Por Silvio Queiroz (*)
Apesar da disposição quase nula da mídia corporativa para cobrir o movimento social, em particular as lutas da classe trabalhadora, nos últimos meses e semanas não foi possível tirar do noticiário uma onda de greves e protestos que sacode a Europa desde a virada do ano. A maré sacode algumas das principais economias do chamado Velho Mundo, mas um olhar mais atento mostra um quadro semelhante – sem ignorar as diferenças em distintos planos – em outras regiões do globo. Pode ser observada também nos Estados Unidos e, como nos diz mais respeito, na América Latina, inclusive no Brasil.
A França, um dos carros-chefes da União Europeia (UE), continha às voltas com a rejeição em massa da reforma previdenciária que o governo do presidente Emmanuel Macron decidiu empurrar goela abaixo da sociedade passando por cima do parlamento. Macron, que se apresenta como centrista mas encarna no país o projeto neoliberal, ignorou repetidas greves nacionais e jornadas de manifestações que se sucedem desde o anúncio da reforma, e assinou a lei. Centrais e forças de esquerda – mas não só elas – programam novas paralisações ainda para abril.
As cores são menos berrantes na vizinha Alemanha, que completa a dupla dinâmica da UE e detém a maior economia do continente. Por lá, diferentes setores enfrentaram greves em série, com peso especial nos serviços públicos. Os transportes coletivos – ônibus, metrô, trens e aviões – viveram no final de março uma greve de 24 horas que, apesar da breve duração, teve impacto em todo o país e marcou a volta em grande estilo do movimento sindical após praticamente duas décadas de relativa calmaria.
Assumiu também ares de um quase “renascimento” a onda de greves nos serviços públicos no Reino Unido. Em especial, marcou época a maior paralisação na história do Serviço Nacional de Saúde – que, por sinal, foi uma das referências para o Brasil na estruturação do SUS. Enfermeiras e enfermeiros cruzaram os braços mais de uma vez, desde a virada do ano, por reajuste salarial, com apoio maciço da sociedade, em reconhecimento pelo papel da categoria no combate à epidemia da Covid-19. Motoristas de ambulância e médicos em inicio de carreira engrossaram o bloco. Greves de peso se repetiram também nas ferrovias, nos correios, em diferentes níveis da educação pública e em setores do funcionalismo. Nem mesmo a imprensa saiu ilesa: uma breve (e inusual) paralisação atingiu uma sucursal regional da BBC, a emissora pública de rádio e TV.
Múltiplas camadas
Com motivação direta e dinâmica próprias em cada país, a onda grevista na Europa se desenrola com um pano de fundo comum: a crise recorrente e persistente do modelo neoliberal. Se as raízes mais profundas podem ser localizadas no furo da “bolha” financeira em 2008/2009, a combatividade revigorada dos trabalhadores organizados tem conexão direta com os desdobramentos do segundo ciclo da crise: as sequelas econômicas da pandemia. Os três países, que integram o centro do capitalismo global, exibem taxas de inflação próximas – ou até superiores – ao patamar de 10% anuais, índice que até bem pouco era visto como aceitável apenas nas economias ditas periféricas. Não por acaso, o reajuste salarial é a locomotiva das greves na Alemanha e no Reino Unido.
Um olhar mais cuidadoso e atento revela, no entanto, camadas superpostas do impasse que desafia os arquitetos e estrategistas do capitalismo tal como se apresenta hoje. Na mais imediata e superficial está o fracasso das medidas ensaiadas para relançar a economia no pós-Covid. A fórmula da injeção de bilhões e trilhões de dólares – por parte do Estado, convém lembrar – no sistema financeiro, de eficácia temporária em 2008/2009, não bastou para inflar o crescimento. Nem impediu a quebra de um gigante do porte do banco Crédit Suisse. A disparada dos preços de energia e, por tabela, dos transporte e alimentos, fez pouco caso do receituário ortodoxo e segue castigando os trabalhadores e os desfavorecidos – como salta à vista com os sinais evidentes da pobreza nas grandes cidades europeias.
Embora a revolta dos franceses tenha um alvo algo diferente, não é um exercício de maior vulto identificar um traço comum com a onda grevista na Alemanha e no Reino Unido, a despeito de serem até aqui movimentos deflagrados e conduzidos por categorias profissionais individuais ou afins. Nos três países, o que está à mostra é a falência do welfare state, o sistema de bem-estar social erguido na Europa Ocidental sobre as ruínas da Segunda Guerra Mundial na segunda metade do século 20. Concebido como parte do “muro de contenção” do bloco socialista montado pela União Soviética no Leste Europeu, o welfare state passa desde os anos 1980 por um processo de desmontagem, acentuado desde a virada do século. Reformas ao estilo da empreendida por Macron produziram turbulência social em países como a Itália – onde, a exemplo da França, o movimento sindical teima em resistir.
Terremoto político
É especialmente ilustrativa, nesse aspecto, a dinâmica da maré grevista no Reino Unido, um dos berços da “revolução conservadora” que declarou guerra ao modelo do bem-estar social do pós-guerra. Em 1979, a conservadora Margaret Thatcher foi eleita primeira-ministra e empurrou o Partido Trabalhista para uma longa temporada na oposição. A Dama de Ferro, como ficou conhecida, escolheu como primeiro alvo precisamente os sindicatos, até então com força para sustentar ou derrubar governos – como constataram os caciques do trabalhismo. O episódio mais simbólico foi a épica greve mantida por mais de um ano nas minas (estatais) de carvão. A intransigência do governo conservador terminou prevalecendo: Thatcher derrotou os mineiros, demoliu na prática o combativo sindicato da categoria e passou à aniquilação sistemática das centrais de trabalhadores e – não menos importante – do setor estatal e público da economia. Nesse como em outros terrenos, a premiê britânica caminhou de braços dados com Ronald Reagan, que levou o Partido Republicano de volta à Casa Branca, em 1980, com agenda semelhante.
A dimensão e o alcance do legado da Dama de Ferro pode ser medido pela trajetória da oposição política. Ela voltariam ao poder apenas em 1997, com Tony Blair. Sua agenda, porém, assinalava um rompimento frontal e explícito com o programa histórico do partido: o “novo trabalhismo” se apresentou como continuação “atualizada” do neoliberalismo. Coincidência ou não, Blair repetiu com o democrata Bill Clinton a dobradinha formada por Thatcher e Reagan – inclusive e especialmente na política externa.
Até mais do que na milenar monarquia britânica, são mais visíveis na França as falhas geológicas que a crise do welfare state rasga no tecido político. O sistema partidário tal como estabelecido no pós-guerra já não pode ser reconhecido na prática: gaullistas, pela direita, e comunistas, pela esquerda, foram forças dominantes por ao menos três décadas; hoje, sumiram do cenário enquanto legendas. O mesmo aconteceu com o centro liberal, e mesmo o Partido Socialista, encolhido depois de ter conquistado em parte o espaço antes ocupado pelo PCF.
Processo semelhante se verificou na Itália com o Partido Comunista e a Democracia Cristã: ao fim de quatro décadas polarizando a disputa eleitoral e ideológica, bem como a influência social e cultural, ambas as legendas simplesmente deixaram de existir. Como na França, seus sucedâneos e remanescentes se reagruparam em novas legendas, com nome e ideário bem menos evidentes.
Em ambos os países, a exemplo do que se verificou da margem oposta do Canal da Mancha, ondas de choque do terremoto no solo político se fizeram sentir em outras camadas do tecido social. Em escala infinitamente menor que o dano causado pelo thatcherismo, também as centrais sindicais italianas e francesas e os sindicatos por categorias viram se contrair sua influência e sua base militância. Uma tendência que dá sinais de se reverter, na crista da nova onda grevista e da defesa das conquistas do pós-guerra, mas que vem acompanhada de um ingrediente novo: hoje, o descontentamento das ruas e o voto de protesto é disputado palmo a palmo com uma nova extrema-direita, decicida a se apossar do discurso anti-establishment.
Fenômeno semelhante pode ser observado na Alemanha, embora com dinâmica e andamento singulares. Democracia cristã e social-democracia seguem como as principais forças políticas, como desde 1945 e a despeito da reunificação do país, celebrada em 1990. Mas, se até a virada do século somavam mais de 70% dos votos em eleições nacionais, hoje pouco superam os 50%, e dividem as cadeiras do parlamento com quatro outros partidos: liberais, ecologistas, pós-comunistas e uma extrema-direita que, sintomaticamente, fincou raízes mais profundas justamente na antiga metade oriental do país, que por quatro décadas integrou o bloco socialista e viu sua economia, em especial, desmontada e devastada na reunificação – conduzida, aliás, pelo democrata-cristão Helmut Kohl, outro vértice do “triângulo amoroso” da onda conservadora dos anos 1980.
E o Novo Mundo?
As Américas não poderiam passar ao largo da onda recente de lutas sociais, e talvez o exemplo mais ilustrativo venha da origem mais inesperada. Sem acompanhamento de maior envergadura na mídia hegemônica, em especial no Brasil, os Estados Unidos registraram em 2022 120 mil trabalhadores que tomaram parte em “conflitos trabalhistas de maior porte”. O levantamento, feito anualmente pelo Escritório de Estatísticas do Trabalho, contabiliza greves que mobilizaram ao menos mil participantes com duração de ao menos um dia de trabalho. Embora parcial, ele indica um significatico crescimento em relação aos 80 mil grevistas do ano anterior.
Diferentemente do que se verifica no cenário europeu, nos EUA se trata fundamentalmente de paralisações pontuais e quase sempre localizadas por empresas – ou setores restritos de serviços como os de educação e saúde. Ainda assim, é sintomática a coincidência com os desdobramentos da economia. Igualmente, a exemplo do que se detectou também no Reino Unido, o movimento acompanha um crescimento paulatino, porém consistente, nas taxas de sindicalização. Também não passa despercebido outro paralelo com o processo na Europa: como se demonstrou na vitória eleitoral de Donald Trump, em 2016, uma nova extrema-direita, por lá chamada de AltRight (“direita alternativa”) conseguiu fincar raízes em setores da classe trabalhadora, particularmente entre os homens brancos de regiões castigadas pela desindustrialização.
Por fim, mas de grande importância para nós: qual é o retrato da América Latina? Por aqui, a nova onda de governos progressitas, com maior ou menor presença da esquerda, reflete igualmente uma retomada da luta social, em meio à insatisfação popular com o impacto da crise. A tendência, porém, não se faz acompanhar de maneira proporcional por um ascenso da mobilização própria e específica da classe trabalhadora. Os anos em que a balança política se inclinou para a direita aprofundaram tendências anteriores, com origem na crise dos anos 1980/90. A mais preocupante é precisamente o encolhimento da indústria – que, na região, se desdobrou na acentuada e acelerada precarização das relações de trabalho.
Não é de estranhar que venhamos constatando, ano após ano, a queda contínua das taxas de sindicalização. Um dado estatístico que ganha cores nítidas no enfraquecimento das centrais sindicais, começando pela CUT e pelas demais organizações no Brasil. Mais gritante é a trajetória da outrora poderosa CGT argentina, que sobreviveu à sangrenta ditadura militar de 1976-83 e tomou a frente da sua derrubada. Nem mesmo a histórica COB boliviana é hoje sombra do instrumento poderoso de luta sindical e política que foi desde a década de 1959. O mesmo se pode dizer da CGTP peruana e da CUT chilena.
Entender e superar a contradição aparente entre a virada da gangorra política latino-americana e a relativa desmobilização da classe trabalhadora como força política e social com fisionomia própria,, não é desafio novo. Na conjuntura presente, porém, assume ares de questão existencial para a esquerda – e, naturalmente, para o PT e seu segmento mais consequente.
O levantamento, feito anualmente pelo Escritório de Estatísticas do Trabalho, contabiliza greves que mobilizaram ao menos mil participantes com duração de ao menos um dia de trabalho. Embora parcial, ele indica um significatico crescimento em relação aos 80 mil grevistas do ano anterior.
Diferentemente do que se verifica no cenário europeu, nos EUA se trata fundamentalmente de paralisações pontuais e quase sempre localizadas por empresas – ou setores restritos de serviços como os de educação e saúde. Ainda assim, é sintomática a coincidência com os desdobramentos da economia. Igualmente, a exemplo do que se detectou também no Reino Unido, o movimento acompanha um crescimento paulatino, porém consistente, nas taxas de sindicalização. Também não passa despercebido outro paralelo com o processo na Europa: como se demonstrou na vitória eleitoral de Donald Trump, em 2016, uma nova extrema-direita, por lá chamada de AltRight (“direita alternativa”) conseguiu fincar raízes em setores da classe trabalhadora, particularmente entre os homens brancos de regiões castigadas pela desindustrialização.
Por fim, mas de grande importância para nós: qual é o retrato da América Latina? Por aqui, a nova onda de governos progressitas, com maior ou menor presença da esquerda, reflete igualmente uma retomada da luta social, em meio à insatisfação popular com o impacto da crise. A tendência, porém, não se faz acompanhar de maneira proporcional por um ascenso da mobilização própria e específica da classe trabalhadora. Os anos em que a balança política se inclinou para a direita aprofundaram tendências anteriores, com origem na crise dos anos 1980/90. A mais preocupante é precisamente o encolhimento da indústria – que, na região, se desdobrou na acentuada e acelerada precarização das relações de trabalho.
Não é de estranhar que venhamos constatando, ano após ano, a queda contínua das taxas de sindicalização. Um dado estatístico que ganha cores nítidas no enfraquecimento das centrais sindicais, começando pela CUT e pelas demais organizações no Brasil. Mais gritante é a trajetória da outrora poderosa CGT argentina, que sobreviveu à sangrenta ditadura militar de 1976-83 e tomou a frente da sua derrubada. Nem mesmo a histórica COB boliviana é hoje sombra do instrumento poderoso de luta sindical e política que foi desde a década de 1959. O mesmo se pode dizer da CGTP peruana e da CUT chilena.
Entender e superar a contradição aparente entre a virada da gangorra polítifca latino-americana e a relativa desmobilização da classe trabalhadora como força política e social com fisionomia própria, não é desafio novo. Na conjuntura presente, porém, assume ares de questão existencial para a esquerda – e, naturalmente, para o PT e seu segmento mais consequente.
(*) Sílvio Queiroz é coordenador do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF