Menu Valério: café com Boulos ou chá com Haddad

Por Valter Pomar (*)

Acabo de ler a tréplica, através da qual Valerio Arcary polemiza com afirmações que fiz acerca da sua estratégia Boulos.

A etapa anterior da polêmica está aqui:

 http://valterpomar.blogspot.com/2023/11/a-estrategia-boulos-uma-replica.html

Como é inevitável, a tréplica de Valério deixa de lado algumas das questões que abordei em meu texto original.

Dentre elas, destaco uma: o tema da “marginalidade”, que a meu ver está na base da mudança profunda que Valério está operando em sua maneira de debater a estratégia.

Isto posto, registro maravilhado a capacidade que Valério tem de transformar retirada em desfile.

É o que ele faz, ao apresentar como uma lista de “acordos” entre nós, o que na verdade é um reconhecimento – ainda que parcial – dos erros e exageros cometidos por ele em seu texto original.

Mas no meio deste reconhecimento parcial, ele introduz en passant duas questões que merecem melhor discussão.

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A primeira delas é a seguinte: segundo Valério, “uma reorganização pela esquerda do lulismo virá ‘a quente’ e dependerá de uma nova onda de luta de massas que altere, qualitativamente, a relação social de forças? Justo. Mas, um ascenso não basta, como aprendemos em junho de 2013. Serão necessárias uma força e uma vontade consciente, um sujeito político coletivo, um polo de reorganização. O debate entre nós é de onde ele virá, de dentro do PT, de fora, ou ambos?”

Na minha opinião, é um erro colocar a questão como sendo de “reorganização”.

Colocada nesses termos, a tendência é que se descarte de antemão a posição, defendida por mim e  muito mais gente, de que, para a classe trabalhadora brasileira, a existência do PT – como principal partido da esquerda – continua sendo útil, necessária e indispensável.

Assim, no lugar de debater a “reorganização”, defendo que se debata a linha política, mais precisamente a estratégia e o programa.

Trocar de partido não nos levará para a esquerda, se a estratégia prosseguir estruturada, como hoje, pela ação estritamente eleitoral e institucional.

E para que uma mudança de linha tenha efeito real, nas atuais circunstâncias histórias, melhor não trocar de partido.

Evidentemente que – nas atuais condições histórias – continuará tendo imensa importância a disputa eleitoral pelo controle de parcelas do aparelho de Estado. Assim como continuará tendo imensa importância a ação dos governos e mandatos.

Mas o ocorrido em 2005 e principalmente em 2016 demonstrou, a quem não sabia ou não queria acreditar, que não basta ganhar eleições e governar.

Se não enfrentarmos o debate sobre a estratégia – especialmente sobre qual o papel das eleições e da ação de governo em nossa luta pelo socialismo – a troca de partidos pode inclusive piorar a situação da classe trabalhadora.

Isto posto, pensei estar óbvio que minha defesa da necessidade de mais luta social não tem nada que ver com o que propõe Arcary, a saber, criar as condições para superar o PT.

Defendo a necessidade de uma nova onda de mobilização direta da classe trabalhadora, porque sem isso não venceremos a classe dominante. Se essa onda não vier, seremos derrotados, restando saber quando e como. E se vier, mas não for em alguma medida coordenada com o PT, também seremos derrotados.

Aqueles que viram junho de 2013 como uma onda que visava “ultrapassar pela esquerda o PT” cometeram muitos erros, entre os quais não perceber o óbvio: a derrota do PT não beneficiaria a esquerda, mas sim a direita. Não beneficiaria e, acrescento, não beneficiará.

A ilusão a respeito tem que ver com a tal discussão acerca da “marginalidade”.

Arcary e outros olharam para junho de 2013 e imaginavam estar vendo a Rússia de 1917, com o governo do PT fazendo as vezes de governo Kerensky.

Entre outras diferenças, acontece que na Rússia de 1917 a radicalização proletária e camponesa deslocou a correlação de forças, da direita para a esquerda, nos marcos das principais organizações já existentes. Não em benefício de “coisa nova”, digamos assim.

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A segunda questão posta en passant por Valério diz respeito à estratégia.

Segundo ele, “podemos usar o termo estratégia em um grau inferior de abstração (…) Deveria, talvez, ter colocado aspas no título do artigo. Mas escolhi fazer uma fórmula polêmica para, nos limites do objetivo da discussão, contrapor Boulos a Haddad”.

Dito de outra forma: o que Valério chama de “estratégia Boulos” é o caminho pelo qual o PSOL derrotaria o PT e Boulos derrotaria Haddad.

Que Valério ache prudente colocar as coisas nesses termos, na véspera de uma eleição municipal onde Boulos é apoiado pelo PT, demonstra que o lobo perde o pelo, mas não perde o viço.

E que Valério queira chamar isso tudo de “estratégia”, é um direito dele.

Direito exercido, diga-se também de passagem, por muita gente ilustre, para quem estratégia é como ganhar a eleição que virá depois da próxima, governo é igual a poder e o centro do mundo está no umbigo da vedete, perdão, do líder.

Valério reconhece que um dos “argumentos mais sérios esgrimidos contra a “estratégia” proposta por ele, é o de que a “aposta Boulos não é uma mudança de estratégia”.

Ao responder a esta crítica, Valério demonstra – sem perceber – que o argumento procede.

Ele começa dizendo que a “articulação” (!!haha, olha ela aí!!) social e política que sustenta Boulos não seria “mais do mesmo”, não seria “eleitoralismo reformista”, não seria a “estratégia do PT de 2023”.

Concordo com isso.

Aliás, advirto que parte da resposta de Valério não é ao que eu disse, mas ao que dizem e pensam seus colegas de PSOL e antigos camaradas de PSTU.

Depois Valério pergunta o seguinte: “Mas a ‘estratégia’ Lula, o Lula lá, não foi, durante a primeira década, a aplicação de uma tradição socialista compartilhada de que era necessária uma intervenção política-eleitoral combinada com o impulso das lutas operárias e populares? Era somente eleitoralismo desde 1989? O cálculo não era que, chegando ao poder, haveria obstáculos contrarrevolucionários insuperáveis sem uma ruptura?” 

Às perguntas de Valério, respondo assim: de fato, era mais ou menos assim que pensávamos. Mas como as coisas não se passaram conforme prevíamos, não considero prudente cometer o mesmo, especialmente em condições totalmente diferentes (e piores)!

E aí está o nó do problema. O que Valério chama de “estratégia Boulos” é uma tentativa de replicar o que ele entende ter sido a estratégia adotada pelo PT nos anos 1980.

Acontece, em primeiro lugar, que a estratégia do PT nos anos 1980 não foi o que ele chama de “estratégia Lula”.

Neste quesito, curiosamente, Arcary é mais lulista que muitos lulistas: reescreve a história passada, a partir de um de seus desfechos.

Outros tentam, inclusive, copiar os modos e jeitos de falar da estrela principal, para ver se assim ganham o mesmo papel no remake. 

Mas o problema central não está no modo Stanislavski de ser.

O problema principal, penso, é responder o seguinte: por qual motivo a “estratégia Boulos” não teria o mesmo destino daquilo que Valério chama de “estratégia Lula”? Por qual motivo não chegaríamos na repudiada – por Valério – estratégia do PT em 2023?

Sobre isso, Valério diz que “a estratégia do PT mudou. (…) O que era uma hipótese nas resoluções do V Encontro, acabou se confirmando, só que em “câmara lenta”, e não foi porque o PT iniciou reformas estruturais. O que Boulos representa é uma aposta na mobilização social para ir além do neoliberalismo, para governar ‘a quente’, o ‘método’ da revolução permanente”. 

Ou seja: o que impediria a “estratégia Boulos” de ter o mesmo desfecho da “estratégia Lula” seria… Boulos. Boulos e, como não podia deixar de ser, a revolução permanente.

Com todo o respeito, isso não é um argumento sério.  Não porque Boulos não mereça respeito, não porque o PSoL não aposte na mobilização, mas porque muito mais qualidades do que essas não foram suficientes para impedir que o PT fizesse as escolhas que Valério critica.

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Vejamos agora o que Valerio diz acerca do PSoL, partido que ele propõe como alternativa ao PT, enquanto principal partido da esquerda brasileira.

De saída, ele reconhece que “o PSol é um partido eleitoral, portanto, uma mediação, uma frente de correntes diversas, unindo tendências moderadas e radicais, garantindo um marco comum para a presença na legalidade, e posições institucionais. Mas não é verdade que o PSol não tem raízes sociais. Não e só o PT que tem militância. Essa soberba é, absurdamente, sectária”. 

Como disse antes, nesta e noutras passagens Valério está discutindo não sei com quem, comigo é que não é. E não vou discutir “soberba” e “sectarismo” com quem é capaz de escrever, nas vésperas da eleição de 2024, que a vitória de Boulos na eleição de São Paulo capital é um passo para “diminuir” o PT.

Assim, me limito a registrar o seguinte: o PT, quando se converteu em partido hegemônico na esquerda brasileira, não era um “partido eleitoral”. Isto não é um detalhe.

Valério reconhece, também, que o PSoL viveu uma “relocalização”, desde 2016. Falando em português, o PSoL deu vários passos em direção, digamos, ao centro. E logo em seguida Valério acrescenta a frase: “O PSol tem autoridade nos movimentos feminista e negro, indígena e LGBT, estudantil e popular, ambiental e cultural, inclusive na classe operária. E foi o protagonismo do MTST que projetou Boulos, e abriu o caminho para o segundo turno em São Paulo em 2020”. 

A língua é uma coisa linda, né? Repitamos: “O PSol tem autoridade nos movimentos (…) E foi o protagonismo do MTST que projetou Boulos”. 

Escrito deste jeito, um desavisado pode entender que o MTST é um dos movimentos impulsionados pelo PSoL e que Boulos seria psolista desde criancinha.

Acontece que não é assim que as coisas se passaram. E, novamente, este não é um detalhe: a vinculação entre Lula e o PT é de um tipo totalmente diferente. Arcary está fazendo projeções acerca de Boulos & PSoL como se fossem criador e criatura. E não são.

Mas sigamos a narrativa: no começo, tínhamos o PSol. Aí o PSol se relocalizou. Aí cresceram os movimentos. Aí veio Boulos. E aí Boulos foi para o segundo turno.

Uma “façanha”, num clima meio cavaleiro andante, ainda que o áudio que ouço no meu cérebro esteja mais para Jambo e Ruivão.

Segundo Arcary, esta “façanha” repetiu “a dinâmica do Rio de Janeiro em 2016, há, portanto, um padrão. O PSol não é somente Belém do Pará”.

Mas qual seria o padrão que se repetiu? O padrão, na minha opinião, segundo o qual, quando o PT “deixa de ser PT”, alguém ocupa seu lugar, mesmo que o universo eleitoral da esquerda esteja mais ou menos estagnado, quando não em retração.

Valério está tão entusiasmado, que deixa todos estes “detalhes” de lado e chega ao ponto de afirmar o seguinte: “Conquistando mais de um milhão de votos em 2022, Boulos se afirmou como a segunda liderança popular mais influente do país, emparelhando, ou até superando Haddad, que tinha substituído Lula na eleição contra Bolsonaro em 2018”. 

Ou seja: a liderança popular influente se constrói… nas urnas.

E se compara com as outras no tête à tête, medindo pessoas, não partidos.

É um argumento parecido ao que ouvimos de pessoas segundo as quais os votos seriam de fulano ou de beltrano, não do Partido, não da esquerda como um todo.

Este jeito de colocar o problema é todo atravessado por uma lógica eleitoral e individualista. E, como sempre, o excesso de velas põe fogo na igreja.

Me refiro a já citada imprudência de Valério, que agora vou citar na íntegra: “a disputa da prefeitura de São Paulo em 2024 será a mãe de todas as batalhas futuras. Se Boulos sair reforçado, qualitativamente, por uma vitória, muda a relação de forças dentro da esquerda. O PT sairá, inescapavelmente, diminuído, mesmo tendo apoiado o Psol desde o primeiro turno”.

Outras pessoas ganharam a eleição de São Paulo capital, achando que isto as projetaria como presidenciáveis. Não foi isso o que aconteceu, em nenhum dos casos.

Mas confesso que não lembro de quem tenha dado tiros no pé desse tipo: estando aliado com o PT, de quem dependerá grande parte do esforço militante capaz de produzir a vitória de Boulos, proclamar que o PT sairá inescapavelmente diminuído!!!

Baita estímulo para o que o petismo se engaje com tudo!!!

(Pano rápido: tendo em vista o endosso que esta linha de argumentação de Valério dá para as posições defendidas por Quaquá e outros, cheguei a pensar que Valério havia sido “sequestrado” e que este texto estava sendo escrito por outra pessoa, cujo nome não vou mencionar para não criar mais confusão.)

A imprudência de Valério roça o alambrado do mau gosto, na insistência que faz acerca da “presença de Lula”, tema que já comentei no meu texto anterior.

As frases de Valério são: “Mas ainda terá, talvez, a “carta” Lula o que pode atrasar a reorganização pela esquerda do PT. Sim, há um talvez, e não deve ser um tabu discutir. A presença de Lula é o principal fator de contençãotrasar a reorganização pela esquerda do PT. da crise do PT”.

A biologia é implacável. E o PT sem Lula seguramente enfrentará ainda maiores desafios. Mas o grau de enraizamento do petismo na classe trabalhadora, bem como os vínculos orgânicos entre Lula e o PT, não endossam a tese implícita da crise terminal.

Por outro lado, já que Valério diz que devemos  abandonar todos os “tabus”, sugiro qual ele também discuta outras hipóteses ligadas a tal “carta” Lula, por exemplo a tentativa de trazer Boulos para o PT.

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Isto posto, vamos ao ponto seguinte: a esquerda do PT.

A esse respeito, começo ponderando que o jeito como Valério escreve a respeito tem duplo sentido. Quando ele fala em “reorganização pela esquerda do PT”, alguém poderia entender que se trata de reorganização do PT, quando ele na verdade está falando da reorganização da esquerda fora do PT. 

Para Valério, “a experiência dos últimos trinta anos é desencorajadora de que o destino do PT poderá ser disputado pela sua ala esquerda”.

Notem que está escrito “disputado”, não decidido. Lendo esta frase com aquela palavra, percebe-se como a ascensão de Valério ao campo majoritário do PSoL mudou um pouco sua maneira de ver o mundo. De repente, o papel das minorias na história torna-se irrelevante.

Ao contrário disto, é fato notório que a história do PT, entre 1993 e 2023, mas também entre 1980 e 1993, não pode ser compreendida sem levar em conta a existência, no interior do Partido, de uma ala esquerda, que disputa os destinos do Partido, mesmo quando não os decide. Em alguns momentos, esta esquerda, mesmo minoritária, mas as vezes majoritária, cumpriu papel decisivo, como em 1993, em 2005, em 2016 etc.

Claro, Valério tem razão ao apontar que esta ala esquerda não conseguiu impedir que o PT viesse moderando sua estratégia, seu programa e sua atuação prática.

E Valério também tem razão ao dizer que há, na chamada esquerda do PT, uma tendência à “acomodação”, assim como tem razão em identificar outros problemas, que infelizmente não atingem apenas o PT, como sabe quem conhece outros partidos da esquerda, a começar pelo PSoL.

E, finalmente, Valério tem razão quando aponta que a esquerda do PT cometeu muitos erros.

Pena que Valério, neste balanço de perdas e danos, esqueça de dizer que, mesmo enfraquecida, acomodada, diminuída etc etc., a esquerda do PT acertou no essencial: acertamos em defender o PT, contra aqueles que o condenaram à fogueira com todos os adjetivos possíveis e inimagináveis.

Sobre quais foram estes adjetivos, basta dar um google.

E o que ocorreu com todos os que se propuseram a “superar o PT pela esquerda”? Tirante o PSTU, que foi tão longe na tentativa que se aliou objetivamente à direita, todas as demais tentativas acabaram se somando a flotilha liderada pelo PT.

E o interessante – embora trágico – é que vários setores da esquerda não petista vem se submetendo a “hegemonia cultural” do grupo majoritário no Diretório Nacional do PT.

Um exemplo disso é, exatamente, a tal “estratégia Boulos”: uma capitulação ao modo de pensar política que é predominante na CNB.

Valério acha que, com Boulos, está penetrando no “flanco esquerdo” da CNB. Mas, na verdade, está se submetendo à “hegemonia cultural” da CNB, que organiza sua estratégia a partir dos processos eleitorais.

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Valério admite, claro, que “pode dar tudo errado”, mas para exorcizar este risco invoca, que bom, a luta de classes.

Suas palavras são: “Sem uma onda de lutas sociais e populares todos os caminhos à esquerda ficarão bloqueados. Mas vai depender, também, e mais ainda, da capacidade da esquerda anticapitalista superar o sectarismo, e assimilar as lições do ciclo do PT/CUT do lulismo. Sem instrumentos de luta enraizados na base, sem democracia interna, sem controle das lideranças, sem educação marxista, sem internacionalismo a história pode, dramaticamente, se repetir. Sim, pode. Há muitos riscos. É verdade que não basta trocar os dirigentes, é preciso revolucionar as organizações, e construir sujeitos coletivos sociais e políticos melhores. Mas não avançaremos melhor com Boulos do que com Haddad?” 

Minha vontade, neste momento, é pedir uma Kaiser antes de responder. Não pelos nomes citados, mas porque é simplesmente deprimente ver o problema ser apresentado mais ou menos assim: café com Boulos ou chá com Haddad?

Afinal, uma das “lições do ciclo do PT/CUT do lulismo” – “ciclo” que não se encerrou, é bom lembrar – é a de que o papel do indivíduo na história não deve ser maior do que o das organizações coletivas.

Outra lição é a de que, mesmo que as aparências enganem alguns, o petismo é historicamente superior ao que se convencionou chamar de “lulismo”.

(Não vou aqui discutir o significado do termo “lulismo”, que eu pessoalmente não acho o mais adequado.)

Da mesma forma, é simplesmente incorreto – no meio deste caos que estamos, no mundo e no Brasil, e frente as enormes dificuldades que estamos vivendo dentro da esquerda – achar que nosso principal problema estratégico é escolher entre Haddad e Boulos.

O que Valério diz acerca da situação atual?

Diz que “ninguém poderá prever, sem enormes margens de erro, a realidade brasileira até 2026. O que é certo é que haverá luta de classes. Mas (…) um novo golpe não é a hipótese mais provável”. Afirma que derrotar a extrema-direita (…) permanece o centro da tática”. Sendo que “o desfecho da disputa” está em aberto e “o desempenho do governo depois de dez meses nos deixa em uma enorme insegurança de que estes objetivos poderão ser, mesmo que parcialmente, alcançados”.

Tudo é verdade. E tudo isto aponta para a necessidade de mudança de estratégia, ao mesmo tempo que reforça a necessidade de unidade da esquerda social e partidária, neste caso especialmente entre PT, PCdoB e PSOL.

Não vejo como combinar isso, com os objetivos e desdobramentos da tal “estratégia Boulos”, com os vereditos que Valério faz acerca da luta interna ao PT e com o pessimismo dele acerca dos rumos do governo.

Se tudo for como ele prevê, o futuro será de derrota e desagregação, não de superação.

Uma dúvida final: a “estratégia Boulos” é a estratégia do Boulos?

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT

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Segue abaixo o texto acima criticado:

 

 A “estratégia” Boulos, uma tréplica. 

Valerio Arcary

Mais vale esperança boa que hipótese má 

Não há esperança sem temor, nem amor sem receio

Provérbios populares portugueses

1. Valter Pomar escreveu uma réplica ao artigo “A estratégia Boulos”1. Não é a primeira vez que se estabelece uma polêmica entre nós. Então, para favorecer o entendimento de aonde estão as diferenças, e não as exagerar, é um bom critério esclarecer quais são os acordos. Eles são cinco: (a) o PT não se resume ao lulismo? Justo. O lulismo é uma corrente eleitoral maior que o petismo, em especial, no Nordeste e não só, mas o núcleo dirigente do PT mantém uma influência hegemônica entre os trabalhadores e, à sua esquerda, há correntes que são minoritárias, e outras que são marginais, o que não é o mesmo; (b) o PT está à esquerda da maioria da classe trabalhadora? Justo. Até à esquerda de uma parte do voto, estritamente, “lulista”. Ademais, as eleições de 2022 confirmaram que o bolsonarismo penetrou em parcelas da classe trabalhadora; (c) o critério para definir esquerda anticapitalista como aqueles que nos seus programas defendem a necessidade de uma revolução é auto declaratório? Justo. A régua poderia ser mais esperança boa rigorosa. Mas, sendo insuficiente, evita discussões improdutivas e insolúveis no estilo quem são os revolucionários, realmente, revolucionários; (d) uma reorganização pela esquerda do lulismo virá “a quente” e dependerá de uma nova onda de luta de massas que altere, qualitativamente, a relação social de forças? Justo. Mas, um ascenso não basta, como aprendemos em junho de 2013. Serão necessárias uma força e uma vontade consciente, um sujeito político coletivo, um polo de reorganização. O debate entre nós é de onde ele virá, de dentro do PT, de fora, ou ambos? (e) estratégia é um conceito, derivado da cultura militar que nos remete à relação entre os fins e os meios e, na tradição socialista, à esperança boa questão dos caminhos para a luta pelo poder, se transição gradual negociada ou ruptura revolucionária. Justo. Mas não só. Podemos usar o termo estratégia em um grau inferior de abstração. Por exemplo: qual a nossa estratégia para derrotar o bolsonarismo? Ou para orientar a luta contra as privatizações em São Paulo?  Deveria, talvez, ter colocado aspas no título do artigo. Mas escolhi fazer uma fórmula polêmica para, nos limites do objetivo da discussão, contrapor Boulos a Haddad. Boulos é uma liderança nacional em formação. Ninguém, por maiores que sejam suas qualidades, poderá “substituir” o protagonismo da classe trabalhadora e dos oprimidos, os instrumentos de luta, e o papel dos movimentos sociais na luta de classes, nem a necessidade de uma nova estratégia, diferente da do PT. Justo.

2. Quais são as nossas diferenças? Elas parecem ser, nos limites deste debate, pelo menos, três: (a) um novo golpe é ou não é uma hipótese provável, depois da derrota do 8 de janeiro? (b) admitindo que tem uma dimensão tática, o que é muito controverso, a melhor localização dos revolucionários que permanecem no PT, será insistir, por tempo indefinido, na luta interna, acatando as decisões de uma maioria cada vez mais, social e politicamente adaptada? (c) a disputa da liderança pública da esquerda entre Haddad e Boulos, expressando diferentes articulações sociais e políticas, e distintas estratégias, é ou não, no limite do previsível hoje, o cenário mais provável? E Boulos não é uma aposta melhor?
esperança boa

3. Ninguém poderá prever, sem enormes margens de erro, a realidade brasileira até 2026. O que é certo é que haverá luta de classes. Mas indo ao ponto, um novo golpe não é a hipótese mais provável. A extrema-direita já se reposicionou no interior do regime e vai às eleições. Aguarda o desenlace das urnas na Argentina, uma possível vitória de Milei e, sobretudo, nos EUA, com Trump. O bolsonarismo é consciente que mantém influência de massas, entre um quarto e um terço da sociedade, com ainda muito peso, na institucionalidade e, também, por isso, não pode arriscar novas aventuras. A derrota da semi-insurreição de 8 de janeiro deixou os golpistas esperança boa na defensiva. É verdade que Bolsonaro preserva o lugar de liderança mais influente dentro da extrema-direita, mas já teve duas condenações e está inelegível. Por enquanto, bloqueia o caminho para um sucessor, e manobra através do PL para conquistar posições nas eleições municipais de 2024. Derrotá-los, sendo conscientes do perigo eleitoral para 2026, permanece o centro da tática. O desfecho da disputa dependerá, pelo menos, de quatro fatores: (a) a economia não pode parar de crescer, mesmo que lentamente, porque a estagnação, ou pior, uma contração ameaçará a ampla coligaçda disputa deão com os partidos burgueses, em especial, o centrão, portanto, a escolha da governabilidade “a frio”; (b) não bastará o crescimento, porque o governo Lula precisa responder, até 2026, às demandas populares mais agudas, alimentando a esperança de que é possível, através de uma estratégia reformista, melhorar a vida, (c) a corrente neofascista deverá ser derrotada, Bolsonaro preso, os golpistas não poderão ser anistiados, e sua audiência em parcelas populares do sudeste e sul do país neutralizada, recuperando audiência entre os trabalhadores com contrato que ganham acima de dois salários-mínimos, e nas camadas médias assalariadas; (d) o governo deverá se engajar na disputa política-ideológica na sociedade, e abandonar a ilusão de que as tarefas administrativas de “entregas” de obras serão suficientes para inverter a relação social de forças. Infelizmente, o desempenho do governo depois de dez meses nos deixa em uma enorme insegurança de que estes objetivos poderão ser, mesmo que parcialmente, alcançados.

4. A experiência dos últimos trinta anos é desencorajadora de que o destino do PT poderá ser disputado pela sua ala esquerda. Não é lúcido diminuir o impacto de acomodação social que a pressão do aparelho exerce sobre as correntes da esquerda do PT. Não deve ser, tampouco, absolutizada, claro. Mas, o mínimo de honestidade é reconhecer que o tempo não passou em vão. Nunca erraram? Quando, em 2003/04, uma parte da esquerda do PT fundou o PSol, as maiores correntes internas ficaram. Hoje são, comparativamente, menores. Entretanto, a maioria da CNB, onde os mais sociais-liberais se destacam, continua avassaladora. Não é segredo que Lula, sempre um ultra moderado, está um pouco à esquerda da CNB, assim como Gleici Hoffman!!! A CNB irá se dividir? Sim, é possível, em algum momento. Mas vai liberar forças progressivas? Improvável. A CNB perpetua não só posições de poder, conquista hegemonia cultural. O mais provável é que a direita da CNB, e não a esquerda do PT se fortaleçam, como na Argentina. Massa e não a esquerda do peronismo se fortaleceu. A nova geração de lideranças petistas foi educada no “institucionalismo”. A militância é uma carreira.  Os processos de PED são irrefreáveis. As lideranças públicas da esquerda petista têm espaços muito limitados, e não há qualquer possibilidade de que um dirigente da esquerda do PT venha a derrotar, internamente, Haddad. Nenhuma. É verdade que o PT interrompeu a dinâmica de crise que vinha acumulando desde 2013, e recuperou autoridade, em função do golpe institucional contra Dilma Rousseff em 2016 e, sobretudo, do impacto de sete anos de derrotas acumuladas. Atingiu o seu ápice em 2022 com o agigantamento de Lula ao sair da prisão liderando a campanha contra Bolsonaro.  A CNB conseguiu manter o controle interno sobre a esquerda do PT. Mas não conseguiu fechar, totalmente, o flanco à sua esquerda.

5. Os argumentos mais sérios esgrimidos contra a “estratégia” Boulos se resumem a três: (a) o PSol tem muito dos defeitos do PT, e pouco das qualidades; (c) a aposta Boulos não é uma mudança de estratégia, seria uma “fuga em frente” eleitoreira; (c) pode dar tudo errado, e acontecer algo como Syriza na Grécia e Podemos no Estado Espanhol, uma enorme desmoralização.

6. Primeiro: é verdade que o PSol é um partido eleitoral, portanto, uma mediação, uma frente de correntes diversas, unindo tendências moderadas e radicais, garantindo um marco comum para a presença na legalidade, e posições institucionais. Mas não é verdade que o PSol não tem raízes sociais. Não e só o PT que tem militância. Essa soberba é, absurdamente, sectária. É injusto não reconhecer, também, que a relocalização do PSol, desde 2016, abandonando a linha de oposição sistemática diante da iminência do golpe, e abraçando a defesa da Frente Única de Esquerda, na luta contra Temer e Bolsonaro permitiu conquistar muita simpatia. E impulsionou mobilização de massas desde então. O PSol tem autoridade nos movimentos feminista e negro, indígena e LGBT, estudantil e popular, ambiental e cultural, inclusive na classe operária. E foi o protagonismo do MTST que projetou Boulos, e abriu o caminho para o segundo turno em São Paulo em 2020. Sim, foi uma façanha, porque em uma situação reacionária. Repetiu a dinâmica do Rio de Janeiro em 2016, há, portanto, um padrão. O PSol não é somente Belém do Pará. Conquistando mais de um milhão de votos em 2022, Boulos se afirmou como a segunda liderança popular mais influente do país, emparelhando, ou até superando Haddad, que tinha substituído Lula na eleição contra Bolsonaro em 2018. Claro que ninguém pode prever qual será a situação daqui a três anos. Mas a disputa da prefeitura de São Paulo em 2024 será a mãe de todas as batalhas futuras. Se Boulos sair reforçado, qualitativamente, por uma vitória, muda a relação de forças dentro da esquerda. O PT sairá, inescapavelmente, diminuído, mesmo tendo apoiado o Psol desde o primeiro turno. Mas ainda terá, talvez, a “carta” Lula o que pode atrasar a reorganização pela esquerda do PT. Sim, há um talvez, e não deve ser um tabu discutir. A presença de Lua é o principal fator de contenção da crise do PT.

7. Segundo, não é verdade que a articulação social e política que sustenta Boulos é “mais do mesmo”: eleitoralismo reformista. Não é a estratégia do PT de 2023. Mas a “estratégia” Lula, o Lula lá, não foi, durante a primeira década, a aplicação de uma tradição socialista compartilhada de que era necessária uma intervenção política-eleitoral combinada com o impulso das lutas operárias e populares? Era somente eleitoralismo desde 1989? O cálculo não era que, chegando ao poder, haveria obstáculos contrarrevolucionários insuperáveis sem uma ruptura? O “método” ou tática “alemã”, por Rosa Luxemburgo. Mas a estratégia do PT mudou. Lula foi eleito e decidiu formar um governo de colaboração de classes apoiado na governabilidade “a frio” mantendo o núcleo duro do tripé de ajuste neoliberal com Palocci. O PT venceu quatro eleições seguidas, e foi surpreendido quando a maioria da classe dominante se uniu em 2016 para derrubar o governo Dilma Rousseff. O que era uma hipótese nas resoluções do V Encontro, acabou se confirmando, só que em “câmara lenta”, e não foi porque o PT iniciou reformas estruturais. O que Boulos representa é uma aposta na mobilização social para ir além do neoliberalismo, para governar “a quente”, o “método” da revolução permanente. A acusação de que o projeto que o PSol impulsiona não é de esquerda o bastante não é razoável. Ser revolucionário é proclamar revolução, já? Dizer que é o mesmo do PT não é sério. Admitir que teremos que improvisar é, somente, lucidez.

8. Terceiro. Pode dar tudo errado? Sempre pode. Mas o cálculo de que as forças agrupadas em torno do Psol terão o mesmo destino de Syriza e Podemos, ou que Boulos não merece confiança, e poderá vacilar e capitular é uma profecia catastrofista. Tudo vai depender da luta de classes. Sem uma onda de lutas sociais e populares todos os caminhos à esquerda ficarão bloqueados. Mas vai depender, também, e mais ainda, da capacidade da esquerda anticapitalista superar o sectarismo, e assimilar as lições do ciclo do PT/CUT do lulismo. Sem instrumentos de luta enraizados na base, sem democracia interna, sem controle das lideranças, sem educação marxista, sem internacionalismo a história pode, dramaticamente, se repetir. Sim, pode. Há muitos riscos. É verdade que não basta trocar os dirigentes, é preciso revolucionar as organizações, e construir sujeitos coletivos sociais e políticos melhores. Mas não avançaremos melhor com Boulos do que com Haddad?

Valerio Arcary

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