Por Valter Pomar (*)
(Abaixo segue a transcrição parcial do que foi dito na abertura de uma live do blog MANIFESTO PETISTA, no dia 1 de abril de 2021, com a participação de José Genoíno, Natália Bonavides e Rui Falcão, além deste que vos escreve.)
Há 57 anos, entre os dias 31 de março e 2 de abril de 1964, foi deposto o presidente João Goulart.
Os golpistas de 1964 tinham tentado algo parecido em 1954, contra o presidente Vargas.
Mas o suicídio de Vargas, sua Carta Testamento e a reação popular fizeram os golpistas recuarem por 10 anos.
Mas não desistiram.
Nova tentativa foi feita quando o presidente Jânio Quadros renunciou.
Mas a resistência popular, que teve seu ponto alto na Cadeia da Legalidade liderada pelo então governador gaúcho Leonel Brizola, fizeram os golpistas recuarem, embora o recuo tenha sido mútuo: o vice-presidente João Goular aceitou ser empossado, mas sob regime parlamentarista.
João Goular tinha sido o pivô da crise de 1954, quando ministro do Trabalho articulara um aumento de 100% no salário mínimo, aumento contra o qual se articulou o malfadado Manifesto dos Coroneis.
Getúlio demitiu o ministro, manteve o aumento e fez um histórico discurso no 1 de maio de 1954, que terminou assim:
“Há um direito de que ninguém vos pode privar, o direito do voto. E pelo voto podeis não só defender os vossos interesses como influir nos próprios destinos da nação. Como cidadãos, a vossa vontade pesará nas urnas. Como classe, podeis imprimir ao vosso sufrágio a força decisória do número. Constituís a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo.
A satisfação dos vossos reclamos, as oportunidades de trabalho, a segurança econômica para os vossos dias de infortúnio, o amparo às vossas famílias, a educação dos vossos filhos, o reconhecimento dos vossos direitos, tudo isso está ao alcance das vossas possibilidades. Não deveis esperar que os mais afortunados se compadeçam de vós, que sois os mais necessitados. Deveis apertar a mão da solidariedade, e não es- tender a mão à caridade.
Trabalhadores, meus amigos, com a consciência da vossa força, com a união das vossas vontades e com a justiça da vossa causa, nada vos poderá deter”.
A chegada de João Goulart ao governo, apesar de ser um latifundiário como Vargas, apesar de ser um conciliador, apesar de tudo, e a volta do presidencialismo, no plebiscito de 1963, acompanhada da decisão tomada por João Goulart, de realizar as reformas de base, foi a senha para que os golpistas acelerassem o passo.
Sabiam que pelo caminho eleitoral seria muito difícil, senão impossível, derrotar o trabalhismo e sua provável candidatura, a do agora deputado Leonel Brizola. Restavam dois caminhos: aceitar que o povo decisse ou dar um golpe de Estado.
E este foi o caminho adotado pela cúpula das forças armadas, com o apoio e incentivo do imperialismo estadounidense, do grande empresariado, do latifúndio, dos donos dos grandes jornais e rádios, da direita e extrema direita partidária e religiosa.
O golpismo era inevitável, o golpe talvez fosse inevitável, mas a vitória do golpe não era inevitável.
Mas para isso seria necessário que o governo, o PTB, os setores democráticos e mesmo a esquerda radical da época falassem menos e fizessem mais.
Rui poderá nos falar das ilusões e das crenças no esquema militar que supostamente impediria o golpe.
Cito aqui três episódios.
O primeiro deles envolve um aviador chamado Rui Moreira Lima, veterano de 94 missões de combate na Itália em 1944-45.
Rui Moreira Lima era comandante da Base Aérea de Santa Cruz.
Se recebesse ordem, ele estaria disposto a bombardear a coluna comandada pelo General Mourão, aquele que se auto-intitulava uma vaca fardada.
Mas como não veio ordem para fazer isso, ele se limitou a sobrevoar a coluna usando um jatinho desarmado.
Por duas vezes sobrevoou a coluna golpista, que se desmanchou apavorada.
De lá voltou a Santa Cruz e depois foi ao Santos Dumont, indo conversar com o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Botelho.
E o que disse o ministro: “que não daria ordens, daria sugestões, pois não tinha recebido ordens do presidente, que parecia não querer derramamento de sangue, estava evitando o confronto. A sugestão era que cada um ficasse no seu local, aguardar a nova ordem e passar o comando”.
Moreira Lima foi cassado no Ato Institucional número 1, de 9 de abril. Depois foi preso e processado.
O segundo episódio ocorreu na virada da noite de 1 para 2 de abril.
O presidente do Congresso convocou uma sessão conjunta para legalizar o golpe, com base numa afirmação 100% mentirosa, segundo a qual o presidente haveria abandonado o país, abandonado o governo, deixado a Nação acéfala etc.
A mentira era absolutamente patente, pois o próprio presidente do Congresso pede que se leia uma mensagem enviada pelo presidente através do Darcy Ribeiro, que informa que Goulart estave no Rio Grande do Sul para organizar a resistência.
Mesmo assim se aprova a vacância e se convocam eleições, onde será eleito presidente o general Humberto Castello Branco, com os votos de Ulysses Guimarães e de Juscelino Kubitscheck, ambos acreditando que os militares iriam se limitar a depor Jango e interditar Brizola, que as eleições de 1965 ocorreriam normalmente.
O que aconteceu, sabemos. Aliás, que coisa né: JK morreu num acidente suspeito, Ulysses e Severo Gomes morreram num acidente, João Goulart sofreu um ataque cardiáco que há quem diga foi estimulado.
Voltando a fatídica seção de 1 para 2 de abril, há um momento marcante, em que Tancredo Neves – que de radical não tinha nada – vendo aquela farsa dirigiu-se ao presidente da sessão e repetiu 3 vezes: canalhas, canalhas, canalhas.
Infelizmente, quem ouve o áudio da seção que estou relatando se assusta com o fato de estar em curso um golpe de Estado e o máximo que os defensores da legalidade fazem é pedir questões de ordem, vaiar e berrar.
Mais ou menos como hoje, quando muita gente parece achar que golpistas se enfrentam com notas, manifestos, tuites e lives.
O terceiro e último episódio que eu quero contar foi relatado por Wladimir Pomar.
Wladimir diz que em 1964 estava no Rio, conversava muito com o pessoal do Partidão nas oficinas da Leopoldina. E perguntava: “Como é que vocês vão fazer?” E a resposta era: “Nós vamos entrar em greve geral”. “Mas me diz uma coisa: vocês vão entrar em greve geral e depois vão vir para a rua, no centro? Como é que vai ser isso?”. E eles não sabiam, era um negócio assim, meio espontâneo. Mas eles sabiam que podia ocorrer um golpe, mas achavam que seria como quando o Jânio renunciou e quiseram impedir a posse do Jango, foi uma bruta mobilização no país todo. Um negócio de massa. Achavam que ia ser a mesma coisa. Mas precisava criar condições para a massona ir para a rua, e tinha que ter reforço militar também.
Mas quando o golpe aconteceu, não houve reação a altura. Por exemplo, o Wladimir conta que o comandante do Regimento de Cavalaria Mecanizada, carros de combate, e que estava sendo dirigido por um coronel do PC, não fez nada, porque estava “esperando a ordem do Jango”. O Teixeira, um dos principais comandantes da Força Aérea, também membro do PC, ficou esperando a rodem do Jango.
O Wladimir conta que no dia do golpe chegou a encontrar na rua com o Carlos Marighella, que disse a ele que teria proposto ao Teixeira “bombardear o Copacabana”. E a resposta foi que não, que não bombardeariam.
A triste verdade foi que os golpistas ficaram espantados com a falta de resistência do lado de cá. Eles tanto achavam que haveria resistência, que articularam a famosa Brother Sam, mas não foi necessário.
Hoje, tantos anos depois, sem prejuízo de muitos outros debates, eu queria destacar isso: não ter ilusões, inclusive não se iludir sobre nossas próprias forças.
Hoje, diferente daquela época, não existe no comando das forças armadas nenhum setor realmente democrático, muito menos de esquerda.
Talvez, paradoxalmente, isto nos ajude a não ter ilusões, a não terceirizar para ninguém a tarefa que é só das classes trabalhadoras. Por exemplo a de derrotar este governo militar bizarro que hoje desgoverna nosso país.
(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT