Por Valter Pomar (*)
Marilena Chauí
O sítio www.aterraeredonda.com.br divulgou, no dia 4 de abril de 2020, um artigo da professora Marilena Chauí.
Intitulado “Quem sabe faz a hora”, o artigo traz as “considerações” de Chauí sobre o Manifesto “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro”.
O Manifesto foi publicado no dia 30 de março, assinado por Haddad, Ciro e Boulos, por presidentes de partidos e por outras lideranças, mas não por Lula.
Segundo Chauí, o Manifesto é “uma convocação para agirmos no momento oportuno”.
Nisto estou de acordo: é preciso agir, já, imediatamente. Tanto com propostas e ações para defender a saúde, a renda, o salário e o emprego, quanto com propostas e ações para superar em favor do povo a crise política.
Chauí diz que o Manifesto acerta em propor uma frente nacional “contra a irresponsabilidade criminosa de incitação ao homicídio feita por Bolsonaro ao se opor ao isolamento social” e, também, contra sua “demora em tomar providências mínimas para assegurar a vida de milhões de brasileiros, procrastinando a liberação de recursos com querelas sobre MPs e decretos”.
Nisto estou parcialmente de acordo, pois faço a seguinte ressalva: parte dos que criticam a política sanitária de Bolsonaro, apoiam sua política econômico-social. Este sutil detalhe precisa ser lembrado, por exemplo, pelos que elogiam Dória e Mandetta. E pelos que defendem uma frente ampla, geral e irrestrita.
Chauí diz, finalmente, que “o Manifesto acerta ao propor a renúncia de Bolsonaro e não seu impeachment”.
Nisto estou em total desacordo.
A renúncia depende da iniciativa pessoal do cavernícola. E, se acontecer, desembocará na posse de Mourão. Como de pai para filho, a coroa passará para o vice, “antes que outro aventureiro” a pegue para si. O “aventureiro” que eles querem evitar, no caso, é o povo e quem mais o simboliza.
Neste sentido, a renúncia constitui, hoje, o caminho mais simples e rápido para resolver a crise entre eles, sem o povo. E contra o povo, salvo para os que têm alguma dúvida sobre qual seria a política de um eventual governo Mourão.
Claro, em outras condições, a renúncia poderia assumir outro sentido. Por exemplo, se estivesse em curso uma mobilização ao estilo do Chile. Neste caso, a renúncia de Bolsonaro poderia ser a primeira peça do dominó. Mas nas circunstâncias atuais, neste domingo 5 de abril de 2020, a renúncia está sendo articulada como a substituição de uma peça defeituosa, em benefício dos que controlam o jogo.
Chamo a atenção para a declaração — que até agora eu não vi ser desmentida — do governador Flavio Dino acerca de Mourão assumir até 2022.
Vale dizer: não sou entusiasta do impeachment. Óbvio que o cavernícola cometeu inúmeros crimes de responsabilidade. Motivo pelo qual, se um impeachment fosse a voto, eu recomendaria votar a favor. Mas, de maneira semelhante à renúncia, o impeachment não é a solução institucional mais favorável aos interesses populares, pois desembocaria num governo Mourão.
(A respeito do que fazer, ler o editorial do jornal Página 13 em https://pagina13.org.br/pagina-13-n-210-abril-de-2020/)
O argumento de Marilena contra o impeachment, como está implícito, é diametralmente oposto ao meu.
Marilena diz que o impeachment “acrescentaria à crise atual mais uma crise (longa e de resultado imprevisível) que abriria espaço para divergências e lutas num momento em que a sociedade brasileira clama por clareza de objetivos e de ações”.
Eu, ao contrário, acho que precisamos abrir espaço para “divergências e lutas”, pois senão o que prevalecerá na sociedade brasileira será a “clareza de objetivos e de ações” de nossos adversários. Pois, se é verdade que Bolsonaro está em queda, também é verdade que o restante da coalizão golpista, o oligopólio da mídia e as forças armadas passam bem melhor.
Aliás, não vejo como – sem divergências e lutas – materializar parte do que fala a própria Marilena Chauí, no trecho de seu artigo em que disserta sobre “O Mercado”.
Segundo Marilena, com a expansão do coronavírus, “nos meios de comunicação, nos debates políticos, nas falas de governantes e nas redes sociais a palavra ‘mercado’ desapareceu como por um golpe de mágica. Jornalistas, políticos, governantes e cidadãos passaram a empregar duas palavras que haviam sido banidas do vocabulário: economia e Estado. Como conseqüência, de repente, não mais que de repente, o vocabulário da socialdemocracia – controle estatal da economia e políticas sociais – é retomado”.
Em boa medida isto é verdade. Mas não é novidade: em tempos de crise, setores do Capital recorrem à social-democracia para salvar o capitalismo de seus exageros. Motivo pelo qual a esquerda socialista, anticapitalista, que não se limita a social-democracia, não pode perder de vista a conexão entre a tática, a estratégia e o programa, conexão que nos momentos de crise profunda não é uma tese abstrata, mas uma realidade prática.
Também por isso, o “resgate das lutas” e a “unificação da classe” precisam ir além da rejeição a Bolsonaro: também devem se materializar numa rejeição ao conjunto do governo Bolsonaro, aí incluídos Mourão, Guedes e Moro. Neste sentido, mais uma vez, defender a renúncia não é a melhor política.
Marilena conclui seu texto propondo que “se considere a possibilidade de dirigir os fundos partidários para ações emergenciais, de maneira a deixar claro que o Manifesto é político e social. Isso configuraria uma espécie de governo paralelo? Que assim seja”.
Vamos nos entender: os recursos dos fundos partidários são uma gota no oceano de recursos desviados para o setor financeiro e minúsculos frente as necessidades do conjunto do povo, necessidades que só podem ser atendidas por ação do Estado e gravando o Capital. Portanto, dirigir os fundos partidários para ações emergenciais pode ser um gesto simbólico, mas não é uma solução.
Em segundo lugar, devido a uma opção política equivocada que vem desde o início dos anos 1990, o PT abriu mão do autofinanciamento e passou a depender de recursos empresariais (hoje vetados por lei) e dos fundos públicos (partidário e eleitoral). Portanto, dirigir os fundos do PT para ações emergenciais implicará em paralisar a vida do Partido.
Portanto, um gesto com escassa repercussão prática, mas imensa repercussão política: a asfixia financeira do principal partido da oposição. Já os partidos fáticos da direita continuarão funcionando, a começar pelo partido da mídia e pelo partido das forças armadas.
Não preciso dizer de quem seria o “governo paralelo”, num contexto desses. Aliás, seria governo, mas não “paralelo”. Pois podemos divergir acerca do caráter neofascista do bolsonarismo, mas creio que não há divergência sobre a influência dos militares nesse governo.
A tutela militar não seria menor, caso Mourão assuma a presidência, depois de uma renúncia. O que talvez explique porque o texto de Marilena Chauí disserte sobre “O Mercado”, mas não fale nada sobre a tutela militar.
Na mesma letra de onde Chauí extrai o título de seu artigo, Geraldo Vandré lembra que aos soldados armados, “nos quarteis lhes ensinam uma antiga lição”. Qual lição, a Ordem do Dia de 31 de março de 2020 deixou claro mais uma vez. Pegando carona noutro poeta: razão e Mourão são uma rima, mas nunca uma solução.
(*) Valter Pomar é integrante do diretório nacional do PT e professor da UFABC
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Segue a íntegra do artigo comentado acima
Considerações sobre o Manifesto “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro”.
Maquiavel dizia que o verdadeiro político é aquele que, na desordem e no tumulto, sabe discernir o momento oportuno para agir. O Manifesto “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro” é uma convocação para agirmos no momento oportuno.
Seu acerto é duplo. Em primeiro lugar, por propor agir como uma frente nacional contra a irresponsabilidade criminosa de incitação ao homicídio feita por Bolsonaro ao se opor ao isolamento social (imaginando-se aliado e cópia de Donald Trump, acabou isolado pelo mundo inteiro) e sua demora em tomar providências mínimas para assegurar a vida de milhões de brasileiros, procrastinando a liberação de recursos com querelas sobre MPs e decretos.
Em segundo lugar, o Manifesto acerta ao propor a renúncia de Bolsonaro e não seu impeachment, pois este acrescentaria à crise atual mais uma crise (longa e de resultado imprevisível) que abriria espaço para divergências e lutas num momento em que a sociedade brasileira clama por clareza de objetivos e de ações.
Para não esquecer
Durante os últimos 35 anos, vimos surgir e agir uma personagem que, do Alto e à nossa revelia, decidia os rumos do planeta. Essa personagem foi batizada pelos meios de comunicação e pelos economistas de direita com o nome de “O Mercado”, dotado de onisciência e onipotência.
Onisciência porque, tendo a extraordinária capacidade de auto-regulação racional, sabe sempre e de antemão os rumos corretos e necessários do capitalismo. Onipotência porque possui um poder incontestável de decisão sobre as ações dos Estados e das sociedades e sobre os corações e as mentes dos indivíduos. Como toda divindade fetichista, “O Mercado” tem reações psicológicas: “está nervoso”, “está calmo”, “está de acordo”, “não está de acordo”, “aprova”, “desaprova”, “recompensa”, “pune”. Em suma, o seu “estado de espírito” repercute nas políticas do planeta e na vida cotidiana dos cidadãos. “O Mercado”, como sabemos, é o apelido do capitalismo neoliberal.
Ora, algo curioso vem acontecendo nas últimas semanas com a expansão do coronavírus ou Covid-19. Nos meios de comunicação, nos debates políticos, nas falas de governantes e nas redes sociais a palavra “mercado” desapareceu como por um golpe de mágica. Jornalistas, políticos, governantes e cidadãos passaram a empregar duas palavras que haviam sido banidas do vocabulário: economia e Estado. Como conseqüência, de repente, não mais que de repente, o vocabulário da socialdemocracia – controle estatal da economia e políticas sociais – é retomado.
Exemplifiquemos com o caso do Brasil.
Sem a menor vergonha na cara, agora é feito o elogio do Bolsa Família (aquele programa que era assistencialismo para os preguiçosos, lembram-se?), do SUS (aquele que Mandetta desativou quase por completo, lembram-se?) e muitos apregoam a necessidade da Renda Básica ou da Renda Mínima (sem que Eduardo Suplicy seja mencionado uma única vez nem entrevistado como o incansável campeão dessa idéia). Por sua vez, o “empresário de si mesmo”, os trabalhadores informais, os desempregados e os moradores de favelas e de rua passaram a receber uma nova designação: “vulneráveis”, como se sua vulnerabilidade tivesse surgido por conta do Covid-19 e não da aliança entre “O Mercado” e o governo neoliberal.
É espantoso o descaramento do uso da palavra “solidariedade” por aqueles que controlam ideologicamente a mídia e a política e que, até um mês atrás, se empenhavam do elogio irrestrito à competição e à “meritocracia”. Além disso, com igual descaramento, o governo federal exige que os cientistas das universidades públicas e dos centros públicos de pesquisa tragam rapidamente soluções para aquilo que deixou de ser “histeria” para ser considerado pandemia, sem que se diga que não houve investimento algum nas pesquisas públicas (lembram-se de Bolsonaro afirmando que pesquisa séria só é feita em universidades privadas e Weintraub cortando as bolsas de pesquisa do CNPq e da CAPES?). Exemplos não faltam se lembrarmos tudo o que foi dito e feito desde o golpe contra Dilma e a prisão de Lula.
Em suma, a referência à mudança de vocabulário e à relação com as políticas sociais é feita aqui no sentido de que é preciso resgatar e unificar por meio dos partidos de oposição as lutas e manifestações de movimentos sociais e populares em defesa de direitos que, desde o governo Temer, se espalharam pelo país, mas eram sempre fragmentadas, esporádicas e sobretudo criminalizadas. Insisto na figura dos chamados “vulneráveis” porque, a despeito da ideologia neoliberal sobre a “nova classe média brasileira”, são eles que constituem, na verdade, o que chamo de “nova classe trabalhadora brasileira”, fragmentada e isolada, carecendo de organizações de proteção, desprovida de uma visão social e política que lhe dê um lugar na luta democrática e socialista. Esse resgate de lutas e essa unificação de classe poderão, agora, encontrar eco na sociedade brasileira em sua rejeição a Bolsonaro.
Para nos ajudar a compreender
Penso que o artigo de Harvey “Política anticapitalista na época do Covid19”, é iluminador tanto sobre a situação planetária do capitalismo e da crise do neoliberalismo – combatido de Santiago à Beirute –, bem como sobre o lugar do Covid-19 na luta de classes, ponto que merece nossa maior atenção e pode guiar muitas das ações propostas pelo Manifesto. Harvey traça com firmeza o panorama planetário do neoliberalismo vitorioso, das lutas contra ele e dos efeitos do Covid-19 sobre ele, assinalando a ironia histórica do surgimento de uma perspectiva socialista no centro do mundo neoliberal.
Também considero importante para nossa reflexão e ação, o artigo de Paulo Capel Narvai, “A estratégia da pinça”. Narvai salienta que o que está em jogo não é a pandemia, mas as eleições de 2022. É particularmente significativa sua análise sobre a luta do grupo bolsonarista contra os governadores, que serão responsabilizados pelo péssimo desempenho da economia (o “pibinho” e o “dolão”), e sobretudo sua analise do papel de Mandetta nesse jogo, isto é, do discurso técnico aparentemente oposto ao discurso psicótico de Bolsonaro.
Uma proposta para discussão
Algumas pesquisas, mencionadas por articulistas de A Terra é Redonda e pelo site Brasil 247 indicam que, no Brasil, os mais penalizados pelos efeitos do Covid-19 (tanto do ponto de vista da saúde quanto da subsistência) são exatamente os eleitores dos partidos de oposição, particularmente os de esquerda. Em outras palavras, são aqueles de cujas organizações e lutas nasceram os projetos e programas dos partidos de esquerda, e também aqueles, destroçados pela economia e política neoliberais, que hoje buscam o caminho que define a essência da democracia, qual seja, a criação e garantia de direitos. Os partidos de oposição (esquerda e centro) devem a eles sua presença na política brasileira e por isso faço aqui uma proposta.
O Manifesto, como frente nacional de oposição, apresenta uma lista de ações necessárias a serem exigidas do governo federal, mas essa frente nacional também pode agir diretamente no atendimento emergencial dos que foram os mais atingidos pela destruição dos direitos sociais e por isso são também os mais atingidos, no curto e no longo prazo, pelo Covid19, pois são os que mais dependem dos serviços públicos e das garantias trabalhistas. Proponho que se considere a possibilidade de dirigir os fundos partidários para ações emergenciais, de maneira a deixar claro que o Manifesto é político e social. Isso configuraria uma espécie de governo paralelo? Que assim seja.
04/04/2020 – Publicado originalmente no site www.aterraeredonda.com.br