Michel Temer afirma que eventual prisão de Bolsonaro “não é útil ao país”. Como assim?
Por Paulo Sérgio de Proença (*)
Em entrevista à Revista Veja, publicada em 1º. de setembro passado[1], o ex-presidente Michel Temer fez declarações estarrecedoras, o que não surpreende, considerada a sua trajetória golpista (para dizer o mínimo).
Ele abonou a usurpação e a venda de presentes recebidos por presidentes em exercício. Soltou esta joia: “Não digo se convém (a prisão) ou não [a prisão preventiva]. Eu não acho útil. Ao prender um ex-presidente, em vez de produzir efeitos negativos (sic!), você o vitimiza”.
Ao topar com esse trecho, cocei os olhos, apertei a vista, belisquei-me, reli, tresli: estava tudo ali; apertei a casca das palavras e das ideias, para encontrar a lógica da combinação, sem sucesso. Cheguei a esta, que deixo ao reparo de eventuais leitores: golpista protege golpista. Será só isso?
Não se pode prender mais um ladrão de alta patente? Somente os ladrões de galinha merecem tal deferência? Essa lógica sempre prevaleceu por aqui, não se estranha.
Ter exercido a presidência é prerrogativa se livrar do império da Lei? É elevar qualquer cidadão acima do bem e do mal? Não é útil para o país prender um ex-presidente, comprovadamente criminoso?
O algoz de Dilma Roussef acrescenta, com o maior descaramento: “deveria haver uma legislação que previsse um tratamento adequado à figura do ex-presidente”. O cidadão comum não merece isso, Sr. Temer? Qual é o tratamento adequado para um ladrão de joias, um dilapidador do patrimônio público, um assassino, um genocida, um golpista, um…? Me… medalha de honra ao mérito?
O Sr. Temer foi um golpista de primeira hora, um traidor. Ele divulgou discurso de posse antes mesmo da votação do impeachment de Dilma Roussef, confirmando, assim, o papel de fiador do golpe, figura de confiança das forças que comandam a política.
Temer foi herdeiro direto do golpe de 2016, cujas imediatas consequências, em termos eleitorais, foi a ascensão do outro criminoso, o genocida: ambos são representantes diretos da extrema direita.
Na entrevista, Temer, perguntado se o impeachment foi golpe, responde “se foi golpe, foi de sorte”. Desfaçatez pura: sorte para quem?
Basta verificar os beneficiários do governo-tampão que, apesar de curta duração, provocou efeitos longevos para os socialmente menos favorecidos.
Seu governo foi corrupto. Temer comprou apoio político, conforme indica áudio em que teria recomendado ao empresário Joesley Batista a compra do silêncio de Eduardo Cunha, que estaria recebendo propina na prisão. Temer: “Tem que manter isso”[2].
Essa estratégia talvez tenha alguma relação com a aprovação da reforma trabalhista, sempre desejada por patrões. Sob o discurso de modernização, o que ocorreu foi subtração de direitos, enfraquecimento dos sindicatos, exposição à sanha dos interesses patronais, informalidade e falta de proteção legal: uberização das relações de trabalho.
O teto de gastos, logo adotado por Temer, com apoio do Congresso, foi outra concessão aos donatários da pátria. Essa medida drástica, impiedosa, atingiu tão somente áreas sociais, com prejuízo às camadas menos favorecidas. Os pobres pagaram o pato.
A reforma do ensino médio ceifou sonhos; deixou de exigir diploma pedagógico para a docência e excluiu indispensáveis conteúdos para a formação de pensamento crítico, como Filosofia e Sociologia. Desestimula-se, assim, a progressão, com foco na formação técnica, que se torna o estágio terminal de estudantes pobres, pois a universidade deveria ser para poucos[3].
Pobres, trabalhadores, estudantes. Esses foram os mais atingidos com as reformas de Temer e de seu sucessor, ambos executores de política de violência e de exclusão.
Com sua forma afetada de ser e de falar, Temer foi eminência parda da política brasileira; sua fala mansa e mole, recheada de mesóclises elitistas arcaicas, esconde venenos. Ele é conivente com as forças de morte da política brasileira, engastadas na tradição direitista-escravocrata brasileira, requentada pela violência extremista atual.
Não é estranho que ele ressurja agora, relativizando padrões de referência ética, na tentativa de arrefecer anseios de aplicação da justiça, se a ela se pode recorrer, ainda.
Defender criminoso, como o inominável, é compromisso de classe, de gênero, de raça. É o pior tipo de bandidagem.
Ideias do ex-vice-presidente golpista são destacadas e ampliadas pela mídia, testa de ferro de forças que sempre patrocinam bandidos no exercício do poder.
O silêncio de Temer seria muito útil ao país.
(*) Paulo Sérgio de Proença é professor da Unilab-BA
[1] https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/prisao-de-bolsonaro-nao-seria-util-para-o-pais-diz-temer.
[2] https://exame.com/brasil/dono-da-jbs-gravou-temer-em-conversa-comprometedora-diz-jornal/.
[3] https://www.brasildefato.com.br/2021/08/17/artigo-universidade-para-poucos-o-ministro-da-educacao-e-o-preconceito-de-classe.