e são contra o Regime Jurídico Único e a estabilidade dos servidores do SUS. Afinal, são coisas que se não inviabilizam, dificultam, e muito, seu projeto de Poder.
Conclusão inquestionável: onde o SUS foi atacado e vitimado pelas Organizações Sociais, OSCIP, Fundações “Estatais” de Direito Privado, Serviços Sociais Autônomos, EBSERH, “Parceiros Privados” e congêneres, além de não resolverem nenhum desafio que estava colocado na gestão, aprofundaram os problemas que existiam e foram criados outros num processo que tem cada vez mais asfixiado nosso Sistema e penalizado a população e o Estado.
O caso do Rio de Janeiro – a bola da vez
Mais uma vez, os Hospitais Federais do Rio de Janeiro estão na berlinda acusados das mais variadas irregularidades que se estendem desde os aspectos legais até o que se convenciona chamar de incompetência e incapacidade de atender à população. Prestadores de serviços especializados e de alto custo e historicamente desenvolvendo um trabalho de excelência e de importância incomensurável ao estado e ao país, os hospitais federais do Rio de Janeiro têm sido vítimas exemplares da ditadura de grupos políticos que exploram suas gestões como forma de clientelismo e compadrio político.
As denúncias de corrupção e de ineficiência são feitas sem que nunca o dedo seja colocado na ferida e dessa vez a situação se tornou insustentável. Loteados por políticos da base do governo Lula, os hospitais agonizam sob a batuta de pessoas que, antes de trabalharem para seu fortalecimento, atuam prioritariamente “operando” para atender aos interesses dos grupos e conluios políticos que as indicam.
Não foi difícil imaginar o que aconteceria quando a última crise eclodiu de vez. Sabíamos que era a oportunidade que os revisionistas deslumbrados esperavam para implantar, também no Rio de Janeiro e no plano federal, seus aparelhos políticos prontos para as negociações de Poder. Entrega de um ao município do Rio de Janeiro onde fatalmente será negociado com uma Organização Social; outro à Fundação Oswaldo Cruz; outro mais ao Grupo Hospitalar Conceição do Rio Grande do Sul; mais um outro à EBSERH; e a possibilidade de transferir outro mais para uma “parceria público-privada”. Sem qualquer debate com o controle social, com os trabalhadores, academia e movimento social, isso revela como os revisionistas estão determinados na sua saga incontrolada e ensandecida de desconstruir o SUS.
Impressiona como eles, quando se trata de gerir e administrar a rede do SUS, não conseguem enxergar outra coisa que não seja a entrega dessa tarefa a um intermediário que possa ser utilizado como um aparelho político a ser manuseado de acordo com as forças envolvidas no processo. Impressiona como eles colocam em último plano os reais interesses da população e do próprio Sistema Único de Saúde, historicamente vítimas desses interesses e da permanente disputa pelo Poder.
É absolutamente inaceitável o processo de municipalização de qualquer forma e a qualquer preço sem obedecer a critérios mínimos que garantam os princípios basilares do SUS na sua gestão e na sua força de trabalho. A gerência dos serviços da rede do SUS necessita urgentemente ser libertada dos interesses de grupos políticos que se perpetuam no poder às custas da exploração das suas instituições e dos conchavos que disputam seus quinhões. Profissionalizados, democratizados, com adequada força de trabalho e com autonomia administrativa e financeira, os hospitais federais do Rio de Janeiro, assim como todos os serviços do SUS no país, podem perfeitamente dar a resposta que a população precisa, livres da opressão praticada pelos fisiologistas e patrimonialistas de plantão.
O que está se propondo fazer com os hospitais federais do Rio de Janeiro é tirá-los de uma forma de opressão, a tutela de políticos e grupos organizados, e submetê-los a outra, mais organizada e com a mesma essência, dessa feita através de privilegiados aparelhos políticos. As propostas alternativas, contratualização direta com autonomia administrativa e financeira e profissionalização da gestão, elencaremos a seguir.
Parte 3
A Reforma Sanitária e a gestão do SUS
O SUS enfrenta o seu mais difícil momento na sua ainda relativa curta história, está definitivamente em xeque e as dificuldades apontadas, que são reais, são fruto de todo esse processo de desconstrução conceitual, jurídica e política. A citada permanente crise nos hospitais federais do Rio de Janeiro, que analisei na Parte 2 deste artigo, agora num momento agudo, é um exemplo clássico do que discorremos até agora.
É fundamental afirmarmos que nenhuma forma de gestão no SUS dará os resultados que esperamos e necessitamos se num curto prazo não fizermos o enfrentamento com o atual modelo de atenção, que retroalimenta inexoravelmente a demanda pelos procedimentos especializados e de alto custo e não fortalecermos a rede estatal SUS, de modo a diminuirmos sobremaneira a dependência do setor privado contratado, eixos vitais onde as corporações e grupos econômicos organizados se alimentam e se fortalecem.
Necessitamos, também, desprecarizar e valorizar a força de trabalho, bem como ampliar o financiamento do SUS, alterando sua atual lógica, substituindo o equivocado pagamento de programas verticalizados e de procedimentos, pelo estabelecimento de metas a serem estabelecidas de acordo com a realidade e as necessidades de cada local.
Por outro lado, defender OS, OSCIP, fundação “estatal”, Serviço Social Autônomo e EBSERH afirmando que “saúde não é atividade típica de Estado e que apenas necessita de fiscalização, regulamentação e controle, que o privado é complementar e que com salários de mercado cooptará determinados profissionais”, é de uma violência com os princípios da Reforma Sanitária e desconhecimento da legislação (Art.197 da Constituição Federal) e da realidade do SUS, que não podemos conceber num debate sério onde o objetivo seja o fortalecimento do Sistema.
Além disso, a postura agressiva dos defensores da proposta, revisionistas que se identificam como progressistas e históricos da Reforma Sanitária, ao mesmo tempo em que acusam quem é contrário de “corporativista, que não têm propostas e de conivência com as distorções” que diga-se, são reais e as denunciamos, se não é má fé, apenas revela a falta deliberada de debates com o contraditório e esconde um fato contundente e elucidativo: essas propostas unificam sim, todos os setores conservadores anti-SUS do nosso país, mas divide claramente toda a militância da Reforma Sanitária que se tivesse sido ouvida, teria apresentado alternativas como as que seguem.
1) Sobre autonomia e “engessamento”
Diante da frágil argumentação de que a modalidade fundação “Estatal” e congêneres promovem autonomia e flexibilidades gerenciais e administrativas para bem gerir os serviços públicos de saúde, ante um estado “pesado”, “burocrático” e “engessado”, citamos a nossa Carta Maior que não deixa qualquer dúvida a respeito do tema, bastando apenas regulamentá-la sem a necessidade de criação nem intermediação de qualquer outro instrumento jurídico.
Constituição Federal, art. 37, Inciso XXI, § 8º
A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha como objetivo a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre:
I – o prazo de duração do contrato;
II – os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes;
III – a remuneração de pessoal.
2) “Quem tem motivação para contratar deve ter para demitir”
Frente à argumentação conservadora, recorrente e insustentável de que “a estabilidade do trabalhador em saúde é um mal e beneficia quem não quer trabalhar” e que “o trabalhador da saúde deve ter o mesmo tratamento que os trabalhadores do sistema financeiro ou do ramo petroquímico estatais” (como consta do documento divulgado pelo governo federal na época do debate sobre as Fundações “Estatais”, na primeira década do século XXI), os quais, diga-se enfaticamente, merecem todo o nosso respeito, estranhamos e lamentamos a comparação rebaixada, desqualificada e oportunista com quem trabalha com a vida do seu semelhante e que necessita da estabilidade no emprego para a garantia plena do exercício profissional e do vínculo efetivo e afetivo, inclusive, profissional-serviço-cliente.
Lamentamos, também, que não sejam pautados os reais interesses políticos, fisiológicos e corporativos da atual majoritária lógica de gestão, que inviabilizam o sistema e que, além de não serem enfrentados, também saem fortalecidos pela fundação “estatal” e congêneres, que estabelece, dentre outros, a contratação e demissão de trabalhadores de acordo com a, tentemos entender, “necessidade de cada serviço”. Para nos contrapormos a isso, recorremos outra vez à legislação vigente, o Regime Jurídico Único, que para qualquer bom entendedor é claro, cristalino e insofismável e que, sabemos muito bem, apenas necessita ser cumprido.
Regime Jurídico Único – Lei 8.112, art. 127
São penalidades disciplinares:
advertência; suspensão; demissão; cassação de aposentadoria ou disponibilidade; destituição de cargo em comissão; destituição de função comissionada.
Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:
crime contra a administração pública; abandono de cargo; inassiduidade habitual; improbidade administrativa; incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição; insubordinação grave em serviço; ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem; aplicação irregular de dinheiros públicos; revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo; lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio pessoal; corrupção; acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas; transgressão dos incisos IX e XVI do art. 117.
Dessa maneira, e para se ter uma ideia do período em que eles defendiam a criação das fundações estatais e criaram a EBSERH, no estrito cumprimento da legislação vigente, entre 2003 e outubro de 2010, o governo federal promoveu a demissão de 2.500 servidores. Foram 1.471 por uso indevido do cargo, 817 por improbidade administrativa e 257 por recebimento de propina. Tiveram a aposentadoria cassada, 177; e 223 foram destituídos de cargos de confiança. Além disso, 243 foram expulsos por desídia, que são faltas leves agravadas pela repetição, e 406, por abandono de cargo. Essas punições alcançaram diretores, superintendentes, auditores e fiscais da Receita Federal, da Previdência e do Trabalho, procuradores e subsecretários de orçamento e administração (números e dados divulgados pelo próprio governo, no referido período).
Portanto, afirmar que a estabilidade é um mal em si, que permite que trabalhadores não cumpram com sua função dela se beneficiando, é uma falácia; significa negar a responsabilidade que cabe a gestores incompetentes e descompromissados e atentar contra um direito que ao trabalhador do serviço público em áreas fundamentais deve ser considerado como sagrado, qual seja a não vulnerabilidade a governos que utilizam o exercício do poder violentando os princípios constitucionais da moralidade, da legalidade e da impessoalidade.
Assim mesmo, defendemos que esse processo deva ser aperfeiçoado com a inclusão de outros elementos pertinentes, como, por exemplo, a avaliação periódica.
3) Mercantilização da modalidade fundação estatal e congêneres versus profissionalização da gestão do SUS
A atual forma de organização, estruturação e funcionamento do SUS, inclusive com uma nítida política de desvalorização e desestímulo salarial dos profissionais, além da lógica patrimonialista imposta por grupos políticos e corporações organizadas, promoveu, não raro, gestões ineficientes e não resolutivas e uma efetiva e mortal, em se tratando de trabalho em saúde, mercantilização nas relações de trabalho.
Reiteramos energicamente que esta lógica não será revertida sem o fortalecimento do setor público estatal com vistas à superação da prática de estabelecimento de tetos financeiros e pagamentos de procedimentos e sem a priorização da prevenção executada pela equipe multiprofissional em saúde, com a finalidade de estancar o aumento geométrico da demanda pelos procedimentos especializados e de alto custo.
Fundamental, para nós, nesse momento emergencial, é não incrementar nenhuma proposta que possa institucionalizar, oficializar e tornar um caminho sem volta esse irracional e insustentável processo de mercantilização, que propõe o benefício de uns poucos em detrimento da grande maioria dos profissionais, como são os casos da fundação “estatal”, do Serviço Social Autônomo, dos “Parceiros Privados” e da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Nesse sentido, defendemos, outra vez, que a atual legislação, totalmente sintonizada com os princípios da Reforma Sanitária, possa efetiva e definitivamente ser implementada.
Faz-se necessário, então, com esse objetivo:
a) Profissionalizar e democratizar a gestão e a gerência dos serviços da rede SUS, através da regulamentação do inciso V do Art. 37 da Constituição Federal, que estabelece que “as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento”.
Para além disso, um instrumento jurídico que defina critérios técnicos e de formação deve ser estabelecido e obedecido como referência para o preenchimento dos cargos em comissão de direção e gestão, contemplando as premissas de ser integrante dos quadros do SUS e do Serviço, com formação técnica adequada, tempo de atividade profissional e manifestação/participação dos trabalhadores.
A proposta é tornar a gestão do SUS e a gerência dos serviços da sua Rede imunes às indicações políticas, clientelistas e fisiologistas, priorizando e valorizando os critérios técnicos e implantando a gestão profissionalizada e democratizada.
b) Criar e implementar um amplo Programa Nacional de Reestruturação e Fortalecimento da Rede Pública Estatal (ReestruturaSUS), nas três esferas de governo e de relação interinstitucional, na perspectiva de viabilizar uma ação intersetorial permanente, com ênfase nos aspectos relacionados ao emprego, renda e sua distribuição, combate à violência em todos os níveis, educação no trânsito, desenvolvimento sustentável, preservação do meio ambiente e uma proposta de acesso à educação pública em todos os níveis radicalmente qualificada e democratizada;
c) Acesso ao serviço público através de concurso público com estabilidade no emprego e avaliação permanente, fundamental para se contrapor ao processo de descompromisso, desvinculação e leilão de remuneração profissional, como forma de construir uma relação que tenha como eixo fundamental o vínculo profissional-serviço-cliente;
d) Criar uma Carreira Única, Nacional, Tripartite, Multiprofissional e Interfederativa para todos os trabalhadores do SUS, de acordo com as Diretrizes Nacionais do Plano de Carreira, Cargos e Salários (PCCS) do SUS, pactuadas na Comissão Intergestores Tripartite e construída obedecendo a um processo de adesão voluntária dos entes federados. Diferentemente da proposta de PCCS por serviço, incorporada na fundação “estatal” e congêneres que desvaloriza, desestimula, desrespeita e desqualifica profissionais com a lógica de “salários de mercado”, a partir do privilegio de uns poucos em alguns serviços em detrimento da grande massa de trabalhadores, defendemos pisos salariais nacionais por nível de escolaridade, estímulos à dedicação exclusiva, interiorização, tempo de serviço e à qualificação, bem como a observância a situações específicas que hoje são demandadas em função da realidade estabelecida. Essas constituem medidas a serem implementadas objetivando a criação e implantação da carreira única do SUS como carreira de Estado, com base municipal e devidamente pactuada entre as três esferas de governo.
Quem trabalha com a vida do seu semelhante não pode e não deve ser submetido à “lógica de mercado”, que em se tratando de saúde e da vida das pessoas, é um conceito absolutamente anacrônico e incompatível com a Reforma Sanitária e com os princípios da ética e do humanismo.
e) Definir a responsabilidade tripartite pela contratação e remuneração da força de trabalho do SUS, a partir do diagnóstico da necessidade da equipe multiprofissional, da regionalização e da hierarquização da rede em todo o país, e de concursos públicos na alçada de cada ente federado com consequente inserção na Carreira Única do SUS; e,
f) Criar e implementar a formação, qualificação e perspectivas de desenvolvimento na carreira, através de projetos de educação permanente em saúde, com participação dos entes federativos das três esferas de governo, e ampliar o número de programas de residências multiprofissionais em todo o país, de acordo com os seguintes dispositivos legais:
Art. 37, § 2 da Constituição Federal
“A União, os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênios ou contratos entre os entes federados.”
Art. 37, § 5º da Constituição Federal
Lei da União, dos estados, do Distrito Federal e dos Municípios poderá estabelecer a relação entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, Inciso XI.
Art. 27, Inciso I da Lei 8.080/90
“Organização de um sistema de formação de recursos humanos em todos os níveis de ensino, inclusive de pós-graduação, além da elaboração de programas de permanente aperfeiçoamento de pessoal.”
Art. 27, Inciso IV da Lei 8.080/90
“Valorização da dedicação exclusiva aos serviços do Sistema Único de Saúde.”
– Reestruturação curricular e desprivatização dos cursos universitários e técnicos da área de saúde, de modo a sintonizar a formação profissional com a realidade do país, com o SUS e suas necessidades, bem como instituir o Serviço Civil em Saúde na rede pública do SUS para todos os profissionais graduados, pelo prazo de um ano e Residência Multiprofissional como instrumentos de qualificação, convencimento, aperfeiçoamento, visibilidade e afirmação do trabalho multiprofissional e atendimento das carências do sistema na área de Gestão do Trabalho.
– Gestão do Sistema e Gerência dos Serviços radicalmente democratizados, com a instituição de processos de profissionalização, de Conselhos Gestores e de outros espaços de contribuição e elaboração que possibilitem o fim da ingerência político-partidária, o fisiologismo e o nepotismo, com a participação efetiva de trabalhadores e usuários nas decisões que digam respeito ao funcionamento dos serviços da rede SUS;
– Arguir a inconstitucionalidade (Art. 196 da CF) ou modificar a Lei de Responsabilidade Fiscal para a área de saúde, de modo a possibilitar aos gestores a contratação dos profissionais necessários à viabilização do sistema, combatendo e eliminando a precarização nas relações de trabalho, e priorizando o processo de regionalização e hierarquização dos serviços. Nesse momento e num sentido inverso, tramita no Congresso Nacional o PLP 98/23, que propõe deixar os gastos da força de trabalho TERCEIRIZADA fora dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Alguém pode afirmar, e já ouvimos de alguns defensores dos aparelhos clientelistas/patrimonialistas/privatistas, que tudo isso vai demorar muito tempo e necessitamos de ações imediatas. Se o SUS sobreviveu heroicamente a tantos ataques, não será um pouco mais de tempo de espera e de resistência a outros duros ataques que o inviabilizará. De outro lado, várias das propostas, por nós aqui apresentadas, podem ser construídas imediatamente, estando na dependência exclusiva de decisão política. Algumas, inclusive, já têm projetos tramitando no Congresso Nacional.
As soluções a serem apresentadas para o SUS, portanto, antes de representarem uma rendição à lógica privada e do mercado, deve significar exatamente o contrário, o enfrentamento dessa lógica com a consequente afirmação dos preceitos de um estado forte e que responde às demandas da sua população na área social.
Entendemos, dessa maneira, que, com decisão política, controle social, prática efetiva da democracia participativa e obediência à legislação vigente devidamente aperfeiçoada, quando for o caso, sem a criação de qualquer outro instrumento jurídico, temos efetivas condições de implantação definitiva do SUS de forma totalmente sintonizada com os princípios da Reforma Sanitária no Brasil.
(*) Francisco Batista Júnior é farmacêutico do SUS no Rio Grande do Norte concursado pela Secretaria de Estado da Saúde e ex-presidente eleito do Conselho Nacional de Saúde (2006-2011). Atualmente, é membro da Comissão Intersetorial de Recursos Humanos e Relações do Trabalho e da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde.