Por Acson Barbosa Araujo (*)
Em um mundo cada vez mais regido pelos imperativos do capitalismo, um dos aspectos mais cruéis dessa lógica é a mercantilização da vida humana. Um dos exemplos mais claros dessa perversidade se encontra nos planos de saúde privados, que transformam o direito à saúde em uma transação financeira, e não mais em uma questão de dignidade humana. A saúde, um dos pilares mais fundamentais da existência, torna-se um bem escasso e valioso apenas para aqueles que podem pagar. Aqueles que não se encaixam nas exigências do mercado são deixados à própria sorte, enfrentando não só a dor de uma doença, mas a crueldade de um sistema que vê a vida humana como lucro.
Ao negar um tratamento essencial, um plano de saúde não está apenas cometendo uma falha administrativa. Está, na verdade, exercendo a lógica impiedosa do capitalismo: o sofrimento alheio se transforma em um custo a ser evitado, um risco que não vale a pena ser assumido. Quando um paciente precisa urgentemente de tratamento, mas é recusado pelo seu plano de saúde, não é apenas a saúde que está em risco, mas a própria dignidade do ser humano. O corpo do indivíduo se torna um campo de batalha entre a necessidade urgente de cuidados médicos e a lógica fria de um mercado que não se importa com a vida, mas com o lucro.
O filósofo Karl Marx, ao criticar a natureza do capitalismo, apontava a tendência desse sistema em tratar tudo e todos como mercadorias. No caso dos planos de saúde, isso é evidente: a saúde se torna uma mercadoria que deve ser comprada e consumida conforme a capacidade financeira do indivíduo. O acesso ao tratamento, em vez de ser um direito básico, torna-se um privilégio de poucos, regido por critérios de rentabilidade. O que deveria ser uma prioridade humana, como o direito à vida e à saúde, passa a ser uma questão que depende do poder aquisitivo. Aqueles que não podem pagar sofrem as consequências dessa exclusão.
A crítica de Marx sobre o capitalismo como um sistema que aliena o ser humano de sua verdadeira essência se aplica perfeitamente à realidade dos planos de saúde. Eles não cuidam das pessoas, mas das finanças. O sofrimento humano é analisado não pela sua urgência ou importância, mas pela sua viabilidade econômica. A vida de uma pessoa, neste contexto, é apenas um custo – e a pergunta do mercado é sempre a mesma: “Vale a pena gastar com esse tratamento?” Quando a resposta é não, a pessoa é deixada para trás, como um número que não justifica o investimento financeiro.
Herbert Marcuse, um dos principais pensadores da Escola de Frankfurt, argumentava que o capitalismo cria uma sociedade unidimensional, onde as necessidades reais das pessoas são abafadas pelas necessidades criadas pelo sistema. No caso dos planos de saúde, essa “necessidade criada” não é mais a saúde, mas a busca incessante por lucro. A lógica do mercado
se sobrepõe ao valor intrínseco da vida humana, reduzindo-a a um simples cálculo econômico. O capitalismo não se importa com a dor de quem não pode pagar, pois, para ele, as vidas que não se encaixam em seus parâmetros de rentabilidade são descartáveis.
Adorno e Horkheimer, também críticos da sociedade capitalista, chamavam a atenção para o que eles chamaram de “indústria cultural” – uma forma de controle social que transforma até as relações humanas em negócios. Nos planos de saúde, essa “indústria da saúde” é mais do que um nome: é um império construído sobre a exploração da vulnerabilidade humana. Quando uma pessoa é rejeitada por um plano de saúde, ela não está apenas lutando contra uma burocracia desumana, mas contra um sistema que a vê como um produto, uma unidade de lucro. Sua vida, seus direitos e até suas esperanças são mensurados por índices financeiros, e isso revela a face mais cruel do capitalismo.
O direito à saúde deveria ser um direito universal, como uma extensão do direito à vida. No entanto, quando o capitalismo entra em cena, esse direito é subvertido em favor do lucro. As vidas das pessoas se tornam um risco calculado, e quem não pode pagar, simplesmente não tem acesso àquilo que é essencial para sua sobrevivência. O capitalismo, ao transformar o direito à saúde em uma mercadoria, nega a dignidade humana, criando um abismo entre os que têm acesso aos cuidados médicos e os que são deixados para trás, sem nada, em um sistema que só valoriza o dinheiro.
No entanto, em meio a esse sistema perverso, o Sistema Único de Saúde (SUS) emerge como um farol de resistência e solidariedade. O SUS, embora frequentemente negligenciado e subfinanciado, representa uma conquista histórica que nos lembra de que a saúde deve ser, acima de tudo, um direito universal e não um privilégio de poucos. Em sua essência, o SUS é a materialização do princípio da saúde como direito humano, acessível a todos, independentemente de sua classe social, cor ou condição econômica. Ao contrário dos planos privados, que veem a saúde como uma mercadoria a ser consumida, o SUS visa garantir o acesso à saúde como um dever do Estado para com seus cidadãos.
A valorização do SUS é fundamental não apenas para garantir que a saúde chegue a quem mais precisa, mas também para desafiar as lógicas capitalistas que fragmentam e excluem. O SUS é a alternativa ao sistema de saúde privado, que ignora os mais vulneráveis, e representa uma forma de resistência a um modelo de sociedade que comercializa tudo, até mesmo a vida. Sua existência é uma afirmação da ideia de que, em uma sociedade justa, os direitos humanos devem estar acima das leis do mercado.
A luta pela saúde pública, universal e de qualidade é, portanto, uma luta contra o capitalismo que transforma tudo em mercadoria, inclusive a vida humana. O SUS é a tentativa de construir um sistema que, ao menos no campo da saúde, se oponha à lógica do lucro e valorize o ser humano
em sua totalidade. Ele precisa ser fortalecido, defendido e aprimorado, pois sua missão não é apenas tratar doenças, mas também afirmar que o direito à saúde é inalienável e que ninguém deve ser deixado para trás.
Somente quando conseguirmos desconstruir o modelo de saúde privatizado, que submete a vida à lógica do mercado, e fortalecer o SUS, será possível garantir que a saúde seja tratada como um direito essencial, e não como uma mercadoria. A luta por um sistema de saúde público e gratuito é, portanto, a luta por uma sociedade mais justa, solidária e digna, onde a vida humana não é um número em uma planilha de lucros, mas um bem a ser protegido, sem distinções.
(*) Acson Barbosa Araujo é militante petista de Santo Antônio de Jesus, Bahia.