Por Fausto Antonio (*)
Na epigrafia do mistério; o subentendido.
O diabo disse Adeus garfo. Disse a Deus tudo; a Deus nada.
Saíra da igreja, na Avenida João Jorge, no horário de sempre. Mas era carnaval em Campinas. Ouviu a voz da consciência, que era um trampolim para o quê a mãe dissera e ela respondera. Carnaval é carnaval; vou ao culto. A mãe, que não era de igrejas, calou. Balbuciou apenas. Vai? Vou! As correntes se soltaram. Saiu. Até aí as memórias estavam contidas na realidade. A rigor, eram contos contidos. Faz sentido; pois, no momento seguinte, divisou, com os olhos embaçados, o azul e o corpo negro do Afoxé Ylê Ogum.
Quando o som do canto e dos atabaques chegou ao seu ouvido, ela, que a mãe chamava de “crentinha fresca”, entrou no cortejo. Não viu mais nada. Quando voltou, era manhã de carnaval. A cabeça rodava intensa e inversamente. Era a volta ao chão, ao corpo das coisas e ao corpo das faltas. E as minhas sandálias? A resposta era o vazio; um túnel longo, que depois de revisitado se abria em outros. O túnel se abria como uma boca insaciável; o perigo era o prazer de mastigar e engolir algo que não saciava a fome. Assim, com o túnel e a fome, ela refez, com passos medidos e olhos abertos, o trajeto do cortejo carnavalesco.
Ao fixar os olhos nas casas antigas da Sales de Oliveira, rua tradicional do cortejo transitado pelo Afoxé Ylê Ogum, o sol sinalizava que a manhã avançava. A cabeça não rodava mais; o que a afrontava, em giros mentais, era a razão. Não é possível. Girou sobre o próprio corpo; os olhos rodavam e voltavam vazios. Vou embora, decidiu. Vou embora como estou. Antes, então, divisou o chafariz da Praça Castro Mendes e se aproximou. Minhas sandálias! Elas repousavam lindamente no fundo das águas que marejavam em circular turbilhão pelo chafariz. As águas, esguinchadas pela boca do dragão, salpicavam estrelas que se multiplicavam aos seus olhos abertos e fixos nas sandálias, uma espécie de esquecimento. No entanto, quando se pega com a boca a fome sem o fruto, provavelmente a fome volta para comer a própria fome. Mas o que é a fome senão o próprio corpo ou a vida?
A sua mãe poria tudo nestes termos; a fome come a carne de desejos, e noutros, que uma velha e sábia negra come para aprender e ensinar. Sair e chegar são fomes ou a boca que delas se serve? No ato de partir para casa, depois da saga para encontrar as sandálias, a crentinha foi célere e feliz. Seria a felicidade absoluta? Ela ouviu da voz do silêncio a lição das compensações e dos limites. “A sandália de que você necessita ser-lhe-á dada por outras faltas”. Sendo o que era, segundo a mãe, crentinha daquela natureza. Desdenhou do dito; gritava nela a palavra falsa. Seguiu! Diante do portão riu, afinal estava composta. A despeito do horário, não chegou, era o que ainda supunha, descoberta.
O tempo ela apagara com um passeio pelo jardim do paraíso; são as delícias do esquecimento ou daquele túnel encantado. Abriu o portão , respirou fundo e entrou confiante, apesar do horário e do desconhecido passeio pelo cortejo. Ela passeou pelas ondas e bocas e, talvez, tivesse sido passeada. O túnel e o mistério se abrem e fecham novas entradas e saídas. Não é fácil apagar, no tempo ou no sem -tempo, uma ensolarada manhã de carnaval. Para quem saíra para o culto noturno; sim, voltar na manhã, amalgamada pela festa de rua, era uma eternidade. Mesmo assim, a mãe não disse nada.
A crentinha passou e, só então, a mãe reparara que a filha estava com uma redinha no cabelo. As carapinhas estavam presas e a redinha era vermelha. Ela não percebera. A mãe, com os olhos espichados, indagou meio rindo: você pulou carnaval? A crentinha não disse nada, deu um sorriso maroto. A mãe foi ao ponto. É bom você tirar a fantasia. No quarto, ao tirar a roupa, a certeza. Ela ostentava na cabeça, na forma de redinha, a própria calcinha vermelha. Não ficou nem mais preta ou mais santa; riu pelo canto da boca. No ato de retirar o adereço da cabeça, uma espécie de retorno e desfecho do vivido, ela ouviu o próprio dragão interno enlaçado com aquele que esguinchava palavras. “A sandália de que você necessita ser-lhe-á dada por outras faltas”. Assim, a peça vermelha voltou para o devido lugar. Ela, uma santa, riu. Era mesmo manhã de carnaval.
(*) Fausto Antonio é escritor, poeta, dramaturgo e professor da Unilab- Bahia