Por Erika Morhy (*)
Uma ligação telefônica da fazenda vizinha foi a justificativa para policiais militares matarem indígena (Foto de Sarah Souza/Assessoria Dep. Bordalo)
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Belém (PA) – Um único telefonema do filho do fazendeiro Nedio Lopes Sales Santos, informando possível roubo de gado na Fazenda Boa Vista, em Capitão Poço, no nordeste do Pará, foi o que bastou para a desastrosa operação de policiais militares, que resultou na execução do jovem indígena Isac Tembé, de 24 anos. Professor de História, Isac Tembé vivia na Terra Indígena Alto Rio Guamá (Tiarg) e tinha ido caçar com outros indígenas, na noite do último dia 12 de fevereiro, quando foi morto com um tiro no peito. Desde o chamado telefônico, uma sucessão de erros e descumprimento de normas se sucedeu e agora está sistematizada no relatório da Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (CDHDC-Alepa), apresentado na manhã desta quinta-feira (25), em Belém.
“A única justificativa que aparece é um telefonema do filho do dono da fazenda, dizendo que estavam roubando gado. Foi isso que fundamentou esta ação tão desproporcional e agressiva? Parece até que o deslocamento deste comboio não era para prender ninguém. Que motivações tinham para seu deslocamento com armas tão pesadas?”, indagou o deputado Carlos Bordalo (PT), presidente da comissão. “Não podemos acusar o fazendeiro, mas há o filho do fazendeiro envolvido, há o capataz do fazendeiro envolvido. Sugerimos que este elemento do contexto precisa ser levado em conta. E o contexto da pressão sobre a reserva indica isso. E até o conflito que há pela área de amortecimento, objeto de disputa antiga”, analisa.
A apresentação do relatório confirma uma série de denúncias que a Associação Tembé das aldeias Tawari e Zawaruhu, do povo Tembé-Tenetehara, tem feito desde o crime. De acordo com o documento, os policiais militares envolvidos descumpriram, deliberadamente, regras fundamentais de conduta quanto à preservação da cena dos fatos, sobretudo quanto à Instrução Normativa 001/2013. A audiência ocorreu no auditório João Batista, da Alepa, dando um desfecho para a diligência realizada pela comissão no último dia 16, na aldeia São Pedro, dentro da Terra Indígena Alto Rio Guamá.
Por obrigação, os agentes de segurança pública teriam de “comunicar o fato ao Centro Integrado de Operações (CIOP); providenciar o isolamento e preservação do local do fato e acionar a perícia científica; assegurar a não remoção de vítimas fatais, preservando suas vestes; acionar o atendimento médico de urgência e emergência; prestar todas as informações às autoridades de Polícia Judiciária competente, fornecendo dados indispensáveis à elucidação da ocorrência; e confeccionar Relatório Circunstanciado, no qual conste a justificativa fundamentada, para o exercício do uso da força ou arma de fogo sobre o fato que tenha resultado em lesão corporal ou letalidade”.
Nenhuma dessas regras foi cumprida pelos policiais que atenderam ao chamado de Francisco Nédio Lopes Sales, filho do fazendeiro, conforme descreve o relatório de 28 páginas elaborado pela Comissão de Direitos Humanos e como já havia sugerido, em nota, a própria Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup).
PMs demoraram 3 horas para apresentar o corpo
Um outro ponto crítico apontado no relatório coloca mais dúvidas em relação à conduta dos policiais militares. Há uma divergência temporal entre o horário do fato relatado pelos policiais no inquérito, às 19 horas, e a chegada dos agentes com a vítima na unidade de saúde, às 22h53, já sem pulso ou sinais vitais. Esse aspecto já havia sido questionado anteriormente pelo advogado Marco Apolo Santana Leão, coordenador geral da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), entidade responsável pela defesa da família de Isac Tembé.
“Esta área do evento para a cidade tem uma distância que eu percorri com o carro em 20 minutos. Onde estavam os policiais e Isac nesse período inteiro? Se era para socorrer a vítima, foi socorrida onde? Onde estava Isac nas quase 3 horas que separam o registro do horário do evento para sua chegada na unidade de saúde? Só as investigações poderão responder definitivamente essa pergunta”, sentenciou Bordalo.
O parlamentar foi relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Milícias do Pará e confirmou, em 30 de janeiro de 2015, a existência de grupos de extermínio integrados por policiais na área urbana da Região Metropolitana de Belém e das cidades de Marabá e Igarapé-Miri. Bordalo lembra que o então relatório alertava para a interiorização de práticas milicianas, mas que o governo não reconheceu a gravidade do fenômeno. Destaca ainda ações de desmonte dos grupos de extermínio a partir de 2019, citando casos na região de Parauapebas, Mãe do Rio e Bragança. “A violência que é usada nos últimos tempos na região, essa falta de procedimentos, é indicativo de que algo está cheirando mal na região de Capitão Poço, Garrafão do Norte, Nova Esperança do Piriá”, alerta.
O documento, denominado “Relatório e recomendações – Caso Isac Tembé”, elenca 13 questionamentos a serem respondidos pelo Sistema de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Sieds) e descreve recomendações e proposições aos ministérios públicos Estadual e Federal, à Segup e às polícias Civil e Militar.
Os Tembé relatam conflitos
Uma comitiva de dez indígenas da Terra Indígena Alto Rio Guamá esteve na capital do Estado para acompanhar a apresentação do relatório, incluindo lideranças, familiares e jovens do grupo Kamarar Wá, do qual Isac Tembé fazia parte. Wendel Tembé avalia que “se não houvesse essa comissão [de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Alepa], ia ficar por isso mesmo”, dadas as reiteradas violações e mesmo denúncias que vêm sendo feitas pelo povo Tembé sem que haja resposta do poder público.
A liderança indígena Wendel Tembé, integrante da comitiva da Tiarg até Belém, reforçou a denúncia, descrita no relatório da CDHDC-Alepa, de que foram impossibilitados de fazer o boletim de ocorrência na Delegacia de Polícia de Capitão Poço, na noite do crime. “Não foi essa a única vez. Vários fatos que ocorrem na Terra Indígena e com indígena, a gente sempre é negado fazer denúncia e fazer o BO. A gente procura Capitão Poço, Capitão Poço não atende. Garrafão [do Norte] não atende, Santa Luzia do Pará não atende. Dizem que todo fato tem que ser direcionado à Polícia Federal. Mas como é que, para incriminar o indígena, qualquer delegacia atende?”.
Valber Tembé, presente na audiência com a comitiva de indígenas, disse confiar no Ministério Público Federal (MPF) e desejar “que eles sejam rápidos com resposta pra nós, porque esperamos que a justiça seja feita. Não queremos fazer justiça com nossas próprias mãos”. Acrescenta ainda que “a Funai nos informou, através de notas, que, muito em breve, ia tá saindo a desintrusão da Terra Indígena do Alto Rio Guamá, mas não informou data, prazo, nem apresentou projeto de desintrusão”.
A Tiarg foi homologada em 1993, passou por uma série de conflitos e retirada de parte dos invasores, mas aguarda até hoje o fim da desintrusão. “Mais de 400 famílias se estabeleceram em nossa terra, fazendo campo de pastagem, jogando agrotóxico dentro da Terra Indígena, roubando madeira, açaí, alimento, caça. A gente sempre recorrendo à Justiça, nunca derramou sangue dos invasores”, explicou Wendel Tembé, do alto da tribuna do auditório.
Corregedor elogia relatório
O corregedor-geral da Polícia Civil do Estado, Raimundo Benassuly Maués Junior, acompanhou a apresentação pública, na companhia do diretor da Divisão de Crimes Funcionais, João Ricardo Inácio. “O relatório está muito preciso em alguns questionamentos. Há uma análise técnica e jurídica das condutas que foram praticadas ali, observação de algumas diligências necessárias de serem revisadas e complementadas. Nós vamos levar em consideração o relatório e já estamos em contato, através da Divisão de Crimes Funcionais, com a Perícia Técnica. Tem que haver esse diálogo, para que possamos traçar uma linha de investigação mais precisa”, informou.
No dia 15 de fevereiro, a Corregedoria da Polícia Militar abriu um Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar as circunstâncias do fato. Os policiais militares envolvidos na morte de Isac Tembé foram ouvidos pela Polícia Civil. Em nota a Segup diz que “os armamentos envolvidos na ação, dos militares e o encontrado no local, foram apreendidos e encaminhados para perícia”.
Visita do MPF à aldeia São Pedro
O MPF visitou a aldeia São Pedro, na Tiarg, em 22 de fevereiro. Essa era uma das principais presenças solicitadas pela Associação Tembé das aldeias Tawari e Zawaruhu depois do assassinato de Isac Tembé. Na ocasião, lideranças e familiares do jovem cobraram do procurador da República, Milton de Souza Júnior, que a Justiça Federal assuma as investigações.
No dia 13, o MPF oficiou pedido de informações às polícias Federal, Civil e Militar e à Funai, com prazo de três dias para as respostas. O procurador sugeriu que a Universidade Federal do Pará (UFPA) possa auxiliar na elaboração do laudo antropológico na área onde Isac Tembé pode ter sido assassinado, identificando ser “uma região de reserva e não uma fazenda do particular Nedio Lopes”, pontua a associação, em nota.
Antes da ida do MPF à TI, a deputada federal Vivi Reis (Psol-PA) foi até a aldeia prestar solidariedade aos indígenas. O coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Pará, Padre Paulo Joanil da Silva, o Padre Paulinho, realizou missa em memória de Isac Tembé. O professor foi enterrado no domingo (14), dentro dos costumes tradicionais do seu povo.
Também chegou à frente do MPF a diligência da Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), que contou com a presença da ouvidora do Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social (Sieds); a advogada Maria Cristina Fonseca de Carvalho; de assessores da deputada Marinor Brito (Psol), membro titular da comissão, os advogados Jean Brito e Antônio Carlos Jr; do coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Norte 2, Claudemir Monteiro; e de integrantes da Coordenação Técnica Local de Belém da Funai.
Durante todo o dia 16, os trabalhos foram conduzidos pelo presidente da comissão, deputado Carlos Bordalo (PT), que acompanhou o protesto dos indígenas diante da delegacia da cidade e visitou a área apontada como provável local da execução.
Àquela altura, o Cimi havia emitido nota de solidariedade ao povo Tembé Tenetehara, ressaltando que “a ação da Polícia está em desconformidade com seu papel, uma vez que não é função da PM fazer vigilância de propriedades particulares, nem agir com violência indevida contra qualquer cidadão”. O documento destaca ser “oportuno lembrar que a morte de mais este jovem indígena soma-se às mortes de outros 16 jovens que vêm acontecendo no município de Capitão Poço desde 2019. Exigimos a imediata investigação deste e de outros casos que ficaram na impunidade e o desbaratamento dessa quadrilha criminosa que mata jovens e dilacera as famílias do município de Capitão Poço”.
TI é alvo constante de invasores
No documento, o Cimi reafirma a histórica dificuldade dos Tembé em ter o domínio sobre o próprio território, conforme igualmente está expresso no Plano de Gestão Terra Indígena Alto Rio Guamá (PGTA-TIARG), publicado pela Equipe de Conservação da Amazônia (Ecam), em 2018. “O povo Tembé sofreu e ainda sofre com a presença de invasores em seu território. Colonos, fazendeiros, traficantes, madeireiros, caçador e pescador ilegais estão entre esses invasores”, indica o documento.
E esse domínio é dificultado mesmo sendo o território já demarcado. “A garantia de direito e uso da terra está entre as principais demandas das populações indígenas. Não apenas para demarcar os seus territórios, mas também para ter o domínio, de fato, sobre eles. Esse é um grande problema enfrentado pelo Povo Tembé: mesmo tendo o seu território demarcado por lei, ainda sofre com constantes invasões”.
A publicação cita que a Terra Indígena Alto Rio Guamá (Tiarg), com uma área de aproximadamente 279.000,00 hectares, no nordeste do Pará, está entre as 10 áreas protegidas em situação crítica em nível de desmatamento, referindo-se a informações do Imazon relativas ao ano de 2012. “Além da importância ambiental, a conservação das áreas florestais na Tiarg é que garante que os Tembé possam viver do seu jeito, hoje e no futuro”, ressalta. Entre a margem direita do rio Guamá e a margem esquerda do rio Gurupi, limite do Pará com o Maranhão, nos municípios de Santa Luzia do Pará, Nova Esperança do Piriá e Paragominas, vivem 1.727 indígenas dos povos Awa Guajá, Ka´apor e Tembé-Tenetehara.
(*) Erika Morhy é paraense, graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, e bacharel em Psicologia. Atuou como assessora de comunicação em instituições de ensino e pesquisa na Amazônia, como Universidade Federal do Pará (UFPA) e Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), e organizações não-governamentais, como a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH). Assinou reportagens em veículos de circulação nacional, como correspondente na Argentina, a exemplo da Rede Brasil Atual e Caros Amigos, além de ter colaborado com agências de notícias alinhadas aos direitos humanos, como a Carta Maior.