Por Valter Pomar (*)
Recomendo a leitura da entrevista concedida pelo Márcio Pochmann à Forum, acerca do arcabouço fiscal e assuntos conexos.
A entrevista, publicada dia 22 de maio, pode ser lida no link a seguir:
https://revistaforum.com.br/economia/2023/5/22/pochmann-arcabouo-fiscal-essencial-para-lula-enfrentar-herana-golpista-136329.html
Recomendo a leitura, entre outros motivos porque, talvez sem o desejar, Pochmann faz uma crítica contida ao arcabouço fiscal.
Vamos por partes.
A primeira pergunta da Fórum é sobre a votação do novo arcabouço fiscal.
Isto permite a Pochmann começar sua resposta com uma notícia otimista: será aprovado.
O engraçado é que ele fala isso, depois de revelar sua preocupação com as dificuldades enfrentadas pelo governo no Parlamento.
No fundo, é como se ele afirmasse que a votação do NAF seria um ponto fora da curva.
Aqui está a frase reveladora: “Mas, em relação às novas regras do arcabouço fiscal, parece que está relativamente acordado”.
“Mas”…
Claro, como não podia deixar de ser, Pochmann atribui este “acordado” à “atuação do presidente Lula e sua equipe junto ao parlamento”.
Mas, como também é óbvio, caso se confirme a prevista boa vontade do parlamento neste caso, dever-se-á a algo mais, a saber: ao conteúdo do NAF, especialmente na versão editada pelo senhor Cajado.
Saindo da votação para o mérito, Pochmann diz estar preocupado não apenas com a economia, mas com a “economia política”.
O que Pochmann quer dizer com isso?
A reposta está aqui: “esse tem sido o tom do presidente Lula, colocando a economia subordinada à política, desde a campanha passada. O tema da economia, que era preponderante antes, perdeu o sentido em relação aos aspectos de condução e articulação política”.
Traduzindo em linguagem direta, Pochmann diz ser “muito importante a aprovação dessas regras fiscais por um aspecto decisivo no enfrentamento da herança golpista que o presidente Lula assumiu”.
A saber: o NAF reduziria os pretextos para um impeachment.
Para chegar nessa conclusão, Pochmann passeia pelas medidas adotadas pelo governo Lula quanto a Petrobrás (“há muito a fazer no campo do petróleo e gás, mas … podemos perceber uma mudança”) e depois fala da lei do teto.
E o que ele nos fala a respeito do “teto”?
Que ela, a lei, não foi cumprida, nem por Temer, nem por Bolsonaro.
E agrega: “o ponto fundamental é que essa lei, na minha opinião, funcionava como um parlamentarismo sem partidos. Ou seja, saímos do presidencialismo de coalizão que marcou a Nova República para um período em que o poder parlamentar se tornou maior do que o poder executivo. Isso representou uma transformação profunda no papel do legislativo, com deputados e senadores se tornando cada vez mais gestores públicos, responsáveis pelo orçamento. Não apenas por meio de emendas, mas também pelo controle dos gastos, estabelecido pelo teto de gastos”.
Neste contexto, segundo Pochmann, Lula estaria fazendo “um movimento importante para se desvencilhar desse parlamentarismo sem partidos”.
O NAF seria, pois, um “desvencilhar”.
É uma interpretação interessante, sobre a qual só me ocorre perguntar: combinaram com os russos?
(Aliás, pergunta parecida poderia ser feita sobre outra interpretação, simétrica a esta, segundo a qual o NAF seria um movimento importante para o governo contornar a pressão de Bob Fields Neto a frente do Banco Central.)
Seja como for, quando fala da “economia política” da coisa, Pochmann está se referindo a política.
Mais adiante voltaremos ao tema da economia política propriamente dita, a saber, o impacto deste NAF sobre o padrão de desenvolvimento do Brasil.
No que toca a política estrito senso, segundo Pochmann, se o NAF for aprovado, “acredito que o governo fica mais distante de sofrer pedidos de impeachment relacionados a problemas fiscais, que foram a base do impeachment da presidente Dilma”.
Claro que isto é importante.
Mas é bom lembrar que os tais pretextos só tiveram aceitação porque havia um clima político e, na base desse clima político, estava a situação econômica e social, que por sua vez tinha relação – entre muitas outras coisas – com uma política econômica que não entregou aquilo que fora prometido nas eleições.
Moral da história: que é bom não dar sorte para o azar, concordo; mas fazer isto as custas de uma política fiscal que dificulta a execução de nosso programa, não me parece muito astuto, digamos assim.
Neste ponto da entrevista, Pochmann ressalta que “não sabemos como será aprovado, já que o relator apresentou um substitutivo”.
E agrega: “na minha opinião, o que o governo enviou ao parlamento é melhor do que o teto de gastos, mesmo que continuemos tendo um limite para os gastos. Isso não resolverá o problema da falta de crescimento do país nos últimos dez anos”.
Que o NAF é melhor do que o teto de gastos, estamos todos de acordo.
Que com o NAF continuaremos a ter um limite para os gastos, também estamos todos de acordo, mesmo que não concordemos com os limites propostos.
Mas a frase mais importante é: “Isso não resolverá o problema da falta de crescimento do país nos últimos dez anos”.
E aí vem a “economia política” propriamente dita.
Segundo Pochmann, a agenda “de crescimento, reindustrialização e economia para os próximos quatro anos” estaria sendo desenvolvida em outra esfera.
Qual?
A “atração de recursos externos”, “o uso de recursos públicos, considerando a grande reserva internacional que o Brasil possui” e “recursos internos que poderiam ser direcionados se tivéssemos taxas de juros mais baixas”.
Ou seja: no fundo, Pochmann parece elogiar o NAF, mas só parece. A opinião dele, se entendi direito, é mais ou menos a seguinte: isto não é nem tão bom, nem tão ruim quanto dizem; mas seguramente não é tão importante quanto parece.
Palavras de Pochmann: “acredito que a questão econômica, que tem chamado a atenção de muitos colegas, devido às restrições impostas pelo arcabouço fiscal, não será a principal alavanca para o crescimento econômico. Acredito que a retomada dos investimentos nesse novo tripé de investimento brasileiro, com investimentos externos articulados com investimentos público e privado nacionais, será a saída para a economia”.
Mas a pergunta que fica é: com as “restrições impostas pelo arcabouço fiscal” (leia-se, com as concessões feitas ao capital financeiro), teremos investimentos públicos em escala suficiente para atrair & combinar com os (supostos e desejados) investimentos externos e privados nacionais?
Penso que não.
E acho que no fundo Pochmann também pensa que não, pois para a “conta” fechar ele mobiliza mentalmente a “grande reserva internacional que o Brasil possui”.
O problema deste raciocínio não está no polêmico recurso às reservas internacionais, mas no fato de que Pochmann, como muita gente do PT, parece observar 2023 com os olhos de 2003.
Vejamos, por exemplo, o seguinte raciocínio: “durante o governo do presidente Lula, tanto no primeiro como no segundo mandato, enfrentamos uma forte austeridade fiscal, com superávits fiscais expressivos, e mesmo assim a economia continuou crescendo. Isso se deu, em parte, pelo ciclo de commodities e pelas exportações. Portanto, acredito que a solução para a economia virá por meio do investimento externo articulado com o investimento público e privado nacional, e não apenas pelas regras fiscais, que considero mais um componente de proteção contra riscos políticos, como um impeachment em um contexto parlamentar complexo”.
O “em parte” é, digamos, muito contido.
O ambiente internacional contribuiu e muito para o desempenho da economia brasileira, entre 2003 e 2016. Contribuiu tanto negativamente, quanto positivamente.
A pergunta que podemos fazer é: estamos hoje diante de um cenário similar? Ou, pelo menos, mesmo não sendo similar, estamos diante de um cenário que, feitas as contas, contribuirá virtuosamente para o crescimento econômico nacional?
Se a resposta for sim, Pochmann tem razão.
Mas se a resposta for não, a conclusão deve ser a de que precisaremos de muito mais investimento público do que naquela época.
E um dos problemas do NAF (na versão proposta pelo governo) é que ele contém (no sentido de segurar) os investimentos.
Nem falo do NAF-na-versão-do-relator, pois este é um teto de gastos disfarçado.
Aliás, Pochmann reconhece que “as pessoas e os estudiosos que chamam atenção para os problemas econômicos relacionados aos gastos têm suas razões”.
A pergunta é: haveria uma alternativa? Poderíamos ter um NAF menos austero?
A resposta de Pochmann pode ser depreendida do seguinte raciocínio: “do ponto de vista político, o presidente Lula adotou uma postura de não confronto com o legislativo. Ele poderia ter seguido a trajetória da presidente Dilma em seu segundo mandato, quando fez oposição ao que estava em curso no parlamento. O presidente Lula poderia ter seguido a trajetória do governo João Goulart, que propôs reformas interessantes e avançadas, mas não tinha base política e social”.
Ou seja, se entendi direito, Pochmann acha que a alternativa era ou ceder (NAF) ou ser golpeado, como Dilma e Goulart foram.
Para Pochmann, ceder e conviver com uma maioria parlamentar de direita não é um problema intransponível, não é “um impedimento para o avanço do país”; ao final o futuro radioso virá, “mas leva um pouco mais de tempo”.
Realmente, por esse caminho vai levar tempo. E uma pergunta é: temos este tempo?
Pochmann parece acreditar que sim e cita, em apoio a esta crença, uma série de ações e medidas positivas que o governo Lula adotou nestes primeiros meses: o “conselhão”, a “ampliação dos ministérios”, a “participação na elaboração do Plano Plurianual”, o “novo financiamento das entidades sindicais”.
Segundo Pochmann, isto faria parte de um movimento do governo, que estaria “buscando uma nova maioria e isso se assemelha ao que o governo de Juscelino Kubitschek fez na segunda metade dos anos 1950, quando não tinha maioria na câmara. Ele promoveu um projeto, o Plano de Metas, em articulação com a sociedade civil e a comunidade internacional”.
A comparação com JK é muito reveladora, por diversos motivos. 50 anos em 5. Capital estrangeiro. E, ao menos na memória idealizada de muita gente, uma época de grande otimismo.
Aliás, é nessa altura da entrevista que o próprio Pochmann alerta que sua “fala pode parecer otimista, mas baseio-me em fundamentos econômicos e políticos. Em termos econômicos, vejo que o esforço pelo arcabouço fiscal e pelo PPP (Plano Plurianual) pode levar o Brasil a retomar um crescimento em torno de 3% a 4% ao ano. No entanto, não acredito que isso ocorrerá já este ano, em 2023. A economia deve crescer menos que no ano passado”.
Ao chegar neste ponto, Pochmann diz que isso pode ser “comparável ao que aconteceu há cerca de vinte anos, em 2003, no início do governo do presidente Lula”.
E assim, de súbito, dos anos JK pulamos para o período em que Palocci dava as cartas.
Pochmann diz assim: “Naquele momento, enfrentamos a opção de elevar a taxa de juros e lidar com questões inflacionárias, além de implementar medidas de ajuste fiscal. Em 2002, a economia cresceu cerca de 3,9%, segundo o IBGE, e no primeiro ano do governo do presidente Lula, em 2003, cresceu 1,1%. Começamos o governo com um ritmo menor. No entanto, em 2004, quando ocorreram as eleições municipais, a economia cresceu mais de 5%, e o Partido dos Trabalhadores teve seu melhor desempenho eleitoral nas eleições municipais, apesar de ter perdido a prefeitura de São Paulo”.
Ops!
Essa história de que o PT teve seu melhor desempenho nas eleições municipais em 2004 é, digamos, algo controverso.
Para conhecer outro ponto de vista, sugiro ler o seguinte texto:
http://valterpomar.blogspot.com/2023/05/balanco-das-eleicoes-de-2004.html
Mas, textos a parte, sugiro principalmente lembrar do que ocorreu depois das eleições de 2004: perdemos a presidência do Congresso e começou a crise do mensalão.
Portanto, se é para comparar 2023 com 2003, façamos isso por completo e lembremos do conjunto da obra.
Alguém pode dizer: tranquilo, teve tudo isto de ruim, mas depois viramos a mesa em 2006.
Sim, é verdade.
Mas lembro a quem fizer este raciocínio que naquela época (2003-2005) enfrentávamos a oposição neoliberal tucana; hoje enfrentamos, além dos neoliberais gourmet, uma extrema direita muito forte nos setores populares.
Por isso, me preocupa muito a afirmação de Pochmann, segundo a qual “o crescimento econômico será menor em 2023”.
E me preocupa também a esperança de que o necessário “salto na infraestrutura” será dado em boa medida com investimentos externos.
Entre outras coisas, porque se fazer nosso futuro depender de investimentos externos é ruim em qualquer situação, na atual situação mundial é ruim demais.
Como alerta o próprio Pochmann, “é importante mencionar que estamos falando sobre hipóteses, pois não sabemos como a economia internacional irá se comportar, por exemplo”.
Cá entre nós, não é certo que tudo seja incerto: é possível prever sim como vai se comportar a “economia política” internacional no próximo período. A saber: alta turbulência.
No final de sua entrevista, perguntado, Pochmann lembrar que “a manutenção da taxa de juros em um patamar elevado implica, na verdade, em transferência de recursos para os credores em detrimento da atividade econômica em si”.
E neste momento apresenta, como também sua, a expectativa, já comentada e criticada antes, de que “as medidas adotadas pelo governo atual em relação ao Banco Central, como a aprovação de novas regras que sinalizam responsabilidade fiscal, podem influenciar uma possível alteração na trajetória dos juros”.
Podem. Como podemos também viver uma combinação de política monetária e política fiscais “austeras”.
O que não podemos, em nenhum caso, é deixar de enfrentar politicamente o tema dos juros e do BC, optando por uma política de apaziguamento (como é mesmo? algo assim: para evitares a guerra, escolhestes a desonra, mas terás a guerra e a desonra).
Da minha parte, me incluo entre os totalmente pedestres que entendem que teria sido “melhor o governo Lula ter oferecido uma proposta com um nível mais alto para então poder ser negociado e rebaixado”.
Mas não foi isso que fizemos.
Resultado: “quando se leva algo muito justo, as alterações podem ser perturbadoras”, “o substitutivo apresentado possui mudanças que podem complicar de certa maneira”, “é necessário aguardar o resultado final para uma avaliação mais definitiva”.
E assim termina a entrevista: vamos aguardar o resultado final.
E enquanto isso, como diria um amigo de Venâncio Aires, sigamos dando nó em pingo de água.
(*) Valter Pomar é professor e membro diretório nacional do PT