Por Valter Pomar (*)
Recomendo a leitura do texto publicado na Carta Capital deste domingo, 23 de junho de 2024, intitulado “Os petroleiros de Lula”.
O texto pode ser lido aqui: Os petroleiros de Lula – Opinião – CartaCapital
Os autores são Sidney Jard, Salomão Ximenes e Francisco Comaru, professores da Universidade Federal do ABC (UFABC). Além de colegas de trabalho, são também companheiros de luta.
Aliás, salvo engano de minha parte, adotamos a mesma ou muito parecida posição nas três assembleias e nas duas votações em urna realizadas pelos docentes da UFABC.
Portanto, o que vem a seguir é um exemplo das “contradições (de ponto de vista) no seio do povo”, para citar o famoso chinês.
O ponto de partida do texto de Jard, Ximenes e Comaru é a suposta semelhança entre a greve dos petroleiros e a greve da educação pública federal, nos governos de FHC e de Lula, respectivamente.
No primeiro caso, “a concessão de aumento salarial para os petroleiros poderia abrir caminho para um ciclo de greves que colocaria em xeque a política de estabilização monetária do governo FHC”. No segundo caso, “para que a política do déficit zero seja vitoriosa o sindicalismo do setor público precisa ser derrotado”.
As semelhanças existem? Claro.
Por exemplo: tanto num caso, quanto noutro caso, a aliança entre capital financeiro e agronegócio impõe ao país soluções que prejudicam a maioria do povo, com efeitos dramáticos contra o bem-estar social, contra as liberdades democráticas, contra a soberania nacional, contra o desenvolvimento.
Mas o diabo mora nas diferenças. E para não tomar tempo dos leitores com digressões teóricas sobre o papel da analogia na história, nem com um relato acerca das muitas diferenças entre a maneira como foram tratados os petroleiros de 1995 e os atuais grevistas, resumo assim o problema: se a conclusão for a de que o governo Lula deve ser visto e tratado como vimos e tratamos o governo FHC, o que virá pela frente nos fará sentir saudades do presente.
Verdade seja dita, o texto que estamos comentando não tira esta conclusão que eu critico. Aliás, não diz o que devemos fazer.
Nesse sentido, o texto está mais para uma denúncia, em alguns momentos em tom de lamento furioso; portanto, dele não devemos cobrar uma proposta de ação.
Eu compreendo quem adota esta embocadura, mas não compartilho dela.
Primeiro, porque sou adepto da famosa tese onze. Segundo, porque não esperava atitude muito diferente da parte do governo, frente à greve.
No atacado, o que está acontecendo foi escrito nas estrelas quando se decidiu que Alckmin seria vice de Lula. Ali foi feita uma opção de médio prazo, confirmada posteriormente no debate programático, na tática do segundo turno, na composição do governo, na maneira como se reagiu à intentona golpista de 8 de janeiro, na postura frente aos parlamentaristas do centrão, no debate sobre o “novo marco fiscal” e em inúmeras outras ocasiões.
Em todos estes casos citados, adotou-se como medida do possível a correlação de forças institucional. E desconsiderou-se, na prática embora não no discurso, o papel da pressão social direta. Por isto mesmo, se lida erradamente com quem não adota esta partitura.
Portanto, do meu ponto de vista, para que o governo Lula adotasse outra posição frente a greve da educação federal, seria necessário um movimento muito forte, com muito respaldo na sociedade, que obrigasse o governo a fazer algo diferente, que o obrigasse a enfrentar o capital financeiro e seus representantes, alguns dos quais fora e outros dentro do governo.
Foi nesta perspectiva que apoiamos desde o início a greve, que lutamos exitosamente por sua manutenção e ampliação. E foi também por conta daquela perspectiva que, quando percebemos que a greve havia “batido no teto” em termos de mobilização, apoiamos o recuo.
Claro que quem tinha expectativa de que o governo agisse diferente, se decepcionou muito e com razão. E tem todo o direito de meter bronca. Mas, ao fazer isso, devemos tomar o cuidado de construir uma avaliação correta, que nos permita construir vitórias futuras, não futuras derrotas.
Por isso, não concordo com a seguinte avaliação: “(…) a natureza do novo governo Lula se revela: se Lula 1 e 2 foram ‘governos de coalizão’, no sentido de articular uma gama de interesses conflitantes para governar; Lula 3 é o ‘governo da coalizão’, no sentido de ter sido capturado pelos próprios interesses conflitantes que pretendia coordenar”.
Este raciocínio está errado, em primeiro lugar, por esquecer da política nefasta do Antonio Palocci. Os dois primeiros anos do governo Lula 1 transcorreram sob a hegemonia do superávit primário. Naquela ocasião, muita gente achou que estava tudo dado, que a “natureza” do governo havia sido definida etc. Houve rupturas no PT, o PSOL foi criado, tivemos a derrota eleitoral de 2004, a crise de 2005.
E o que veio em 2006? Uma inflexão tão grande, que como já dissemos fez muita gente esquecer que Palocci existiu. Foi em 2006, antes mesmo da eleição presidencial, que começou o governo Lula 2. Foi só aí, três anos depois da vitória eleitoral, que começou a ser aplicado o programa de governo escrito por Celso Daniel e aprovado no congresso do PT realizado em Olinda (PE), no final de 2001, um ano antes da vitória eleitoral.
Desta experiência, concluo que certas análises sobre a “natureza” do governo foram, no passado, muito apressadas, muito impressionistas.
A rigor, os dois primeiros anos do governo Lula 3 lembram os dois primeiros anos do governo Lula 1. Dito de outro jeito: os governos Lula 1, Lula 2 e Lula 3 são todos de coalizão; todos são governos em disputa; no momento, o capital financeiro, o agronegócio e seus representantes estão vencendo a disputa. Mas, como naquele momento, o jogo não está jogado.
Tanto isto é verdade que Jard, Ximenes, Comaru e este que vos escreve apoiamos Boulos para prefeito de São Paulo capital. E todos sabemos que a vitória de Boulos passa por Lula e por seu governo. Talvez por isso, corretamente aliás, Boulos esteja hoje tão discreto em certas polêmicas em que fora, antes, tão loquaz.
Alguém imagina situação parecida com essa, durante o governo FHC? Alguém acha que se o governo Lula fosse “da coalizão”, Lula estaria tão empenhado na vitória de Boulos?
Isto posto, quero terminar enfatizando que concordo com o alerta feito pelos autores: a postura do governo na negociação com a greve das universidades é (mais) um sinal da força do capital financeiro e de seus representantes. E se isso não mudar, o governo Lula terminará derrotado. Derrotado não pela esquerda, como foi o governo FHC, mas pela direita.
Para evitar isso, é essencial que haja mobilização social cum muita disputa política e ideológica pública. Isso faltou no passado recente.
Por exemplo: em 2022, quando estava sendo discutida a política de alianças e o programa de governo de Lula, poucos foram os que se dispuseram a questionar as opções feitas. No caso do Diretório Nacional do PT, fomos 13 em 94 os que votamos contra entregar a vice para Alckmin. No encontro do Partido, repetiu-se a situação. No debate do programa, tanto no PT quanto em partidos supostamente à esquerda do PT, as posições críticas tiveram pouco apoio.
Hoje a situação mudou. Setores muito mais amplos percebem que é preciso mudar de política. E a pressão nesse sentido é muito bem-vinda, indispensável, urgente. Mas não vamos nos deixar enganar pelas aparências. Lula não é FHC, o PT não é o PSDB e – mais importante que tudo – não vamos nos esquecer que o neoliberalismo tem dois braços e um deles usa a suástica.
Não podemos, por medo da extrema-direita, contemporizar no combate ao neoliberalismo, até porque é o neoliberalismo que alimenta a extrema-direita. Nem podemos, em nome de questionar as concessões feitas pelo governo ao neoliberalismo, tratar Lula como se ele fosse FHC. Neste sentido, seja pelas razões da Pimentinha, seja pelas razões do Mouro, vamos sempre lembrar que aparências enganam. As vezes, pelo menos…
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT